Vida e Feitos D' El-Rey Dom João Segundo/CLIV

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Disseram muitos grandes a el-rey Dom Fernamdo de Castella que devia de castigar muyto o seu coronista-moor porque o vencimento e toda a honrra da batalha de Touro dava ao principe de Portugal, e que elle soo fora o vencedor. E tantas vezes lho disseram e apertaram que ho visse, que el-rey mandou vir ho coronista perante si e lhe fez ler ho capitolo perante os que lho tinham estranhado. E depois de visto como singular principe que era e muy esforçado rey, disse ao coronista que estava muito bem escrito, e que nam tirasse nem posesse palavra, porque tudo aquilo e muito mais era verdade, que ele o vira muy bem por seus olhos e que assi ficasse escrito porque assi era verdadeiramente. Palavras certo de muyto louvor pera ambos, e ambos foram singulares principes.

E a raynha Dona Isabel de Castella estando hum dia huns grandes senhores com ella cuidando que lhe apraziam nisso lhe disseram mal d' el-rey Dom Joam. E ella como tam excelente e singular princesa como era lhe respondeo: "Prouvesse a Deos que tais fossem meus filhos como elle he".

E outra vez estando em quebra com el-rey lhe disseram muytos senhores em hum conselho, que pera que sofria tantas cousas a el-rey de Portugal, que lhe fizesse guerra e lhe tomasse o reyno. E ella lhe perguntou pera ver como se poderia fazer, que gente de cavalo averia em Castella e em Portugal, sabendo-o ella muy bem. Disseran-lhe que em Castella averia hi dezaseis mil de cavallo e di pera cima, e em Portugal a todo mais sete ou oyto mil, e ela lhe respondeo: "E que faremos nós a ysto que esses todos sam filhos, e os nossos sam vassallos?". Isto dizia a raynha porque sabia em quanto estremo el-rey era amado dos seus, e que todos aviam de morrer diante delle. E quando lhe deram a nova de como el-rey era morto disse: "Agora morreo o homem que eu em tanta estima o tinha".

E el-rey Carlos de França fazendo a mayor parte da christandade ligua contra elle, quando lho disseram, disse que nam dava nada por isso, que pera desbaratar todos nam avia mister mays que ser com el-rey Dom Joam de Portugal seu yrmão. E que pera tomar o mundo elles ambos abastavam. E este foy singular principe .

E o cardeal de Portugal Dom Jorge da Costa, querendo grande mal a el-rey Dom Joam, e muyto grande bem a el-rey Dom Afonso, cuja feytura era quando lhe disseram como era morto el-rey Dom Joam, em Roma onde estava disse perante muitos: "Agora morreo o melhor rey do mundo, filho do melhor homem do mundo". Foy el-rey tal que seus inmigos em vida e depois de morto, nam podiam deyxar de dizer bem delle e louvarem suas obras.

E Monseor d' Escalas yrmão da raynha d' Ingraterra homem muy principal", veo a ver Portugal e Castella e a guerra de Granada, e tornou por Lixboa, onde el-rey lhe fez muyta honrra e merce, e deu muy honrrada enbarcaçam em que foy. E laa em Inglaterra falando nas cousas de caa lhe perguntou el-rey, que qual era a cousa que milhor lhe parecera. E elle respondeo que vira hũa de que vinha muy sastifeyto, a qual era ver hum homem que mandava todos e ninguem mandava a elle. E isto dizia elle por el-rey Dom Joam, o qual foy sempre tanto contra sua condiçam ser mandado que disse hum dia, que por menos mal averia a hum rey ser puto ou erege que eram as piores partes que podia ter que ser mandado.

E o prior do Crato Dom Diogo d' Almeida pessoa muy principal e muy aceyto a elle, estando el-rey hum dia em hũa pratica com outros nam falando com ele, o prior atravessou-se e falou, e ele lhe respondeo: "Isso seraa querer mostrar que tendes comigo valia". E outro dia estando el-rey assinando encostado sobre a mesa, o prior se chegou por detras muito a el-rey com o barrete na cabeça; e el-rey quando o vio tam acerca disse alto: "Chegay-vos pera lá mais, mais, mais, que o rey nam tem avesso nem dereito". Tudo ysto a fim de nam parecer alguem que o podia governar; e assi viveo sempre absolutamente senhor atee a ora de sua morte.