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Vida do Padre José de Anchieta/IV/IX

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A quem por tão diversas maneiras, tantos e tão grandes testemunhos teve na terra, em confirmação de sua virtude e santidade, parece que já não faltava mais que ter algum do céu, e dos celestiais moradores. E até com este regalo divino, a bondade infinita favoreceu ao santo Padre José, que na vida mortal e carne fraca, fez uma vida angélica em seu espírito, e na conversação exterior muito exemplar e digníssima de ser imitada.

Estando por vezes em oração no seu cubículo, entrava o porteiro com algum recado; e era tão grande a claridade que dentro via, que ficava espantado. Um dia, como outros muitos costumava fazer, veio o Padre José, com o Padre Manuel Viegas, da casa de São Vicente à fortaleza da Bertioga, situada em uma das barras da Ilha de São Vicente, com ocasião de se ver com o gentio maromomi, cuja língua, diferente da geral de toda a costa, começa de aprender e a queria meter em regras e arte, para por si e por outrem, ajudar a conversão destes pobres, em tudo desamparados.

E de fato, alcançou o que pretendia com a graça divina, que era fazer um modo de arte, catecismo e doutrina naquela língua. E muito mais alcançou Deus o que pretendia, que era recolher alguns deles no céu, e deixar o caminho feito para os que haviam de entrar, e facilitar esta empresa, aos que a houvessem de seguir.

Mandou o Padre José, ao Padre Manuel Veigas fosse buscar algum daqueles gentios, para continuar com sua doutrina; e andou lá dois dias. Entretanto pediu o padre ao hóspede, o deixasse ir dormir a uma ermida de Nossa Senhora, que estava mui perto da fortaleza, obra de trinta passos de distância. Foram com o padre para o agasalharem, na ermida o hóspede e um genro seu, de nome Afonso Gonçalves, com candeia. E tornando a trazer consigo a candeia, o deixaram só às escuras, e se recolheram na torre, onde viviam com as suas famílias. Sendo já alta noite, e estando todos dormindo, só a mulher de Afonso Gonçalves estava esperta, a qual o acordou dizendo: “senhor, acordai e ouvireis uma coisa maravilhosa”. Acordou, levantou-se, abriu uma janela da fortaleza e viram ambos com os seus olhos a ermida, por entre as telhas e porta, e por cima dos flechais, toda com seu alpendre alumiada, com grande resplendor, que os pôs em admiração.

Juntamente ouviram uma música tão suave, que o enlevou a ele e tirou de seu sentido, como em seu testemunho jura. E querendo descer abaixo, para ver onde a música se dava, por lhe parecer que a ouvia de longe, imaginando que seria algum navio que viesse entrando pela barra, àquelas horas da noite, querendo descer como digo, se lhe arrepiaram os cabelos com temor, e lhe pareciam que pegavam e tinham mão dele; e assim não se atreveu a ir ver o que era. Durou a claridade e música por bom espaço de tempo, de que ambos ficaram por extremo consolados. Vinda a manhã fizeram diligência pelos moradores da fortaleza, e por sua gente de serviço, se levara alguém lume à igreja; e acharam que não. Falaram então ao mesmo Padre José, e tratando do resplendor e da música que ambos viram e ouviram, a resposta do padre foi obrigá-los, como filhos seus espirituais que eram, não descobrissem a ninguém, o que viram e ouviram daquela claridade e música enquanto vivessem.

O que eles pelo amor e respeito que tinham ao padre, guardaram inteiramente, sem o descobrirem a pessoa viva, até aquele dia que era três de outubro de seiscentos e dois anos, em o qual dia, sendo então morador da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, perguntado juridicamente, pelo Reverendo Padre Martim Fernandes, vigário geral da mesma cidade, se sabia coisa da vida do Padre José de Anchieta, jurou tudo o acima dito.

E acrescentou o dito Afonso Gonçalves que lhe parecera aquela música e resplendor coisa do céu, assim pelo grande temor que em si sentira, e juntamente muita consolação, como por se ver atalhado sem poder ir ver o que era; e também como o mesmo padre querendo primeiro encobrir esta maravilha, e vendo que não podia, lhes mandou o tivessem em segredo.

Bendito seja Deus em seus Santos, e permita que este bem-aventurado seja com brevidade ilustrado, com a beatificação e canonização da Igreja Santíssima Romana, para glória do mesmo Senhor, e proveito dos cristãos, em especial de seus devotos, como merecem tão heróicas virtudes e milagres.

LAUS DEO, ET BENEDICTAE VIRGINI CONCEPTAE SINE PECCATO ORIGINALI.