Vida e Feitos D' El-Rey Dom João Segundo/LXXVIII

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No ãno passado de mil e quatrocentos e oytenta e sete estando Gonçalo Coelho cavalleyro da casa d' el-rey, na boca do Rio de Cenaga no reino de Jolofo em Guinee resgatando, Bemohi principe negro que entam com muita prosperidade e grande poder governava o dito reino de Jolofo, sendo per suas lingoas enformado das muitas virtudes, perfeições, e grandezas d' el-rey desejou de o servir e pera começo, lhe mandou per o dito Gonçallo Coelho hum rico presente d' ouro, e cem escravos todos mancebos e bem despostos e assi algũas outras cousas de sua terra. E mandou com ele a el-rey hum seu sobrinho por embaixador com hũa grossa manilha d' ouro por carta de crença que he o costume de sua terra, por antr' eles nam aver letras, e lhe mandou por elle pedir armas e navios. E el-rey com rezam e justa causa se escusou, dizendo-lhe a defesa e escomunhões que o Papa tinha postas a quem desse armas a infiees e por elle nam ser christam lho nam podia mandar. E neste anno de quatrocentos e oytenta e oito, porque o dito Bemohi por trayção dos seus foy lançado fora do reino, determinou meter-se em hũa caravella das do trato que corrião a costa, e em pessoa vir pedir a el-rey socorro, ajuda, e justiça. E estando el-rey em Setuvel, o dito Bemohi chegou a Lixboa e com elle alguns negros seus parentes filhos de pessoas antre elles de muita valia e grande estima. E como el-rey soube de sua vinda mandou que se viesse apousentar em Palmella, onde logo mandou prover os seus muito abastadamente, e a elle servir com officiaes e muyta prata, e todolos outros comprimentos d' estado, e a todos mandou logo dar de vestir de ricos panos segundo suas calidades; e como foy em desposiçam pera poder vir aa corte el-rey lhe mandou a todos cavalos e mulas muito bem concertados. E o dia de sua entrada o mandou receber polo conde de Marialva Dom Francisco Coutinho, e com elle todolos fidalgos e nobre gente da corte; e mandou el-rey que fossem vestidos e concertados o melhor que podessem; e as casas d' el-rey e da raynha foram todas armadas de ricos panos de seda e de ras com estrados reaes e dorseis de brocado; e com el-rei estava o duque Dom Manoel irmam da rainha e muitos perlados e senhores de titolo e muitos fidalgos todos muy ricamente ataviados e muy galantes. E com a raynha estava o principe seu filho com outros senhores e damas vestidas em grande perfeiçam, porque acabado de Bemohi estar com el-rey avia logo d' hir aa raynha e ao principe.

E Bemohi parecia de ydade de quarenta ãnos, era grande de corpo, muito bem feito e muy proporcionado e muito negro, e a barba comprida e muito bem posta e homem de muito bom parecer e graciosa presença e de muita autoridade. E os que com elle vinham todos muito bem despostos e gentis homens que logo pareciam honrradas pessoas, e os mais desenvoltos homens aa gineta que nunca foram vistos; que corriam a carreira em pee, e em pee correndo o cavallo se viravam e abaixavam e tornavam a levantar. E correndo ho cavallo com as mãos no arçam saltavam da sella no chão e tornavam a saltar encima; e correndo a cavallo lhe punham ovos e pedras pequenas na carreyra e de cima dos cavallos hiam tomando, cousas espantosas, e atee entam nunca vistas e assi outras muito grandes desenvolturas a cavallo e a pee que lhe el-rei muitas vezes fez fazer perante si.

