Vida do Padre José de Anchieta/I/XIV

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Antes do Padre José, quatro provinciais criaram e governaram esta Província, e com seu exemplo e prudência, a puseram em grande altura de perfeição, virtudes religiosas, letras e espírito, donde nasceu o fruto mui abundante, de que todo o Estado do Brasil gozou, com muito proveito das almas e geral edificação, trabalhando assim de melhorar os bons costumes nos portugueses, como de plantar e conservar a fé entre os bárbaros, novamente convertidos. Foram estes o Padre Manuel da Nóbrega, primeiro provincial; o Padre Luís da Grã, o segundo. Não desmerece o terceiro lugar o santo Padre Inácio de Azevedo. Posto que não governou a Província como provincial, porque a tinha já governado, a primeira vez que veio a ela, como visitador; e da segunda, que vinha como provincial, a honrou e enriqueceu com seu santo martírio, dando a vida pela fé, a quinze de julho do ano de mil quinhentos e setenta, no mar da ilha de Palma, uma das Canárias, com trinta e nove companheiros. Lê-se este martírio pelo mesmo tempo nos Colégios desta Província do Brasil, e o escreveu o Padre Pedro de Ribadeneira, na vida do Padre Geral Everardo Mercuriano, de boa memória, por estar informado e satisfeito das muitas partes, que para o cargo concorriam no padre.

Profecias[editar]

Neste tempo andava o Padre José em missão na Ilha de Itaparica, a maior das que há na Bahia, confessando e dando remédio de salvação aos índios, por haver ali ainda então muitos. Mandou-lhe o padre provincial, seu antecessor, recado que se viesse para o Colégio, o que logo fez, e o recado o tomou estando atualmente assentado em um tição, confessando uma índia velha muito doente, deitada na rede junto ao fogo. Quisera o Senhor da casa melhorar o assento, mas ele não o consentiu, dizendo que antes de acabar aquela confissão, lhe haviam de trazer outro assento de menos gosto seu. E assim foi, que antes de acabar a confissão chegou o recado, que disse.

Nem é muito, estando à porta deste cargo, antevê-lo, pois havia mais que um ano lh’o tinha Deus revelado, na nossa casa de São Paulo, como consta do testemunho do Padre Agostinho de Matos, que então era irmão, e foi presente a tudo e o refere desta maneira: “Indo o Padre José visitar aquela casa, estando ao fogo no inverno, diante de três padres e de dois irmãos, disse quase zombando: “ora, olhai o que dizem as velhas, que hei de ser provincial, e que boas costas tenho”; disse mais que havia de ser reitor da Bahia, mas que não havia de servir para o cargo.

Espantados os presentes notaram o dito do padre e o tempo, e vendo depois que tudo assim se cumprira, deram a Deus muitas graças, por se comunicar a seu servo, tão extraordinariamente.

Vindo o Padre José ao Colégio, fez o padre provincial uma prática, e leu a patente do nosso padre geral, entregou o cargo ao Padre José, e se despediu beijando os pés a todos com muitas lágrimas, assim dos superiores como de todo o colégio que estava presente. O Padre José aceitou o novo trabalho com muita dor e sentimento seu, e ao dia seguinte, fazendo outra prática, em que nos pediu a todos o ajudassem com suas orações, lhes beijou também os pés.

Virtudes que mostrou no governo — 1578[editar]

Começou a governar a Província no ano de mil quinhentos e setenta e oito, e o continuou por obra de sete anos com muita prudência e inteireza, temperando-a com sua natural brandura e benignidade, sendo em todo aquele tempo o que sempre fora, na oração e familiaridade com Deus, e no tratamento de sua pessoa mui exemplar, e nada pesado aos súditos, antes a todos um vivo retrato de virtudes, de modo que, calando, parece que dizia o que São Paulo escreve aos filipenses, capítulo quarto, que fizessem o que dele aprenderam, por obra e por palavra, quae didicistis et accepistis et vidistis in me haec agite. Então se mostrava com todos mais fácil e humano, de modo que folgavam de se confessar com ele os de casa, antes que com seus confessores ordinários. Nas viagens que fazia por mar, vigiava toda a noite, para que os outros dormissem descansados, e quase todo esse tempo gastava em contínua oração. Caminhando por terra sempre conservou seu antigo costume de andar a pé e descalço, com o bordão na mão.

Mansidão[editar]

Tinha singular graça e modo para temperar discorde, e consolar afligidos, e desassombrar tentados, mas o que ele muito se enxergava, era uma contínua paz e mansidão, enquanto se queriam ajudar aqueles com que tratava.

Acho nos testemunhos dos nossos padres, dois passos em que ensinou de palavra esta virtude, que em seu peito tinha mui altas raízes. O primeiro é este: ouviu contar que dizia um padre que não havia o superior de passar por falta de súdito, sem a emendar com aviso, repreensão ou penitência. Louvou o Padre José o dito, e acrescentou: “e eu digo que não há de haver falta, no súdito, que o superior a não chore duas a três vezes primeiro, diante de Deus, que lhe falte nela”.

Segundo passo: perguntou o Padre José, sendo provincial, porque se houvera asperamente com um súdito. Respondeu: “quem me deu o ofício de ministro, me instruiu que não deixasse passar ocasião, em que pudesse exercitar os súditos em paciência, que o não fizesse”.

A que o Padre José, acudiu dizendo:

“Pois eu in nomine Domini, vos dispo agora esse hábito de rigor e vos visto outro de mansidão, com que nunca deis ocasião a nenhum súdito de impaciência, senão de todo amor e afabilidade”.

O padre que era ministro prometeu de o cumprir e assim o fez e faz hoje em dia, e conta isto que passou com o Padre José. E foi este o Padre Afonso Gonçalves.