Viagens na Minha Terra (grafia de 1943)/X
O vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada grandioso nem sublime, mas há uma como simetria de cores, de tons, de disposição em tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor e benevolência. As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem senão fugir para longe. Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro homem habitou com a sua inocência e com a virgindade do seu coração.
À esquerda do vale, e abrigado do norte pela montanha que ali se corta quase a pique, está um maciço de verdura do mais belo viço e variedade. A faia, o freixo, o álamo, entrelaçam os ramos amigos; a madressilva, a musqueta penduram de um a outro suas grinaldas e festões; a congossa, os fetos, a malva-rosa do valado vestem e alcatifam o chão.
Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre um claro das árvores a janela meio aberta de uma habitação antiga mas não dilapidada — com certo ar de conforto grosseiro, e carregada na cor pelo tempo e pelos vendavais do sul a que está exposta. A janela é larga e baixa; parece-me mais ornada e também mais antiga que o resto do edifício que todavia mal se vê...
Interessou-me aquela janela.
Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali?
Parei e pus-me a namorar a janela.
Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço.
Pareceu-me entrever uma cortina branca... e um vulto por detrás. Imaginação decerto! Se o vulto fosse feminino!... era completo o romance.
Como há de ser belo ver o pôr o sol daquela janela!...
E ouvir cantar os rouxinóis!...
E ver raiar uma alvorada de maio!...
Se haverá ali quem a aproveite, a deliciosa janela? ... quem aprecie e saiba gozar todo o prazer tranqüilo, todos os santos gozos de alma que parece que lhe andam esvoaçando em torno?
Se for homem é poeta; se é mulher está namorada.
São os dois entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher namorada; vêem, sentem pensam, falam como a outra gente não vê, não sente não pensa nem fala.
Na maior paixão, no mais acrisolado afeto do homem que não é poeta, entre sempre o seu tanto de vil prosa humana: é liga sem que não se lavra o mais fino do seu oiro. A mulher não; a mulher apaixonada deveras sublima-se. idealiza-se logo, toda ela é poesia, e não há dor física, interesse material, nem deleites sensuais que a façam descer ao positivo da existência prosaica.
Estava eu nestas meditações, começou um rouxinol a mais linda e desgarrada cantiga que há muito tempo me lembra de ouvir. Era ao pé da dita janela!
E respondeu-lhe logo outro do lado oposto; e travou-se entre ambos um desafio tão regular em estrofes alternadas tão bem medidas, tão acentuadas e perfeitas, que eu fiquei todo dentro do meu romance, esqueci-me de tudo o mais.
Lembrou-me o rouxinol de Bernardim Ribeiro, o que se deixou cair na água de cansado.
O arvoredo, a janela, os rouxinóis... àquela hora, o fim de tarde... o que faltava para completar o romance?
Um vulto feminino que viesse sentar-se àquele balcão — vestido de branco — oh! branco por força... a frente descaída sobre a mão esquerda, o braço direito pendente, os olhos alçados ao céu... De que cor os olhos? Não sei, que importa! É amiudar muito demais a pintura, que deve ser a grandes e largos traços para ser romântica, vaporosa, desenhar-se no vago da idealidade poética.
— Os olhos, os olhos... — disse eu, pensando já alto, e todo no meu êxtase — os olhos... pretos.
— Pois eram verdes!
— Verdes os olhos... dela, do vulto na janela?
— Verdes como duas esmeraldas orientais, transparentes, brilhantes, sem preço.
— Quê! Pois realmente?... É gracejo isso, ou realmente há ali uma mulher, bonita, bonita, e?...
Ali não há ninguém — ninguém que se nomeie hoje, mas houve... oh! houve um anjo, um anjo, que deve estar no céu.
— Bem dizia eu que aquela janela...
— É a janela dos rouxinóis...
— Que lá estão a cantar.
— Estão, esses lá estão ainda como há dez anos — os mesmos ou outros, mas a menina dos rouxinóis foi-se e não voltou.
— A menina dos rouxinóis! Que história é essa? Pois deveras tem uma história aquela janela?
— É um romance todo inteiro, todo feito como dizem os franceses, e conta-se em duas palavras.
— Vamos a ele. A menina dos rouxinóis, menina com os olhos verdes! Deve ser interessantíssimo. Vamos à história já.
— Pois vamos. Apeemo-nos e descansemos um bocado.
Já se vê que este diálogo passava entre mim e outro dos nossos companheiros de viagem.
Apeamo-nos com efeito, sentamo-nos, e eis aqui a história da menina dos rouxinóis, como ela se contou.
É o primeiro episódio da minha odisséia: estou com medo de entrar nele, porque dizem as damas e os elegantes da nossa terra que o português não é bom para isto, que em francês que há outro não sei quê...
Eu creio que as damas que estão mal informadas, e sei que os elegantes que são uns tolos; mas sempre tenho meu receio, porque enfim, enfim, deles me rio eu: mas poesia ou romance, música ou drama de que as mulheres não gostem, é porque não presta.
Ainda assim, belas e amáveis leitoras, entendamo-nos; o que eu vou contar não é um romance, não tem aventuras enredadas, peripécias, situações e incidentes raros; é uma história simples e singela, sinceramente contada e sem pretensão.
Acabemos aqui o capítulo em forma de prólogo; e a matéria do meu conto para o seguinte.