Viagens na Minha Terra (1846)/XXIV

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CAPITULO XXIV.

 

Novo Génesis. — O Adam social muito differente do Adam natural. — Carlos sempre um por seus bons instinctos, sempre outro por suas más reflexões. — De como Joanninha recebeu o primo com os braços abertos, e do mais que entre elles se passou. — Dor meia dor, meia prazer.

 

Formou Deus o homem, e o pôs n’um paraizo de delicias; tornou a formá-lo a sociedade, e o pôs n’um inferno de tolices.

O homem — não o homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade tem contrafeito, appertando e forçando em seus moldes de ferro aquella pasta de limo que no paraizo terreal se affeiçoára a imagem da divindade — o homem, assim aleijado como nós o conhecêmos, é o animal mais absurdo, o mais disparatado e incongruente que habita na terra.

Rei nascido de todo o creado, perdeu a realeza; principe desherdado e proscripto, hoje vaga foragido no meio de seus antigos estados; altivo ainda e suberbo com as recordações do passado, baixo vil e miseravel pela desgraça do presente.

D’estas duas tam oppostas actuações constantes, que ja per si sos o tornariam ridiculo, formou a sociedade, em sua van sabedoria, um systema chymerico, desarrazoado e impossivel, complicado de regras a qual mais desvairada, incontrado de repugnancias a qual mais opposta. E vazado este perfeito modêlo de sua arte pretenciosa, metteu dentro d’elle o homem, desfigurou-o, contorceu-o, fê-lo o tal D’estas duas tam oppostas actuações constantes, que ja per si sos o tornariam ridiculo, formou a sociedade, em sua van sabedoria, um systema chymerico, desarrazoado e impossivel, complicado de regras a qual mais desvairada, incontrado de repugnancias a qual mais opposta. E vazado este perfeito modêlo de sua arte pretenciosa, metteu dentro d’elle o homem, desfigurou-o, contorceu-o, fê-lo o tal ente absurdo e disparatado, doente, fraco, rachitico; collocou-o no meio do Eden phantastico de sua creação, — verdadeiro inferno de tolices — e disse-lhe, invertendo com blasphêmo arremêdo as palavras de Deus Creador:

’De nenhuma árvore da horta comendo comerás;

’Porêm da árvore da sciencia do bem e do mal, d’ella so comerás se quizeres viver.’

Indigestão de sciencia que não commutou seu mau estomago, presumpção e vaidade que d’ella se originaram — tal foi o resultado d’aquele preceito a que o homem não desobedeceu como ao outro: tal é o seu estado habitual.

E quando as memorias da primeira existencia lhe fazem nascer o desejo de sahir d’esta outra, lhe influem alguma aspiração de voltar á natureza e a Deus, a sociedade, armada de suas barras de ferro, vem sôbre elle, e o prende, e o esmaga, e o contorce de novo, e o apperta no equuleo doloroso de suas fôrmas.

Ou hade morrer ou ficar monstruoso e aleijão.

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Poucos filhos do Adam social tinham tantas reminiscencias da outra patria mais antiga, e tendiam tanto a aproximar-se do primitivo typo que sahíra das mãos do Eterno, forcejavam tanto por sacudir de si o pesado appêrto das constricções sociaes, e regenerar-se na sancta liberdade da natureza, como era o nosso Carlos.

Mas o melhor e o mais generoso dos homens segundo a sociedade, é ainda fraco, falso e acanhado.

Demais, cada tentativa nobre, cada aspiração elevada de sua alma lhe tinha custado duros castigos, severas e injustas condemnações d’esse grande juiz hypocrita, mentiroso e venal... o mundo.

Carlos estava quasi como os mais homens... ainda era bom e verdadeiro no primeiro impulso de sua natureza excepcional; mas a reflexão descia-o á vulgaridade da fraqueza, da hypocrisia, da mentira commum.

Dos melhores era, mas era homem.

