Viagens na Minha Terra (1846)/XXXV
CAPITULO XXXV.
Georgina disse para Carlos:
— 'Dá a mão a esse homem, levanta-o e dize-lhe as palavras de perdão que te pede.'
Carlos fez um gesto expressivo de horror e de repugnancia. Georgina ajoelhou aopé do frade, tomou as mãos d’elle nas suas, e lh’as affagou com piedade; depois levantou-lhe o rosto, incostou-o a si e gradualmente o foi accalmando. O velho parecia uma criança mimada e sentida que se vai accalantando nos braços da mãe: agora so murmurava de vez em quando alguns soluços, a mais e a mais raros.
Estavam de joelhos ambos, o frade e a dama; elle mal se tinha, ella amparava em seus braços e contra seu peito o amortecido corpo do velho. E Georgina disse com aquelle som de voz irresistivel que as filhas de Eva herdaram de sua primeira mãe, e que a ella ou lh’o tinham antes insinado os anjos, ou o apprendeu depois da serpente, — um som de voz que é a última e a mais decisiva da seducções femininas — disse:
— 'Este homem vai morrer, Carlos: e tu hasde-o deixar morrer assim, meu Carlos?'
Todo o odio, todas as offensas se callaram, desappareceram deante d’aquellas palavras do anjo supplicante. Meu Carlos ditto assim, não o ouvíra elle ha muito tempo, não lhe pôde resistir: extendeu os braços para o frade, cahiu de joelhos aopé d’elle, e um so abraço uniu a todos tres.
Como no eterno grupo de Lacoonte, o velho e os dous mancebos sentiam estreitar-se das cobras da mesma dor, e affogavam junctos da mesma angústia.
Assim estiveram longamente; e não se ouvía entre elles senão algum gemido sôlto, e aquelle sussurrar sumido das lagrymas que mais se ouve com o coração do que com os ouvidos.
O frade disse emfim com uma voz apenas perceptivel de timida e de fraca:
— 'Carlos, meu Carlos, perdoa tambem... oh perdoa á memoria de tua desgraçada mãe!'
O mancebo saltou convulsamente como o cadaver na pilha galvanica. Em pé, hirto, horrivel, tremendo, exclamou com um brado de trovão:
— 'Demonio! demonio incarnado em figura de homem, que vieste recordar-me? Dizias bem indagora, monstro: so ás minhas mãos deves morrer. E hasde.'
Lançou-se a um enorme velador de pau-sancto que lhe jazia aopé, massa terrivel d’Hercules, e bastante a fender craneos de ferro, quanto mais a descarnada caveira do frade! D’ambas as mãos a levava no ar; e o velho extendeu para elle a cabeça como na ancia de morrer... Georgina fechou involuntariamente os olhos, e um grande e medonho crime ia consummar-se...
Dous gritos agudissimos, dous gritos de desespêro e de terror, d’aquelles que so sahem da bôcca do homem quando suspenso entre a morte e a vida — soaram repentinamente no apposento; uma velha decrepita e meia morta, arrastada por uma criança de pouco mais de dezeseis annos, estava deante de Carlos, e ambas cubriam com seus debeis corpos a fragil e extenuada figura da sua victima.
— 'Filho, meu filho!' arrancou a velha com stertor do peito: ’é teu pae meu filho. Este homem é teu pae, Carlos.’
O ponderoso velador cahiu inerte das mãos do mancebo, e rolou pesado e baço pelo pavimento. Carlos cahiu por terra sem sentidos. De um pulo Georgina estava aopé d’elle, e o fez incostar na longa cadeira de braços. Estava lavado em sangue; era uma ferida do pescôço que o excesso da commoção lhe fizera rebentar. Os dous velhos vieram ajoelhar-se aopé d’elle. As duas mulheres moças lidavam pelo restaurar e lhe estancar o sangue. A cambraia dos lenços, as rendas do collo e das cabeças, tudo se fez em ataduras e compressas: o sangue parou emfim.
Admiravel belleza do coração feminino, generosa qualidade que todos seus infinitos defeitos faz esquecer e perdoar! Essas duas mulheres amavam esse homem. Esse homem não merecia tal amor: não, por Deus! o monstro amava-as a ambas: está tudo ditto. E ellas que o sabiam, ellas que o sentiam, e que o julgavam digno de mil mortes, ellas rivalizavam de cuidados e de ancia para o salvarem.
De tanto não somos capazes nós.
E por isso admirâmos tanto.
E perdoâmos tanto.
E esquecêmos tanto.
Mas amar tanto, não sabemos: verdade, verdade...
Amâmos melhor; sim, isso sim: tanto não.
O mancebo permanecia em deliquio. Fr. Diniz e a velha rezavam. Georgina e Joanninha — ja vereis que era Joanninha — olharam uma para a outra, coraram e ficaram suspensas. A ingleza extendeu a mão á amavel criança, estremeceu involuntariamente, mas disse-lhe com firmeza:
— 'O ditto ditto, Joanninha! Eu ja o não amo; prometto.'
