Vida e Feitos D' El-Rey Dom João Segundo/CLXI

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E pasados alguns dias antes da ygreja se acabar a raynha em pubrico se veo agravar a el-rey porque nam dava lugar que fosse christaã, dando-lhe pera ysso muytas e muy boas rezões fundadas no amor de Deos. E el-rey se escusava com a ygreja nam ser acabada, e tambem por esperar por o principe seu filho que era longe e o tinha mandado chamar. E neste tempo se finou de doença frey Joam o principal dos frades, e com sua morte foy el-rey muy anojado porque cria muyto nelle. E receando de os frades morrerem e desejando ja da raynha ser christaã, porque os frades eram ja todos doentes, perguntou a frey Antonio a quem o carrego ficou sobre os outros se com toda sua doença poderia somente fazer a raynha christaã porque elle estava de caminho pera a guerra e folgaria muito de deixar a rainha cristaã e sem ysso lhe pareceria que nam seria vencedor nem tornaria de laa. E frey Antonio lhe disse que con toda sua fraqueza por serviço de Deos e seu o faria; e concertado tudo como cumpria em muita perfeiçam, na mesma casa onde el-rey o foy, e por aquella mesma maneira sabado quatro dias do mes de Junho do dito anno a raynha com a graça de Deos sendo el-rey presente foy feita christaã com grande devaçam e muito acatamento a Deos e ouve nome Dona Lianor por amor da raynha Dona Lianor.

E no mesmo dia em que a raynha foy feita christaã, porque el-rey ja ordenava de se yr à guerra lhe entregaram o capitam, e os frades a bandeira com a cruz que lhe el-rey de cá mandava, e lhe disseram as virtudes daquelle sinal da cruz, e quantos com elle foram com poucos vencedores de muytos, e que el-rey por ysso lha mandava que a tevesse em grande honrra e estima; e com estas palavras o dito rey com os joelhos no chão e a cabeça descuberta ha tomou em suas mãos com muito acatamento, e de sua mão a entregou logo a Dom Gonçalo homem principal e seu alferez-moor. E el-rey e todos os senhores e fidalgos se foram com elle até sua casa; e por mayor reverencia da bandeira hiam alguns senhores com abanos abanando-a que esta he hũa grande cerimonia e acatamento que se faz ao rey.

E aa segunda-feira logo seguinte seis dias de Junho, ho capitam e frades foram ao paço da raynha per seu mandado pera lhe tirarem o capello do oleo, e folgou muito com elles e muy honradamente os agasalhou, e com grande tento lhe perguntou pollas cousas da fee, rogando-lhe que muy decraradamente lhas dissessem pera as cumprir inteiramente. E os frades lhe louvaram muyto sua tençam e devaçam, e lhe disseram aquellas cousas da fe que entam mais cumprião. E ella assi como as elles diziam as punha no estrado per tentos de pedrinhas que he a sua arte memorativa dizendo que por ali lhe lembrariam; e assim lhe esteve perguntando com muita prudencia e repouso polas cousas destes reinos, e por el-rey e a raynha e seus estados; e depois de com verdade responderem a tudo se despediram della, e lhe mandou fazer merce de muita soma de sua moeda e de mantimentos tudo com muyta graça e nobreza.

E acabadas assi as ditas cousas o capitão disse a el-rey que pois tinha mandado ajuntar suas gentes pera a guerra, que lhe pedia por merce que por quanto a frota e gente della o nam serviam e adoeciam e morriam sem proveyto no porto se servisse de tudo com tempo. E el-rey folgou muito com sua lembrança e apressou sua partida pera yr fazer guerra a huns senhores seus vassalos que lhe desobedeciam em hũas ilhas situadas no Rio do Padram. Partio el-rey pera a dita guerra, e levava diante a dita bandeira de Christo em mão do alferez-mor; e el-rey e todolos seus hiam a pee e descalços porque a terra he de tal calidade que os pes não consintem calçado nem os corpos vestidos, e o capitão se despedio delle e foy dar hordem ao porto como os navios e gente delle o viessem servir como vieram. E depois dalgũas grandes e cruas pelejas que ouveram com os das ylhas que desobedeciam a el-rey em que morreo muita gente e boa parte dos christãos, o senhor principal da ylha vendo-se sem remedio foy-lhe necessario pedir piadade a el-rey e por-se em suas mãos e obediencia; e el-rey lhe deu a vida e lhe tirou toda a honrra, terras e rendas que delle tinha e o desfez de fidalgo, de maneyra que com a ajuda e favor d' el-rey de Portugal, e por o dito rey ser favorecido da bandeira da cruz que levava elle ouve a vitoria de seus ĩmigos como desejava. E a gente de seu arrayal foy estimada em oytocentos mil homens, e segundo o parecer dos que os viram tomariam cinco legoas de terra.

E dahi despedio el-rey o capitão e gente de Portugal com muita honrra e merces que a todos fez; e ficaram com elle quatro frades e alguns outros christãos com todolos hornamentos da ygreja pera lhe dizerem missa e fazerem christãos seus filhos e todolos de sua corte. E assi ficaram os oficiaes fazendo a dita ygreja e hos outros seus oficios e has molheres. E ficou hum negro christão natural da terra que sabia ler e escrever, e começava ja de ensinar os moços da corte filhos dos grandes, que he hũa grande memoria d' el-rey; e assi ficaram outras pessoas de descriçam ordenadas pera yrem por terra descubrir outras terras com fundamento da India e Preste Joam. E o capitam e frota se tornaram a estes reynos, e acharam el-rey em Lisboa no anno de quatrocentos e noventa e dous e com sua vinda foy muy alegre e recebeo muyto contentamento e deu a Deos muytas graças e louvores por as novas que ouvio da christandade d' el-rey e da raynha e de todo ho mays que lhe contaram.