Os seus pensamentos, as suas considerações em toda aquella noite, em todo o dia que a seguíra, na hora mesma em que ia incontrar-se com o objecto que mais lhe prendia agora o espírito, senão é que tambem o coração, todas participavam d’aquella fluctuação inquieta e doentia de seu ser d’homem social, em quem o tibio reflexo do homem natural apenas relampejava por acaso.

Dúvida, incerteza, vaidade, mentira deslocavam e annullavam a bella organização d’aquella alma.

Assim chegou aopé de Joanninha que o esperava de braços abertos, que o appertou n’elles, que o beijou sem nenhum falso recato de maliciosa modestia, e com o riso da alegria no coração e na bôcca lhe disse:

— 'Ora pois, meu Carlos, sentemo-nos aqui bem junctos aopé um do outro e conversemos, que temos muito que fallar. Dá ca a tua mão. Aqui na minha... Está fria a tua mão hoje! E hontem tam quente estava!.. Oh! agora vai aquecendo... tanto tanto... é demais! Terás tu febre?'

— 'Não tenho.'

— 'Não tens, não: a cara é de saude. E como tu estás forte, grande, um homem como eu sempre imaginei que um homem devia ser, como sempre te via nos meus sonhos!.. Que é extranho isto, Carlos: quando sonhava comtigo, não te via como tu d'aqui foste, magro, triste e doente; via-te como vens agora, forte, são, alegre. Mas tu não estás alegre hoje, como hontem; não estás... Que tens tu?’

— 'Nada, querida Joanninha, não tenho nada. Pensava...'

— 'Em que pensas tu? dize-me.'

— 'Pensava na differença dos nossos sonhos: que eu tambem sonhava comtigo.'

— 'Sonhavas, Carlos! E como sonhavas tu? como me vias nos teus sonhos?'

— 'Tudo pelo contrario do que tu. Via-te aquella Joanninha piquena, desinquieta, travêssa, correndo por essas terras, saltando essas vallas, trepando a essas árvores... aquella Joanninha com quem eu andava ao collo, que trazia ás cavalleiras, que me fazia ser tam doido e tam criança como ella, apezar de eu ter quinze annos mais. Via-te alegre, cantando...'

— 'Sonhos de homem! Creiam n'elles! Eu que nunca mais ri nem brinquei desde o dia que tu partiste... E oh que dia, Carlos!.. E os que vieram depois! Não houve nunca mais um so dia de alegria n’ésta casa. Oh!.. deixa-me te dizer: Fr. Diniz... Sabes que não gósto d’elle?’

— 'Não gostas?'

— 'Nada: tenho-lhe aversão. E Deus me perdoe! parece-me que é injusta a minha antipathia.'

— 'Porquê?'

— 'Porque elle é teu amigo devéras. Um pae, Carlos, um pae não tem maior ternura e desvellos por seu filho, do que elle tem por ti.'

— 'Deus lhe perdoe!'

— 'Deus lhe perdoe a quem...e que lhe hade perdoar? O amor que te tem?'

— 'Não, mas...'

— 'Bem sei o que queres dizer: e tens razão.'

— 'Tenho razão!'

— 'Tens: o que elle bem precisa que Deus lhe perdoe é um grande peccado.'

— 'Que dizes tu, Joanna! E como sabes?'

— 'Sei, sei tudo.'

— 'Tu!'

— 'Eu. Sei que foi elle quem fez cegar minha avó... a nossa boa, a nossa sancta avó, Carlos!.. quem a cegou á fôrça de lagrymas que lhe fez chorar áquelles pobres olhos que, de puro cançados, se apagaram para sempre... Minha ricca avó! — E porquê, meus Deus, porquê!'

— 'Porquê?'

— 'Por amor de ti, por escrupulos que lhe metteu na cabeça de tu seres mau christão, inimigo de Deus, que te não podias salvar... tu meu Carlos! Vê que cegueira a do triste frade.'

— 'Bem triste!'

— 'Mas olha que o diz de boa-fé e pelo muito amor que te tem... que é um amor que eu não intendo: e o mesmo é com minha avó, que treme deante d'elle. E mais elle estima-a, estou certa que dava a vida por ella... e por nós todos... por mim não tanto, mas por ti e por ella, dava decerto. Mas o seu amor é dos que rallam, que, apoquentam... quasi que estou em dizer que matam.’

