Vida do Padre José de Anchieta/II/IV

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Caridade com os enfermos[editar]

Exercitava sua humildade e caridade com os enfermos, aonde quer que estava, com muito gosto seu e edificação de todos; assim no tempo que era provincial, como em todo o mais de sua vida. E neste Colégio da Bahia, era o mais certo e contínuo ajudante que o enfermeiro tinha em todo o serviço da enfermaria, levantando e deitando os doentes, e se era necessário vigiar sobre algum, mandava dormir ao enfermeiro e vigiava por ele. Aconteceu-lhe por vezes, estando em cama, levantar-se de noite a ir à cozinha consertar os xaropes e purgas e temperar o comer para outros doentes por sua mão, por falta de enfermeiro.

Caridade com os índios[editar]

O mesmo usava com os índios quando com eles se achava, curando-os em suas doenças, posto que molestas e nojentas, com sangrias e outros remédios, que o tempo e lugar sofriam, e como era por uma parte muito mavioso e compassivo, e por outra muito animoso, nunca se negava para os servir no espiritual e temporal, ainda que houvesse de passar fomes, frios e maus caminho, e todas as mais incomodidades que a terra e o tempo ocasionavam.

Onde desejava morrer[editar]

Porque tudo isto ficava muito aquém daquele ânimo com que, indo uma vez com seu companheiro, ambos a pé e descalços, por um caminho muito fragoso e de muitas lamas, lhe disse: “Irmão Jerônimo Soares, uns desejam morrer nas casas e outros nos colégios, ajudados de seus irmãos, ma eu vos digo que não há coisa melhor que morrer em um atoleiro destes, por obediência e bem das almas”.

Com os companheiros[editar]

Trabalhava de não dar moléstias aos companheiros com quem caminhava, antes servia-os em tudo. Um padre afirma em seu testemunho, que caminhando com o padre, quando vinha a noite, em lugar de descansar se punha a enxugar o fato do companheiro, e meter-lhe brasas debaixo da rede em que dormia, e o restante da noite passava em oração, passeando ou de joelhos, ou ao pé de um pau, de que o companheiro dava fé quando acordava. Até aos índios, caminhando, agasalhava de noite, estando eles dormindo em suas redes, atiçando o fogo debaixo delas, que não tem outros cobertores, nem abrigo. E isto fazia ainda no tempo que era provincial.

Queriam os índios de uma aldeia lançar ao mar uma canoa grande, e não podiam por serem poucos. Acertou de se achar ali o Padre José, e eles, pela opinião que tinham que Deus tudo fazia por ele, rogaram-lhe fosse lançar uma benção à canoa, para a poderem lançar ao mar. Respondeu que além da benção, também os ajudaria; como chegou e pôs as mãos na canoa, logo a levaram com facilidade, concorrendo a fé dos índios com a oração do padre.

Com pobres — Cristóvão Pais Dáltero[editar]

A pobres e viúvas e pessoas desamparadas, costumava ajudar, com esmolas que para isso lhe davam, e mandavam de outras partes pessoas ricas e devotas desta santa obra, entre os quais foi Cristóvão Pais Dáltero, homem muito principal em Pernambuco, e senhor de três engenhos de açúcar, ao qual, agradecendo por carta o Padre José, a esmola que lhe mandara para dar aos pobres, acrescentou o padre que ele Cristóvão Pais era ainda o que ficava devendo, pois que por meio dos pobres assegurava as riquezas do céu.

O qual movido com estas palavras, beijou a carta, posto de joelhos e abraçando-a e pondo-a sobre o coração, disse que fazia voto ao Senhor Deus, de nunca em sua vida deixar de fazer esmola aos pobres, mas antes de lh’a dar dobrada da que até então dava, e assim o cumpriu, porque costumado antes dar semana, em certo dia, a cada pobre que lhe pedia, um vintém, daí por diante enquanto viveu dava por sua mão meio tostão, e na quaresma quatro vinténs.

Sendo o Padre José superior na Capitania do Espírito Santo, provia de vinho, azeite, sal e mais coisas necessárias a um padre que tinha cuidado de uma aldeia. Comprava e pagava por ele, e o deitava em livro, até que lhe disse uma vez: “V. R. cuida que tudo há de ser levar e nunca pagar; não haverá assim de ser, façamos conta hoje, que o hei de esfolar”.

Fizeram conta e ficou devendo uma boa soma em cruzados; disse então o Padre José, como quem conclui contas: “é certo que cuidava V. R. que lhe havia de levar alguma coisa? Não somos nós irmãos? V. R. não ajuda a manter esta casa? Enfim já tem pago, eu sou o que devo”. E com esta benignidade, lhe perdoou toda a dívida.

Mortes desatradas de pessoas que não tomaram seu conselho[editar]

Por vezes aconteceu antever o Padre José com espírito mais que humano, os perigos em que alguns homens andavam de grandes desastres, avisá-los disso, e por eles não quererem tomar seu conselho, perderem miseravelmente suas vidas. Referirei dois casos.

O primeiro: a Frutuoso da Costa, morador na Vila de São Paulo, disse-lhe o padre que se fosse para sua casa, porque o haviam de matar. Respondeu que trazia ali negócios. Disse-lhe. ..........................

O segundo: um homem, valente e soberbo, vivia mal com a mulher de outro, desprezível. Avisou-o, o Padre José que se guardasse que o haviam de matar, o mesmo lhe disseram outros amigos, ao que ele respondia: “que me há-de a mim agora fazer fulano ?”Contudo o marido espreitou, e achando-os no malefício, os matou ambos à flechadas, por onde tomou o padre ocasião de fazer uma cantiga celebrada naquela terra, que começava:

El que muere en el pecado,
Sin arrependirse del,
Deste tal es escuzado
Campanas doblen por el