Viagens na Minha Terra (1846)/XXXVI
CAPITULO XXXVI.
— Pois ja se acabou a historia de Joanninha?
— Não, de todo ainda não.
— Falta muito?
— Tambem não é muito.
— Seja o que for, acabemos, que está a gente impaciente por saber como se concluiu tudo isso, o que fez o frade, o que foi feito da ingleza, Joanninha e a avó que caminho levaram, e o pobre Carlos se...
— Pois interessam-se por Carlos, um homem immoral, sem principios, sem coração, que fazia a côrte — fazer a côrte ainda não é nada — que amava duas mulheres ao mesmo tempo? Horror, horror! como dizem os dramaticos romanticos: horror e maldicção!
— Horror seja, horror será... e horror é, sem dúvida. E maldicção que deitaram ao pobre homem. Mas immoralidade! Immoralidade é inganar, é mentir, é atraiçoar: e elle não o fez. Desgraça grande ter um coração assim; mas não me digam que é próva de o não ter. Eu digo que elle tinha coração de mais: o que é um defeito e grande, é um estado pathologico e anormal. Physicamente produz a morte; e moralmente póde matar tambem o sentimento. Bem o creio: mas é molestia commum, e com que vai vivendo muita gente, até que um dia...
— Um dia, o orgam, que progressivamente se foi dilatando, não póde funccionar mais, cessa a circulação e a vida. Deve ser horrivel morte!
— Fallam physicamente?
— Physicamente. Mas no moral anda pelo mesmo. E se esse é o defeito de Carlos...
— Sentir muito?
— Não; ter sentido muito: que o coração, como orgam moral, não se dilata a esse ponto senão pelo demaziado excesso e violencia de sensações que o gastaram e relaxaram. Se esse é o defeito, a molestia de Carlos, digo que ja sei o fim da sua historia sem a ouvir.
— Então qual foi?
— Que um bello dia cahiu no indifferentismo absoluto, que se fez o que chamam sceptico, que lhe morreu o coração para todo o affecto generoso, e que deu em homem politico ou em agiota.
— Póde ser.
— Mas qual das duas foi, deputado ou barão? queremos saber.
— Saberão.
— Queremos ja.
— E se fossem ambas?
— Oh horror, horror, maldicção, inferno! Ferros em braza, demonios pretos, vermelhos, azues, de todas as côres! Aqui sim que toda a artelharia grossa do romantismo deve cahir em massa sôbre esse monstro, esse...
— Esse quê? Pois em se acabando o coração á gente...
— Eu não creio n’isso. Acaba-se lá o coração a ninguem!..
Houve gargalhada geral á custa do pobre incredulo, e levantamo’-nos para ir ver o Sancto-milagre, que era a hora apprazada, e estava o prior á nossa espera.
Ámanhan o fim da historia da menina dos olhos verdes.
No caminho incontrámos o nosso antigo amigo, o barão de P. — barão de outro genero, e que não pertence á familia lineana que n’esta obra procurámos classificar para illustração do seculo — cavalheiro generoso, e typo bem raro ja hoje da antiga nobreza das nossas provincias, com todos os seus brios e com toda a sua cortezia d’outro tempo, que em tanto relêvo destaca da grosseria villan d’essas notabilidades improvisadas...
Vinha em nossa procura para nos guiar. Seguimo-lo.
Fomos de passagem observando algumas das mais interessantes coisas d’aquella interessantissima terra em que se não póde dar um passo sem que a reflexão ou a imaginação incontre objecto para se entreter. Inclinando um pouco á direita, démos na celebrada porta de Atamarma.
Por aqui entrou D. Affonso Henriques, por aqui foi aquella destemida surpreza que lhe intregou Santarem, e acabou para sempre com o dominio arabe n’esta terra.
Os illustrados municipaes Santarenos têem tido por vezes o nobre e generoso pensamento de demolir ésta porta! o arco de triumpho de Affonso Henriques, o mais nobre monumento de Portugal!
A idea é digna da epocha.
Felizmente parece que tem faltado o dinheiro para a demolição; e o senatus consulto dos dignos padres conscriptos não pôde ainda executar-se.
Não que eu creia este arco o genuino arco moiresco por onde entraram os bravos de D. Affonso; mas creio que essa porta da antiga villa se foi reparando, concertando e conservando em suas successivas alterações, até chegar ao que hoje está: e ainda assim como está, é um monumento de respeito que so barbaros pensariam desacatar e destruir.
Porcima d’ella está uma capellinha de N. S. da Victoria: quer a tradicção que primeiro erguida e consagrada á Virgem pelo heroico fundador da monarchia e da independencia portugueza. Este é um dos muitos pontos em que a religião das tradições deve ser respeitada e crida sem grandes exames, porque nada ganha a crítica em pôr dúvidas, e o espirito nacional perde muito em as acceitar.