— 'Eu amo-o cada vez mais, Georgina: elle é tam infeliz!'
— 'Juras-me tu de o não deixar, de velar por elle sempre, de o defender de si mesmo que é o peior inimigo que tem?'
— 'Se juro!'
— 'Então adeus, Joanninha! Eu estou de mais aqui. Ja tenho ouvido o que não devia ouvir. Os segredos da tua familia não me pertencem. O coração d'esse homem não é meu, nem o quero. É um nobre e grande coração, Joanninha; mas... Não te deixes dominar por elle se o queres segurar. Adeus! — Santarem está desamparada pelos realistas; eu vou para Lisboa. Consola tua boa avó, e esse pobre velho. Elle não é tam criminoso, estou certa...’
— 'Oh não! Carlos cuida-o assassino de seu pae; e é falso. Minha avó ja me disse tudo.'
— 'Falso!' murmurou Carlos sem abrir os olhos: ’é falso? Pois não foi elle que matou meu pae?’
— 'Não, filho, clamou a velha: 'não, meu filho; teu pae é este infeliz.’
— 'E minha mãe?'
— 'Tua mãe... e eu somos duas desgraçadas. Que mais queres saber? Tua mãe amou esse homem...'
— 'Ah!' disse Carlos: ’ah!’ e abriu os olhos pasmados para a avó e para o frade que cravaram os seus no chão, e ficaram como dous réos na presença do seu inflexivel juiz.
— 'Mas esse homem que é... que por fôrça querem que seja meu... meu pae... Sancto Deus! elle matou o outro.'
— 'Defendi-me, foi defendendo ésta vida miseravel... Oh nunca eu o fizera! E paraquê? Paraque quiz eu viver? Para isto!'
— 'E meu tio, o pae de Joanninha? Tambem esse era preciso que morresse?'
— 'Ambos se junctaram para me assassinar, e me accommetteram atraiçoadamente na charneca. Não os conheci; foi de noite escura e cerrada. Defendi-me sem saber de quem, e tive a desgraça de salvar a minha vida á custa da d'elles. Filho, filho, não queiras nunca sentir o que eu senti, quando pegando, um a um, n’esses cadaveres para os lançar no rio, conheci as minhas victimas... Era hynverno, a cheia ia de valle a monte: quando abateu e se acharam os corpos ja meios desfeitos, ninguem conheceu a morte de que morreram; passaram por se ter affogado. Ninguem mais soube a verdade senão eu — e tua infeliz mãe a quem o disse para meu castigo, a quem vi morrer de pezar e de remorsos, que expirou nos meus braços chorando por elle, e maldizendo-me a mim. Não sería bastante castigo, meu filho? — Não foi, não. Este burel que ha tantos annos me roça no corpo, estes cilicios que m’o desfazem, os jejuns, as vigilias, as orações nada obtiveram ainda de Deus. A sua íra não me deixa, a sua cholera vai até a sepultura sôbre mim... Se me perseguirá além d’ella!..’
Fez-se aqui um silencio horroroso: ninguem respirava; o frade proseguiu:
— 'Não me dei por bastante castigado com a agonia de tua mãe, a mais horrorosa e desesperada agonia que ainda presenciei, oh meu Deus!.. Tive o cruel ânimo de explicar a tua avó as negras circumstancias d'aquella morte, e de lhe patentear toda a fealdade e hediondez do meu crime. Rasguei-lhe o coração, e vi-lhe sahir sangue e agua pelos olhos, até que lhe cegaram. Que mais queres? Cuidei que podia morrer sem passar por ésta derradeira expiação. Deus não o quiz. Aqui estou penitente a teus pés, filho. Aqui está o assassino de tua mãe, de seu marido, de teu tio... o algoz e a deshonra de tua familia toda. — Faze de mim como fôr tua vontade. Sou teu pae...’
— 'Meu pae!.. Misericordia meu Deus!'
— 'Misericordia, filho, e perdão para teu pae!'
Carlos levantou-se deliberadamente, veio ao velho, tomou-o a pêso nos braços, foi sentá-lo na cadeira que acabava de deixar, e pondo-se de joelhos, beijou-lhe a mão em silencio. Depois foi abraçar-se com a avó, que o apalpava soffregamente com as mãos trémulas, e murmurava baixo:
— 'Agora sim, ja posso morrer, ja posso morrer porque o abracei, porque o senti juncto a mim, o meu filho, o filho da minha filha querida...'
Carlos é que não proferiu mais palavra; tinha-se-lhe rompido corda no coração, que ou lhe quebrára o sentimento ou lh’o não deixava expressar. Sahiu da cella fazendo signal que vinha logo: mas esperaram-n’o em vão... não tornou.
D’ahi a tres dias, veio uma carta d’elle, de juncto d’Evora onde estava com o exército constitucional.