Veo Bemohi muyto bem vestido e entrou na sala em que el-rey o estava esperando e o veo receber dous ou tres passos fora do estrado com o barrete hum pouco fora. E assi o levou ao estrado em que estava hũa cadeira real em que se el-rey nam assentou, e em pe encostado a ella o ouvio. E Bemohi com todos os seus se lançaram ante seus pees pera lhos beijarem, e fizeram mostrança de tomar a terra debayxo delles, e em sinal de sojeiçam e senhorio e muito grande acatamento faziam que a lançavam per cima de suas cabeças; e el-rey com muita honrra e cortesia o alevantou, e per negros lingoas que ahi estavam lhe mandou que falasse. O qual com grande repouso, descrição e muita gravidade, fez hũa fala pubrica que durou muito grande espaço, em que pera seu caso meteo palavras e sentenças tam notaveis que pareciam de muito prudente principe. Nas quaes contou a el-rey com muitos sospiros e lagrimas sua desaventura causada per trayçam que em seu reino contra ele se fizera. Em que declarou que soo el-rey lhe lembrara pera lhe dar socorro, ajuda, e vingança, e sobre tudo justiça. E que esta esperança tinha nelle, porque no mundo elle soo o podia fazer por ser rey tam poderoso, tam nobre, tam justo, e tam piadoso, e tambem por ser senhor de Guine cujo vassallo ele era, pedindo-lhe por tudo socorro, ajuda, piadade e justiça, dizendo que ainda que seu escudo era real por sua gloria e louvor fosse de vitorias de reis ricamente bordado, nam seria agora menos acompanhado com memorias de reys que fezesse. Que as primeiras per ventura seriam beneficios de fortuna, e esta seria a propria bondade e grandeza de seu coraçam. Dizendo mais: "O muyto poderoso Deos sabe que ouvindo eu as tuas virtudes e grandezas reaes, quam acesos foram sempre meus espritos e meus olhos pera te verem, e nam sey porque nam foy. Porque tanto mais me prouvera que fora em toda minha livre prosperidade, quanto este meu destroço e desterro por sua triste condiçam, menos autoriza minha fee e palavras. Mas se assi era de cima ordenado que per outros meos a mim mais favoraveis, eu nam podesse vir e alcançar tanto bem como para mim he ver-te, louvo muyto Deos com minha destruyçam, e ja este contentamento assi me satisfaz, que desta jornada nam yrey descontente". Dizendo mais que se a justiça e socorro que lhe pedia, per ventura contradezia nam ser elle christam, como outras vezes por escusa doutro semelhante requerimento lhe mandara dizer, que ysso nam fizesse duvida nem agora o contradissesse, porque elle e todollos seus que presentes eram, a que nam faleciam nobres e reaes nacimentos, aconselhados em outros tempos de suas santas amoestações, vinham pera em seus reynos e de suas mãos o serem logo. E que soomente a pena e mayor torvaçam que por ysso recebiam, era porque pareceria que forças de sua necessidade mais que de fee lho faziam fazer. E com estas e outras muytas boas rezões sobre sua tençam acabou sua falla.

El-rey lhe respondeo em poucas palavras a tudo com muito grande prudencia, allegrando-se muyto com sua vinda e muyto mais com seu proposito de querer ser christão, polo qual lhe dava neste mundo e em seu caso esperança de socorro e restetuyçam de seu reino, e no outro salvação de sua alma, e com ysto o despedio.

Foy Bemohi logo falar aa raynha e ao principe ante quem fez hũa fala breve com grande tento e muita descriçam, pedindo-lhe muyto por merce que com el-rey o favorecessem por suas grandes virtudes e nam pollo elle merecer; e a raynha e o principe o receberam com muita honrra e gasalhado, e assi o despediram. E foy levado muy honrradamente assi acompanhado como veo a suas pousadas que tinha muy concertadas, e com tudo o que compria pera elle e pera os seus em muita avondança e elle muy bem servido com oficiaes e cerimonias e muita prata; e logo ao outro dia Bemohi veo falar a el-rey, e soos apartados com a lingoa falaram ambos grande espaço, onde com grande aviso tornou a dizer a el-rey suas cousas. E assi respondeo às que lhe perguntava muy apontadamente como homem muy sabido, de que el-rey ficou muy contente. E por amor delle ordenou festas de touros, e canas, e momos; e pera as ver teve cadeira no topo da sala defronte d' el-rey, em que estava assentado. E porque elle requeria a el-rey que o fizesse logo christão, ouve por bem que antes que o fosse por ser da seita de Mafamede fosse primeiramente enformado nas cousas da fe e porque tinha conhecimento dalgũas cousas da bribia. Falaram com elle teologos e letrados que ho enformaram e aconselharam na verdade. E ordenaram que vise e ouvisse primeiro missa; e ouvio hũa d' el-rey em pontifical com grandes cerimonias e acatamento, a qual se disse em grande perfeyçam na Ygreja de Sancta Maria de Todollos Sanctos. E Bemohi com todolos seus e com letrados christãos estava assentado no coro, e em levantando a Deos quando vio todos de joelhos e os barretes fora e com as mãos levantadas e batendo nos peitos o adorar, tirou ha touca que tinha na cabeça, e assi como todos com os joelhos no chão e a cabeça descuberta o adorou, dizendo logo com sinaes muy verdadeiros, que ho que naquela ora sentira em seu coraçam tomava por clara prova, que aquelle soo era o Deos verdadeiro pera o salvar. E assi foy dous dias ver comer el-rey, que pera ysso se vestio ricamente; e a salla armada de rica tapeçaria, e com dorsel de brocado e muyta e muy rica prata, e seus oficiaes-mores com reys d' armas e porteyros de maça, e muitos ministrees e danças, trombetas, e atabales, tudo feyto em grande perfeiçam; porque el-rey nas cousas que tocavam a seu estado, era sobre todos muy cerimonial e perfeyto.