Deixá-la estar a Virgem da Victoria sôbre o arco de Affonso Henriques. Prostremo’-nos e adoremos, como bons portuguezes, o symbolo da fé christan e da fé patriotica levantado pelas mãos insanguentadas do triumphador!
Mas sería elle ou não que levantou essa capellinha? os documentos faltam, os escriptores contemporaneos guardam silencio; a historia deve ser rigorosa e verdadeira...
Deve: e os grandes factos importantes que fazem epocha e são balizas da historia de uma nação, tambem eu os regeitarei sem dó quando lhes faltarem essas authênticas indispensaveis. Agora as circumstancias, para assim dizer, episodicas de um grande feito sabido e provado, quem as conservará senão forem os poetas, as tradições, e o grande poeta de todos, o grande guardador de tradições, o povo?
Eu creio na Senhora da Victoria de Santarem, e em muitos outros sanctos e sanctas, que a religião do povo tem por esses nichos e por essas capellas e por esses cruzeiros de Portugal, a recordar memorias de que se não lavrou outro auto, não se escreveu outra escriptura, de que não ha outro documento, e que os frades chroniqueiros não julgaram dever escrever no livro de terça ou de noa, em nenhum livro preto nem incarnado, porque o tinham por melhor escripto e mais bem guardado nos livros de pedra em que estava.
Coitados! não contaram com os apperfeiçoadores, reparadores e demolidores das futuras civilizações que, para pôr as coisas em ordem, tiram primeiro tudo do seu logar.
A camara de Santarem, não podendo demolir o arco, tomou um meio termo que appósto que ninguem é capaz de adivinhar. Afforou a capella por cima d’elle, com altar, com sanctos e tudo: e assim esteve afforada alguns annos, não sei paraquê nem porquê; o caso é que esteve.
O anno passado porêm (1842) começou a manifestar-se ésta reacção religiosa que os especuladores quizeram logo converter em ganancia pessoal, descontando-a no mercado das agiotagens facciosas; mas perdem o seu tempo, inda bem! Veio, digo, ésta reacção nas ideas das gentes; e a capella da Senhora da Victoria sôbre o arco, não sei tambem como nem porquê, foi desafforada, e restituida ao culto popular.
Subimos a ver a capella por dentro: é um rifacimento ridiculo e miseravel, sem nenhuma da solemnidade do antigo, nem elegancia moderna alguma.
Desappontou-me tristemente. Vamos ao Sancto-milagre depressa, que me quero reconciliar com Santarem: e ja começa a ser difficil.
Mas é injustiça minha. Que culpa tem ella, coitada?
Ai Santarem, Santarem, abandonaram-te, mataram-te, e agora cospem-te no cadaver.
Santarem, Santarem, levanta a tua cabeça coroada de tôrres e de mosteiros, de palacios e de templos!
Mira-te no Tejo, princeza das nossas villas: e verás como eras bella e grande, ricca e poderosa entre todas as terras portuguezas.
Ergue-te, esqueleto colossal da nossa grandeza, e mira-te no Tejo: verás como ainda são grandes e fortes esses ossos desconjuntados que te restam.
Ergue-te, esqueleto de morte, levanta a tua foice, sacode os vermes que te poluem, esmaga os reptis que te corroem, as osgas torpes que te babam, as lagartixas peçonhentas que se passeiam atrevidas por teu sepulchro deshonrado.
Ergue-te Santarem, e dize ao ingrato Portugal que te deixe em paz ao menos nas tuas ruinas, myrrhar tranquillamente os teus ossos gloriosos; que te deixe em seus cofres de marmore, sagrados pelos annos e pela veneração antiga, as cinzas dos teus capitães, dos teus lettrados e grandes homens.
Dize-lhe que te não vendam as pedras de teus templos, que não façam palheiros e estrebarias de tuas egrejas; que não mandem os soldados jogar a pella com as caveiras dos teus reis, e a bilharda com as cannellas dos teus sanctos.
Tiraram-te os teus magistrados, os teus mestres, os teus seminarios... tudo, menos o intulho e a caliça, as immundices e os monturos que deixaram accumular em tuas ruas, que espalharam por tuas praças.
Santarem, nobre Santarem, a Liberdade não é inimiga da religião do ceo nem da religião da terra. Sem ambas não vive, degenera, corrompe-se, e em seus proprios desvarios se suicida.
A religião do Christo é a mãe da Liberdade, a religião do Patriotismo a sua companheira. O que não respeita os templos, os monumentos de uma e outra, é mau amigo da Liberdade, deshonra-a, deixa-a em desamparo, intrega-a á irrisão e ao odio do povo.
Vamos ao Sancto-milagre.