Viagens na Minha Terra (grafia de 1943)/XLVI

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Carta de Carlos a Joaninha: continua.

Júlia levantou finalmente para mim os seus olhos úmidos, assombrados das mais longas e assedadas pestanas que ainda vi em olhos de mulher, e disse-me:

— Carlos, eu estou triste. Devia consolar-me: diga-me alguma cousa que me console. Fale-me.
— Que hei de eu dizer?,..
— É um cavalheiro, Carlos: diga-me que o é, e desassombre-me deste terror em que estou.
— Pois duvida, Júlia?...
— Não duvido. Queremos-lhe todos muito aqui... muito demais... receio: como havemos de duvidar?
— Oh Júlia, perdoe-me! — exclamei eu lançando-me a seus pés, tomando-lhe as mãos ambas nas minhas, e beijando-lhas mil vezes num paroxismo de verdadeira contrição. — Perdoe-me, Júlia: bem sei que fiz mal, e prometo...
— Não prometa nada, senão que há de ser cavalheiro. Isso sei eu e sinto que o pode cumprir.
— Juro por... por ela.
— — Ela!... Ela ama-o, Carlos. É melhor dizer a verdade de uma vez, e encarar todas as conseqüências de uma posição difícil, do que iludir-se a gente sem as evitar. Laura ama-o, mas não deve nem pode amá-lo.

Se fosse livre, não sei o que diria — não sei o que faria eu... Mas não se trata de mim — prosseguiu com volubilidade febril — não se trata de mim, Carlos, trata-se dela. Laura não o pode amar, está comprometida. Há de partir em três meses para a Índia.

— Para a Índia!
— Sim: é verdade: vê-lo-á. O seu noivo é capitão ao serviço da Companhia, e parte em casando,

Eu sentia-me morrer o coração dentro do peito: foi a primeira dor verdadeira de alma que sofri... Aquele era o primeiro amor sincero da minha vida, e aquela foi também a primeira excruciante pena de amor por que passei.

Eu que de tais penas zombara sempre, que as desterrava da realidade para os romances, eu!... Ai! que poeta ou que novelista soube nunca pintar um padecer como eu experimentei naquela hora?

Não sei o que fiz nem o que disse; não me recordo senão que senti as lágrimas de Júlia caírem-me sobre a face e misturarem-se com as minhas que corriam em abundância. Levantei os olhos, para ela, e a expressão que vi nos seus... oh! como a hei de esquecer nunca?

Quanto há de piedade e compaixão no tesouro infinito de um coração feminino se derramava daqueles olhos celestes para me consolar. La não ficava senão uma tristeza profunda, desanimada e mortal...

Não sei que vasto pensamento, que idéia louca... ou antes, que pressentimento indeterminável e confuso me atravessou pelo espírito[1] — ou seria pelo coração? — naquele momento...

Se Júlia?...

Mas não pode ser.

— Júlia, Júlia. — bradei eu, — quero vê-la: hei de vê-la uma vez ao menos. Não me negue este ultimo favor. Sei que devo, que preciso, que é forçoso fugir dela. Mas antes hei de dizer-lhe...
— O quê?...
— Que a amo como nunca amei, como nunca mais hei de amar...
— Ai Carlos!
— Que para sempre, sempre...

Júlia levantou-se sem dizer palavra, e lançando sobre mim um olhar de inefável compaixão, saiu rapidamente do quarto.

Achei-me só, não sei o que pensei nem se pensei. Sentia-me aturdido da cabeça, exausto do coração — numa depressão de espírito[2] que tocava na estupidez. Se me apontassem urna pistola aos peitos, não levantava o braço para a arredar... Já não sentia pena nem desejo. Parecia-me que começava a morrer; e não achava que morrer custasse muito.

Neste estado fiquei não sei que tempo; muito não foi. Percebi que se abria a porta, não tive força para levantar os olhos. Até que senti uma doce e querida mão na minha... era Júlia.. e era Laura também... santo Deus! que estavam ao pé de mim ambas.

Júlia tinha a minha mão na sua; e Laura, encostada ao ombro da irmã, deixava cair sobre mim aqueles olhos em que a severidade habitual se tinha relaxado numa indulgência tão doce, numa compaixão tão celeste que, juro por Deus, naquela hora acreditei firmemente que tinha diante de mim dous anjos seus, baixados nas asas da piedade divina para me trazer todo o perdão. toda a misericórdia do céu à minha alma.

Como te direi eu, Joana, querida Joaninha, como te direi a ti que me amas, a ti que eu amo — porque te amo, e Deus me castigue, que deve! porque te amo, cegamente, te amo com este infame e abominável coração que Ele me deu — como te hei de eu dizer a ti, e para quê, as palavras que ali dissemos, os protestos que ali fiz, os juramentos que ali se deram, as promessas que ali foram trocadas?

Júlia foi para a janela — indulgente chaperão que nos não via e fingia não nos ouvir. O dia passou-se assim, um longo dia de junho que tão curto e rápido nos pareceu. Era noite quando fomos jantar.

