Viagens na Minha Terra (1846)/XXV
CAPITULO XXV.
O excesso da felicidade que aterra e confunde tambem. — Pasmosa contradicção da nossa natureza. — De como os olhos verdes de Joanninha se inturvaram e perderam todo o brilho. — Que o coração da mulher que ama, sempre adivinha certo.
Carlos tinha a mão de Joanninha appertada na sua; e os olhos humidos de lagrymas cravados nos olhos d’ella, de cujo verde transparente e diaphano sahiam raios de ineffavel ternura.
Dizer tudo o que elle sentia é impossivel: tam incontrados lhe andavam os pensamentos, em tam confuso tumulto se lhe alvorotavam todos os sentidos.
Por muito tempo não proferiram palavra, nem um nem outro; mas fallaram assim longos discursos.
Emfim, Joanninha voltou á sua primeira insistencia e disse para o primo:
— 'Olha, Carlos, ámanhan é sexta-feira, ja te disse, vem Fr. Diniz: quando haja a menor difficuldade do commandante, a elle não lhe recusa nada...'
— 'Por quanto ha no ceo, Joanninha, pela tua vida, pela de nossa avó, nem uma palavra ao frade da minha estada aqui! A elle, oh! a elle jurei eu não tornar a ver. E se minha avó...'
— 'Basta: não lhe direi nada. Mas á nossa avó quando lh'o heide dizer, e quando hasde tu ir ve-la?’
— 'Porora não: preciso licença de Lisboa, ou do quartel-general quando menos, para fazer uma coisa que todas as leis da guerra prohibem, que nas actuaes circumstancias e em similhante guerra ainda é mais defesa. E sem isso — tu bem sabes que as minhas resoluções não se mudam — sem isso não o faço. Em todo o caso, que Fr. Diniz nem sonhe!..'
— 'E quanto tempo, quantos dias se hãode passar?'
— 'Eu sei? oito, quinze dias talvez, talvez mais.'
— 'E a minha pobre avó, coitadinha! a morrer de saudades...'
— 'Consola-a tu, Joanninha: dize-lhe que tiveste novas minhas, que estou bom, que me não falta nada, que tenho esperanças de vos ver muito cedo.'
— 'E eu... eu posso, eu heide ver-te todos os dias: não, Carlos?'
— 'Ámanhan é sexta-feira...'
— 'Ámanhan é o dia negro... nem eu queria: ámanhan não póde ser, bem sei. Mas, tirado ámanhan, meu Carlos, oh! todos os dias!'
— 'Sim, querido anjo, sim.'
— 'Promettes?'
— 'Juro-t’o.'
— 'Succeda o que succeder?'
— 'Succeda o que... So ha uma coisa que... Mas essa não... não é possivel.'
— 'O que é, Carlos? que póde haver, que póde succeder que te impeça de?..'
Carlos estremeceu... hesitou, corou, fez-se pallido... quiz dizer-lhe a verdade e não ousou...
Porquê?.. E que verdade era essa? Não a direi eu, ja que elle a não disse: fiel e discreto historiador, imitarei a discrição do meu heroe.
Pois era discrição a d’elle?
Não... em verdade, era outra coisa.
Era um pensamento reservado?
Não.
Era tenção má, ingano premeditado, era?..
Não, tambem não.
O que era pois?
Era a dúvida, era a fraqueza, era a vaidade, a mentira congenial e obrigada, a necessaria falsidade do homem social.
Carlos mentiu e disse:
— 'Só se m'o prohibirem expressamente... os meus chefes.’
Mas não era isso o que elle receiava; não era esse aquelle motivo unico e superior que elle temia podesse vir um dia derepente cortar as doces relações de convivencia a que tam prestes se habituára, que ja lhe pareciam parte necessaria, indispensavel da sua vida. Não era, não; e Carlos tinha mentido...
Joanninha olhou para elle fixa... Carlos corou de novo. Ella fez-se pallida... d’ahi corou tambem.
— 'Carlos, tu não es capaz de mentir...'
— 'Joanninha!'
— 'Tu es o meu Carlos... tu queres-me como me querias d'antes...’
— 'Sou... oh! sou. E amo-te...'
— 'Como d’antes?'
— 'Mais.'
— 'Pois olha, Carlos: eu nunca amei, nunca heide amar a nenhum homem senão a ti.'
— 'Joanna!'
— 'Carlos!'
