Vida e Feitos D' El-Rey Dom João Segundo/CCI
Quando el-rey deu casa ao principe Dom Afonso seu filho antes das festas me passou a elle. E eu pesando-me muyto lhe pedi por merce com algũas lagrimas que me nam desse ao principe porque nenhũa pessoa desejava servir senam a su' alteza; e mais que era muyto moço e me agasalhava com meu tio e pasando-me ao principe ficava desagasalhado.
E el-rey me disse: "Eu quando dey casa a meu filho dey-lhe os meus livros da cosinha para que elle à sua vontade escolhesse nelles os moradores que quisesse, antre os quaes elle escolheo a ti; ora como queres tu que lhe tire eu nenhum daqueles que elle per meu mandado escolheo? E mais por essa vontade e lagrimas que te vejo me lembrarey sempre de ti; e servindo tu a meu filho serves a mi; e o empedimento de teu tio he nenhum, porque meu filho nam no ey-d' apartar de mi; e mais he melhor pera vosoutros porque teu tio requererá a mi por ti e tu a meu filho por elle". Tam humano era el-rey pera hos bayxos que a hum moço como eu estava assi confortando e dizendo taes palavras; e sempre em vida do principe me fazia favor.
E depois da morte do principe quando torney pera elle me fez logo merce da sua escrevaninha que ficara de Ruy de Sande quando fora acrecentado, e avia perto dum ãno que a nam dava a ninguem, e era entam a melhor cousa que avia antre os moços da camara, porque el-rey sempre escrevia com a sua escrevaninha, e nunca molhava a pena quando escrevia, somente eu lha tinha na mão molhada e limpa, e como a com que elle escrevia gastava a tinta, elle ma dava e tomava a outra; e sempre tinha na mão hũa pena concertada com tinta, e via tudo o que elle escrevia. E hum dia estando elle escrevendo pera el-rey de Castella, e eu soo com ele no escriptorio por eu ver ser cousa de muyta substancia estava com o rosto virado pera outra parte, e elle querendo a pena quando me vio estar virado disse: "Vira-te pera cá que se me nam fiasse de ti nam te mandaria estar hi. E porém isto nam te dê presunçam senão vontade pera milhor servir e ser milhor ensinado". E eu lhe beijey a mão de que elle mostrou folgar; e dava a outros e a mim tantos e bons ensinos que nunca ouve pay que os tais desse; e elle me ensinou as oras polo norte, e assi outras cousas que por lhas eu entam não merecer quis Deos que agora lhas servisse em escrever sua vida e contar suas vertudes.
Eu debuxava muito bem, e elle folgava muito com isso e me acupava sempre, e muitas vezes o fazia perante ele em cousas que me elle mandava fazer. E porque eu levasse gosto em o fazer me disse hum dia perante muitos que me prezasse muito disso porque era tam boa manha que elle desejava muito de a saber, e que o emperador Maxemeliano seu primo era grande debuxador e folgava muito de o saber e fazer.
E porque eu começava de tanger bem me mandava ensinar e me ouvia muitas vezes na sesta e de noite na cama, e me gabava tanto e tantas vezes que eu nam cuidava em outra cousa senam em servir e aprender.
E estando hũa noyte na cama ja despejado me perguntou se sabia as trovas de Dom Jorge Manrrique que começam "Recorde el anima dormida", e eu lhe disse que si; fez-mas dizer de coor, e depois de ditas me disse que folgava muito de mas ver saber e que tam necessario era a hum homem sabê-las como saber o pater noster; e gabou muyto o trovar de muito singular manha e isto porque eu fiz hũa trova que elle vio e a gabou muito por me dar vontade de ho aprender e saber fazer.
Quando el-rey hia pera o Algarve no tempo de seu falecimento, deziam-lhe os fisicos que se guardasse de dormir de dia, e elle por nam dormir jugava sempre na sesta o enxadrez; e no caminho ja na serra do Algarve foy jantar a hum ribeiro de muito boa agoa debayxo de hũas sovereiras grandes; e depoys de comer quisera jugar ho enxadrez como sempre fazia por nam dormir, e a bolsa com hos trebelhos estava ahi e ho tavolleyro era diante com ha cama per esquecimento e elle ouve disso desprazer e disse muito maas palavras ao moço da guarda-roupa e bem agastado. E eu vendo como estava assi apayxonado, ajuntey duas folhas de papel e com tinta debuxey nellas hum tavoleyro e com huũa pouca de cera vermelha fuy loguo e disse-lhe: "Senhor, aqui trago hum tavoleyro", e apeguei-lho na mesa com a cera; ficou tam ledo e folgou tanto como se fora hũa grande cousa e fez-me muito favor gabando-me muyto, e disse perante todos: "Pera que he trazer taboleyro nem trazer nenhũa cousa senão trazer somente Resende?". Que desta maneira era agardecido de qualquer cousa por pequena que fosse.