E aos tres dias do mes de Novembro Bemohi foy feito christão e com elle seis dos principaes que com elle vieram, aas duas oras da noyte em casa da raynha que pera ysso estava concertada em muita perfeiçam; e foram seus padrinhos el-rey e a raynha, o principe e o duque, e hum comissairo do Papa que na corte andava, e o bispo de Tangere. E o oficio fez ho bispo de Ceyta que o bautizou; e Bemohi ouve nome Dom Joam por amor d' el-rey.

E aos sete dias de Novembro el-rey ho fez cavaleiro, e deu-lhe por armas hũa cruz dourada em campo vermelho, e as quinas de Portugual na bordadura. E no mesmo dia em auto solemne e com palavras de muy grande senhor deu ha obediencia e fez menajem a el-rey. E assi enviou outra ao Papa escrita em latim, em que contou todo seu caso e sua conversaçam aa fee, com palavras de muita devaçam e grandes louvores d' el-rey; e dos outros seus foram feytos christãos vinte quatro na Casa dos Contos da dita villa muyto honrradamente. E el-rey deu ao dita Bemohi de socorro e ajuda vinte caravellas armadas, e por capitam-mor dellas Pero Vaz da Cunha, que levava por regimento de fazer hũa fortaleza na entrada do Rio de Çanaga a qual avia d' estar sempre por el-rey. Pera a qual fortaleza foram logo muytos officiaes e muyta pedra e madeyra lavrada e todalas outras cousas necessarias. E assi pera hũa ygreja com muytos cleriguos e todo ho que compria em muyta avondança pera laa fazerem christãos muytos da terra; e hia por pessoa principal mestre Alvoro pregador d' el-rey da hordem de Sam Domingos. A qual fortaleza el-rey folguou tambem de mandar fazer, porque tinha por certo que o dito rio bem metido pollo sertam vinha polla cidade de Tambucutum, e per Mombaree, em que sam os mais ricos tratos e feyras d' ouro que dizem que há no mundo, de que toda a Berberia de Levante e Ponente atee Jerusalem se provee e bastece; parecendo a el-rey que ha dita fortaleza pera escapolla e segurança do trato seria neste rio em tal lugar grande segurança pera hos seus e pera todallas mercadarias. E este rio e pouco mays adiante foy descuberto em tempo, e per mandado do ynfante Dom Anrrique primeiro inventor e descubridor desta empresa e conquista de Guinee.

Partio ha dita armada com muyta e boa gente e muyta artelharia, e o dito Bemohi e todos os seus em grande maneyra contente d' el-rey, porque allem do socorro que lhe deu e muitas honrras que lhe fez, tambem lhe fez aa partida muytas merces e dadivas a elle e aos seus. E em fim todas estas obras e despesas e fundamentos de Bemohi acabaram mal. Porque depoys que o dito Pero Vaz com toda sua armada e com ho dito Bemohi, chegou e entrou no dito rio, onde ha dita fortaleza se avia de fazer, tomou sospeytas de trayçam contra ho dito Bemohi, has quaes muytos deziam que nam foram verdadeyras, por a muyta bondade e muyto saber de Bemohi, e assi por yr com tanta rezam muyto contente d' el-rey, e com esperança de ser cedo com sua ajuda restituydo a seu reynado; antes deziam que com o muyto desejo que o dito Pero Vaz tinha de se tornar pera o reyno e receo de morrer laa polla terra ser doentia, sem causa algũa matou ho dito Bemohi aas punhaladas dentro em seu navio. E tanto que ho matou com toda armada, sem fazer detença nem fortaleza se veo logo a estes reynos. E chegou a Tavilla onde el-rey estava, que com a morte de Bemohi foy muy anojado e lhe pesou muyto, e sofreo esta culpa a Pero Vaz, porque avendo de o castigar como era rezam, chegava o castigo a muytos que nisso foram culpados que mereciam grande pena. E el-rey estranhou muito a Pero Vaz matá-lo assi, porque quando elle no dito Bemohi achara algũa culpa ou erros, o devera de trazer a Portugal assi como o levou, pois o tinha em seu livre poder sem perigo algum. E porém a singular condiçam e muita piadade d' el-rey fez sofrer ysto; porque avendo de dar castigo, compria que matasse muitos que nisso foram culpados, o que por sua virtude dissimulou.