Vida do Padre José de Anchieta/Carta do Padre Pero Rodrigues

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Aos padres e irmãos da Companhia de Jesus.

Aceitei, com particular gosto, a ocupação de escrever a santa vida e obras maravilhosas do Padre José de Anchieta, da nossa Companhia, e dos primeiros que nesta Província do Brasil trabalharam, mais pelas livras da injúria do tempo, que é o esquecimento, que não por me parecer que o podia fazer com satisfação que elas merecem, por ser vida e obras de um varão ilustre em virtudes, e privilegiado com graças de Deus Nosso Senhor mui singulares, para cujos dignos louvores não é capaz meu talento.

Porém confio de Sua Divina Bondade, fonte de todo o bem, que será esta relação a toda a pessoa mui aceita, em especial aos nossos, por cujo respeito tomei este trabalho (se algum tive em ordenar o que escrevo), porque verão aqui, não só pintado, mas quase posto em obras, o instituto e espírito de nossa santa Religião, e, entre todos, os padres e irmãos desta província enxergarão as virtudes em que mais se esmeravam os antigos dela, aos quais temos particular obrigação de imitar, pois eles tanto à sua custa nos facilitaram os trabalhos, e abriram o caminho, e mostraram o perigo de que nos havemos de guardar.

Outra razão tive para tomar esta empresa com gosto particular, da qual eu só posso dar testemunho, que é esta. Esse tempo que alcancei em vida este servo de Deus, não deram as ocupações de ambos, lugar para tratar mais familiarmente, nem alcançar muito de suas heróicas virtudes, em especial por ele as saber mui bem encobrir, com o véu da humildade e santa dissimulação. Porém, depois de sua morte, observei, dentro de mim, que todas as vezes que falava e ouvia falar em suas coisas, saía da pratica outro, com novo amor à virtude e desejo da perfeição, e os com que eu falava, creio levariam os mesmos e maiores.

Daqui comecei a ter mor conceito de suas virtudes, pois só com se falar delas parece que se pegavam na alma com amor e afeição, pelo que, quando o Rev. Padre Provincial Fernão Cardim me encarregou esta obra, a aceitei com particular devoção, com esperança em Deus Nosso Senhor, e na intercessão deste Santo, que sairia com ela para a glória do mesmo Deus e de seu servo, e proveito especial de muitos.

E pois sua santa vida foi tal, que pôs em admiração a pessoas graves seculares, e o que mais é, aos mesmos índios de tanto menos capacidade, tenho por certo que fará maior impressão, naqueles que, por razão de seu estado, sabem pesas e estimar o ser e valia das virtudes religiosas. E a nós os desta Província dará motivos para também seguirmos o caminho que nos deixou aberto, do zelo da salvação do Genito destas partes, este Apóstolo do Brasil, como lhe chamou, pregando em suas exéquias, o Administrador Bartolomeu Simões Pereira, prelado do Rio de Janeiro, derramado muitas lágrimas à volta deste e de muitos outros louvores.

É de confiar que o mesmo Deus que assim se comunicou a este santo varão o faz e fará a outros, para que, também desta parte do mundo saiam, e sejam conhecidos, varões ilustres no serviço de Deus e conversão da gentilidade, para a glória do mesmo senhor.

PERO RODRIGUES