Iam a cahir nos braços um do outro... A singela confissão da innocencia ia ser acceita por quem e como, sancto Deus! Aquella palavra de oiro, aquella doce palavra que tanto custa a pronunciar á mulher menos arteira; que adivinhada, sabida, ouvida ha muito pelo coração, ditta mil vezes com os olhos, nenhum homem descança nem se tem por feliz, por certo de sua felicidade, em quanto a não ouve proferir pelos labios — essa palavra celeste que explica o passado, que responde do futuro, que é a última e irrevocavel sentença de um longo pleito de anciedades, de incertezas e de sustos — essa final e fatal palavra amo-te, Joanninha a pronunciára tam naturalmente, tam sincera, tam sem difficuldades nem hesitações, como se aquelle fosse — e era decerto — como se aquelle tivesse sido sempre o pensamento unico, a idea constante e habitual de sua vida.
O excesso da felicidade aterra e confunde tambem. Um momento antes, Carlos dera a sua vida por ouvir aquella palavra... um momento depois — oh pasmosa contradicção de nossa dupplice natureza! um momento depois dera a vida pela não ter ouvido. No primeiro instante ia lançar-se nos braços da innocente que lh’os abria n’um sancto extasi do mais apaixonado amor; no segundo, tremeu e teve horror da sua felicidade.
— 'Joanna’ exclamou elle 'Joanna, querida, sabes tu se eu mereço... sabes tu se deves?..’
— 'Sei. Desde que me intendo, não pensei n'outra coisa; desde que d’aqui foste, comecei a intender o que pensava... disse-o a minha avó, e ella...’
— 'E ella?..'
— 'Ella abençoou-me, chamou-me a sua querida filha, abraçou-me, beijou-me, e disse-me que aquella era a primeira hora de felicidade e de alegria que ha muitos annos tinha tido.'
Carlos não respondeu nada e olhou para Joanninha com uma indicivel expressão de affecto e de tristeza. Os raios de alegria que resplandeciam n’aquelle semblante — agora bello de toda a belleza com que um verdadeiro amor illumina as mais desgraciosas feições — os raios d’essa alegria começaram a amortecer, a apagar-se. A lucida transparencia d’aquelles olhos verdes turvou-se: nem a clara luz da agua-marinha, nem o brilho fundo da esmeralda resplandecia ja n’elles; tinham o lustro baço e morto, o polido mate e silicioso de uma d’essas pedras sem agua nem brilho que a arte antiga ingastava nos collares de suas estátuas.
— 'Adeus Joanna!' disse Carlos perturbado e confuso.
— 'Adeus, Carlos!' respondeu ella machinalmente.
— 'Até depois de ámanhan, Joanna.'
— 'Pois sim.'
— 'Depois de ámanhan te direi...'
— 'Não digas.'
— 'Porquê?'
— 'Porque é excusado: ja sei tudo.'
— 'Sabes!'
— 'Sei.'
— 'O quê?'
— 'O que tu não tens ânimo para me dizer, Carlos; mas que o meu coração adivinhou. Tu não me amas, Carlos.'
— 'Não te amo! eu!.. Sancto Deus! eu não a amo...'
— 'Não. Tu amas outra mulher.'
— 'Eu! Joanna, oh! se tu soubesses...'
— 'Sei tudo.'
— 'Não sabes.'
— 'Sei: amas outra mulher, outra mulher que te ama, que tu não pódes, que tu não deves abandonar, e que eu...'
— 'Tu?'
— 'Eu sei que é bella, prendada, cheia de graças e de incantos, porque... porque tu, meu Carlos, porque o teu amor não era para se dar por menos.'
— 'Joanna, Joanninha!'
— 'Não digas nada, não me digas nada hoje... hoje sobretudo, não me digas nada. Ámanhan...'
— 'Ámanhan é sexta-feira.'
— 'Inda bem! terei mais tempo para reflectir, para considerar antes de tornar a ver-te. Adeus Carlos!'
— 'Uma palavra so, Joanna. Cuidas que sou capaz de te inganar?'
— 'Não; estou certa que não.'
— 'Até ámanhan... até depois de ámanhan.'
— 'Adeus!'
Abraçaram-se, e d’esta vez froixamente; beijaram-se de um osculo timido e recatado... os beiços de ambos estavam frios, as mãos trémulas; e o coração comprimido batia, batia-lhes forte que se ouvia.
Retirou-se cadaum por seu lado. A noite estava pura e serena como na vespera, as estrellas luziam no ceo azul com o mesmo brilho; o silencio, a majestade, a belleza toda da natureza era a mesma... so elles eram outros... outros, tam outros e differentes do que foram!
Tinham-se dado cuidadosamente as providencias; ambos chegaram, sem nenhum accidente, ao seu destino.