À mesa, Laura apareceu em trajos de viagem: partia naquela noite para o Pais de Gales onde tinha uma amiga, com quem ia estar até ao dia terrível, e preparar-se para ele, me disse, longe de mim, no seio da amizade.

Imagine-se aquele jantar. Nem comer fingíamos. Ao sair da mesa achamos à porta da casa a caleche posta, o cocheiro na almofada, e o criado à portinhola. Montamos. as três irmãs e eu.

Eram duas milhas dali à estalagem onde tocava a mala-posta e onde Laura devia encontrá-la. Fizemo-las sem proferir palavra nenhum dos quatro.

A lua ia grande e bela com sua luz triste e fria por um céu sem nuvens. Era uma daquelas noites raras, mas admiráveis do breve estio britânico.

A areia que rangia com o atrito das rodas da carruagem nas lisas ruas do parque, os ramos descaídos das árvores por que roçávamos levemente ao passar, os veados mansos que se levantavam para nos ver — os faisões que erguiam seu rasteiro vôo de moita para moita ao sentir o estalido do chicote, com que o cocheiro mais moderava do que excitava os seus cava]os, tudo para mim eram impressões de nunca sentida e inexplicável tristeza, Ficava-me a alma após tudo aquilo, sentia fugir-me a felicidade para sempre, e que era eu que a afugentava, e que me ia encontrar só, desamparado e proscrito no deserto da vida.

Não me sentia força para blasfemar, para maldizer de Deus, senão tinha-o feito.

Tinha: e outras ânsias mais angustiadas e mortais me têm aflito na vida; em nenhuma me senti tão capaz de renegar de Deus e descrer dele como nesta.

Seria efeito da sua inexaurível piedade que talvez quis acudir à minha alma antes que se perdesse, seria por certo — pois nesse mesmo instante distintamente me apareceu diante dos olhos da alma a única imagem que podia chamá-lo do abismo; era a tua, Joana! Era a minha Joaninha pequena, inocente, aquele anjinho de criança, tão viva, tão alegre, tão graciosa que eu tinha deixado a brincar no nosso vale; o nosso vale rústico, tão grosseiro e tão inculto! ó como as saudades dele me foram alcançar no meio daquelas alinhadas e perfeitas belezas da cultura britânica. Os raios verdes de teus olhos, faiscantes como esmeraldas, atravessaram o espaço e foram luzir no meio daqueloutros lumes que me cegavam. A esteva brava, o tojo áspero da nossa charneca mandavam-me ao longe as exalações de seu perfume agreste, e matavam o suave cheiro do feno macio dessas relvas sempre verdes que me rodeavam. As folhas crespas, secas, alvacentas das nossas oliveiras como que me luziam por entre a espessura cerrada da luxuriante vegetação do norte, prometendo-me paz ao coração, anunciando-me o fim de uma peleja em que mo dilaceravam as paixões.

E tu, Joana, tu, pobre inocente, desvalida criancinha, tu aparecia-me no meio de tudo isso, estendendo para mim os teus bracinhos amantes como no dia que me despedira de ti nesse fatal, nesse querido, nesse doce e amargo vale das minhas lágrimas e dos meus risos, onde só me tinham de correr os poucos minutos de felicidade verdadeira da minha vida, onde as verdadeiras dores da minha alma tinham de ma cortar e destruir para sempre...

Oh! de quê e como é feito o homem, para que e por que vive ele? Que vim eu, que vimos nós todos fazer a este mundo?

Eu sentado ali nas almofadas de seda daquela esplêndida carruagem, rodeado de três mulheres divinas que me queriam todas, que eu confundia numa adoração misteriosa e mística, — cego, louco de amo-res por uma delas, no momento de lhe dizer adeus para sempre... eu tinha o pensamento fixo numa criança que ainda andava ao colo! —Revendo-me nos olhos pardos de Laura que eu adorava, eram os teus olhos verdes que eu tinha na alma! Os sentidos todos embriagados daquele perfume de luxo e civilização que me cercava, — era o nosso vale rústico e selvagem o que eu tinha no coração..,

Oh! eu sou monstro, um aleijão moral deveras, ou não sei o que sou.

Se todos os homens serão assim?

Talvez, e que o não digam.

Joana, minha Joana, minha Joaninha querida, anjo adorado da minha alma, tem compaixão de mim, não me maldigas. Não quero que me perdoes, nem tu nem ninguém, que o não mereço: mas que tenhas dó e lástima de mim.

Ai! que isso mereço eu, oh sim.

Deixa-me para aqui. Falta-me o ânimo para me estar vendo a este terrível espelho moral em que jurei mirar-me para meu castigo, donde estou copiando o horroroso retrato de minha alma que te desenho neste papel.

Sabia que era monstro, não tinha examinado por partes toda a hediondez das feições que me reconheço agora.

Tenho espanto e horror de mim mesmo.

Notas[editar]

  1. Na fonte <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1720> aparece "espirito", corrigido ao disponibilizar no Wikisource por se tratar de um óbvio erro.
  2. Na fonte <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1720> aparece "espirito", corrigido ao disponibilizar no Wikisource por se tratar de um óbvio erro.