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Viagens na Minha Terra (grafia de 1943)/XXXIV

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Carlos, Georgina e Frei Dinis. — A peripécia do drama.

Carlos estava meio sentado, meio deitado numa longa cadeira de recosto; Georgina em pé, com os braços cruzados e na atitude de reflexiva tranqüilidade. Um sol brilhante e ardente, um sol de mato, feria os estreitos vidros da pequena janela que si dava luz àquele quarto: a excessiva claridade era velada por uma longa e ampla cortina.

Carlos lançou de repente a mão a essa cortina e a afastou para avivar a luz do aposento. Um raio agudíssimo de sol foi bater direito no macerado rosto do frade, e refletiu de seus olhos encovados um como relâmpago de ira celeste que fez estremecer os dous amantes.

Não foi porém senão relâmpago: sumiu-se, apagou-se logo. Aqueles olhos ficaram mortais, mudos, fixos, envidraçados como os do homem que acabou de expirar e a quem não cerraram ainda as pálpebras.

E assim mesmo, aqueles olhos tinham o poder magnético de fixar os outros, de os não deixar nem pestanejar.

Curvo, encostado a um bordão grosseiro, o seu chapéu alvadio debaixo do braço, o frade deu alguns passos trêmulos para onde estavam os dous, arrastando a custo as soltas alpercatas que davam um som baço e batido, e faziam — não sei por que nem como — estremecer a quem as sentia.

Parou a pouca distância, e tirando a voz fraca e tênue, mas vibrante e solene, do intimo do peito, disse para Carlos:

— Tu maldisseste-me, filho, e eu venho perdoar-te. Tu detesta-me, Carlos, de todos os poderes da tua alma, com toda a energia de teu coração; e eu venho-te dizer que te amo, que tomara dar a minha vida por ti, que do fundo das entranhas se ergue este imenso amor que não tem outro igual, a pedir-te misericórdia, a clamar-te em nome de Deus e da natureza, a pedir-te, por quanto há santo no céu e de respeito na terra, que levantes essa maldição, filho, de cima da cabeça de um moribundo.

Eram ditas em tal som estas vozes, vinham pronunciadas lá de dentro da alma com tal veemência, que não lhas articulavam os lábios, rompiam-nos elas e saiam.

O soldado parecia desacordado, confuso e sem inteligência do que ouvia. Georgina impassível até ali, rígida e inabalável com o seu amante, sentia comover-se agora daquela angustia do velho. E que partia pedras a dor que vinha naquelas falas sepulcrais, que transudava daquele rosto cadavérico.

Ao mesmo tempo, um som confuso, um tumulto vago e abafado de mil sons que pareciam enredar-se, encontrando-se, tornando, indo e vindo, e dispersando-se para se tornar a unir, e tornando a dispersar-se enfim, reboava ao longe pela vila, estendia-se nas praças, concentrava-se nas ruas, e mandava àquela solitária e remota cela do convento uns ecos surdos, como os do mar ao longe quando se retira da praia no murmúrio melancólico que precede um temporal de equinócio.

— Ouves esse burburinho confuso, Carlos? E a tua causa que triunfa, é a destes loucos que sucumbe, é a de Deus que a si mesmo se desamparou. A hora esta chegada, escreveram-se as letras de Baltasar; a confusão e a morte reinam sós e senhoras da face da terra. Eu quero ir morrer onde haja Deus... Perdoai-me, Senhor, a blasfêmia!... onde o seu nome não seja profanado e maldito... Ao canto de uma pedra, debaixo de uma árvore há de ser, nalgum lugar escuso dessas charnecas, onde me não rasguem ao menos esta mortalha, e ma não insultem nos últimos instantes, porque eu sou frade, frade, frade... o maldito frade! Mas frade quero morrer, e hei de morrer. Oh! assim tivera eu vivido!
— Mas que foi, que sucedeu?
— O resto do exército realista evacua neste momento Santarém; vão em fuga para o Alentejo. Os constitucionais venceram na Asseiceira, e tudo esta dito para nós. Para mim, Carlos, falta uma palavra só: quererás tu dizê-la?
— Eu?
— Sim, tu Carlos. Revoga as palavras terríveis que proferiste, e em nome de Deus, filho, perdoa a teu...

A Carlos revolvia-se-lhe no peito urna grande luta. O horror, a compaixão, o ódio, a piedade iam e vinham-lhe alternadamente do coração às faces, e tornavam do rosto para o peito. Uma exclamação involuntária lhe rebentou dos lábios em meio deste combate.

— Padre, padre! e quem assassinou meu pai, quem cegou minha avó, e quem cobriu de infâmia a minha... a toda a minha família?
— Tens razão, Carlos, fui eu; eu fiz tudo isso: mata-me. Mas oh! mata-me, mata-me por tuas mãos, e não me maldigas. Mata-me, mata-me. É decreto da divina justiça que seja assim. Oh! assim meu Deus! às mãos dele, Senhor! Seja, e a vossa vontade se faça...

O frade caiu de bruços no chão, e com as mãos postas e estendidas para o mancebo, clamava:

— Mata-me, mata-me! Aqui há pouca vida já: basta que me ponhas o pé sobre o pescoço; esmaga assim o réptil venenoso que mordeu na tua família e que fez a tua desgraça e a de quantos o amaram, Sim, Carlos, sê tu o executor das iras divinas. Mata-me. Tantos anos de penitência e de remorsos nada fizeram: mata-me, livra-me de mim e da ira de Deus que me persegue.