— 'Matam, matam!'

— 'Nossa avó é elle que a mata decerto. Sempre a metter-lhe medos, sempre escrupulos! O seu Deus d'elle é um Deus de terrores, de vinganças, de castigos, e sem nenhuma misericordia. Oh! que homem! para elle tudo é peccado, maldade... Não o posso ver.’

Carlos respirava como desopprimido de um grande pêso, ouvindo as explicações da prima que bem claro lhe mostravam a sua perfeita ignorancia dos fataes segredos da familia.

— 'E comtigo’ disse elle ja n'outra voz mais desaffogada ’comtigo, Joanninha, como se avêm elle, como te tracta?’

— 'Commigo não se mette, e rara vez me falla. Mas oh, se elle soubesse que eu estava aqui comtigo, sancto Deus! o que ouviria a pobre da minha avó! Inda bem que hoje não é sexta-feira, senão não vinha eu ca.'

— 'Porquê? Ainda vem todas as sexta-feiras?'

— 'Sempre o mesmo. Ámanhan ca o temos por peccado, que é sexta-feira.'

— 'Não te vejo então ámanhan aqui?'

— 'Não decerto, aqui. Mas vamos, que a isso é que eu venho ca hoje, para te fallar n'isso... e para te ver, para fallar comtigo, para estar com o meu Carlos... e ao mesmo tempo tambem para ajustarmos como isto hade ser. Quando has-de tu ir ver a avó?.. a nossa mãe; que ella é nossa mãe, Carlos, não conhecémos nunca outra, nem eu nem tu. Quando lhe heide eu dizer que estás aqui? A pobre velhinha está tam doente! Ha quinze dias que se não levanta da cama.’

— 'Coitada da minha pobre mãe!.. Oh! se não fosse!.. Deixa estar, Joanninha; um dia será. Por agora, não póde ser: bem vês. Como heide eu atravessar as sentinellas dos realistas, ir a um pôsto inimigo? — A minha vida... isso pouco importa, mas a minha honra ficava em perigo: por todos os modos a perdia, e talvez...'

— 'Não senhor, Sr. Carlos, essa desculpa não basta. Vai n'um anno que aqui temos a guerra á porta de casa, e ja sabemos como isso é e como as coisas se fazem. O commandante do nosso pôsto é um homem de bem, um cavalheiro perfeito. Em lhe eu dizendo quem tu es e a que ca vens... elle sabe o estado da minha avó, e tem-lhe muita amizade, da-nos decerto licença para tu vires em toda a segurança. Pensas que elle não sabe que estou comtigo aqui? Pois disse-lh’o eu; só lhe não expliquei quem tu eras; disse-lhe que eras um parente nosso que nos trazia notícias de outros, e que precisava fallar-te. Não pôs dificuldade alguma: é uma pessoa excellente, bom, bom devéras.’

— 'É môço o teu commandante?'

— 'Môço elle? coitado! Tem bons cinquenta annos, e creio que outros tantos filhos. Mas por que perguntas tu isso? E arqueaste as sobrancelhas com aquelle teu ar de antes quando te zangavas! Porque foi isso, Carlos?'

— 'Nada, criança, foi uma pergunta á toa.'

— 'Pois será; mas não me franzas nunca mais a testa assim, que te pareces todo... é que nunca vi tal parecença...'

— 'Com quem?'

— 'Com Fr. Diniz.'

— 'Eu com elle!'

— 'Tal e qual quando fazes essa cara. Olha: ahi estás tu na mesma. Vamos! ria-se e esteja contente se se quer parecer commigo, que todos dizem que nos parecemos tanto.'

— 'Querida innocente!'

E beijou-lhe a mão que tinha appertada na sua, beijou-lh’a uma e muitas vezes com um sentimento de ternura misturado de não sei que vaga compaixão, vindo de lá de dentro d’alma com não sei que dor, meia dor meia prazer, que entre ambos se communicou e a ambos humedeceu os olhos.