Saltar para o conteúdo

Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919)/I

Wikisource, a biblioteca livre

I

O inventor e a aeronave

 

Nunca me passou pela mente que o meu amigo Gonzaga de Sá se dedicasse a cousas de balões. A não ser que o tal papel que me deixou entre muitos, queira exprimir outro pensamento, não posso crer, dada a amizade que mantinhamos, que elle me fosse occultar essa digna preoccupação de seu espirito. Tive sempre respeito por aquelle que quer voar... Emfim!... Contemos a historia.

Conheci Gonzaga de Sá quando, certa vez, por dever de officio, fui mandado á Secretaria dos Cultos. Tratava-se de um caso de salvas devidas a um bispo. O bispo de Tocantins, ao entrar no porto de Belém, a bordo de um gaiola, receberá da respectiva fortaleza, apenas dezesete tiros de salva. S. Revma. reclamou. Competir-lhe-iam dezoito tiros; e basto cabedal de textos e leis, a alta autoridade ecclesiastica citou, fundamentando a sua opinião. A reclamação foi presente ao ministro dos Cultos, cuja secretaria, na longa informação que deu, aludiu á questão das investiduras, á dos bispos no tempo do Império e ao direito canonico, ainda por cima, sem nada resolver de definitivo.

Ouviu-se o Ministério do Exterior e o protocolo carinhosamente interpretado e sabiamente, nada adeantava ao caso. Recorreram, então, ao estabelecido na legislação dos paizes civilisados ou não.

Os regulamentos da China eram completamente omissos, mas os de Montenegro davam vinte e quatro tiros aos bispos.

Na linda repartição das delicadas cousas internacionaes, fizeram sabias transposições de uma religião para outra, de modo a se estabelecer a equivalencia das respectivas autoridades.

Foi organisado um quadro, muito bem feito, bem riscadinho, em que os nomes dos sacerdotes de cada religião foram escriptos, respeitando-se a indole orthographica de suas linguas proprias.

O catholicismo, o budhismo, o judaismo, o brahamanismo e as seitas protestantes encontravam-se e encontravam-se placidamente no terreno das conveniencias burocraticas e protocolares.

Imans, muezzins, bispos, lamas, bonzos, derviches, foram postos ao lado uns dos outros camarariamente.

Acreditava-se no Ministerio dos Estrangeiros que, desta forma esclarecida a correspondencia entre sacerdotes de todas as seitas e religiões, melhor poderia ser interpretada a legislação, relativa ao assumpto, de cada paiz do globo, isto é: as praxes da Birmania, do Thibet e da Turquia viriam em auxilio da mortificante collisão em que se achava a administração brasileira.

Nada disso, porém, conseguiu decifrar o problema. Buscou-se, então, resolvel-o com a opinião do Ministerio da Guerra que veio a decidil-o salomonicamente.

Era seu parecer que, para evitar reclamações futuras e satisfazer as partes, de óra em deante devia competir uma salva de dezesete tiros, com canhões de quinze, e um tiro, com canhão de sete e meio. Era, além de salomonico, mathematico, ou ambas cousas juntas, pois, com dezoito disparos, se tinham dezesete tiros e meio, sendo, assim, satisfeito o prestigio do governo e os melindres do prelado.

Esta resolução foi tomada, depois de serem ouvidas as grandes repartições technicas do Ministerio, cujo saber foi no caso incalculavel.

A informação da secção de artilharia recordou por alto a theoria da separação de poderes; a divisão de Justiça, porém, abandonando as leis, os tratadistas, baseou-se em questões theoricas de artilharia, desenvolveu calculos, para mostrar os fundamentos da queixa de S. Revma.

Estava a decidir-se a questão de um modo geral e de vez, quando surge a angustiosa duvida do Cardeal. Seria S. Em. uma autoridade ecclesiastica brasileira? Devia receber só salvas de arcebispo ou mais outras? Se era autoridade ecclesiastica estrangeira, que salvas devia ter? Se era nacional, quaes? etc.

E assim as interrogações se succediam nas secções do Ministerio, quando o meu director, para evitar delongas, resolveu mandar-me á Secretaria dos Cultos, submetter aos compe. tentes a angustiosa questão — Cardeal.

Pouca gente conhece a Secretaria dos Cultos e tem noticia dos seus serviços. E' de admirar que aconteça isso, porquanto, penso eu, se ha Secretaria que deva merecer o respeito e a consideração da nossa população é a dos Cultos.

Num paiz em que, com tanta facilidade, se fabricam manipanços milagrosos, idolos aterradores e deuses omnipotentes, causa pasmo que a Secretaria dos Cultos não seja tão conhecida como a da Viação. Ha, entretanto, nella, no seu Museo e nos seus registros, muita cousa interessante e digna de exame.

Foi, por occasião de desempenhar-me da incumbência do meu director, que vim a conhecer Gonzaga de Sá, afogado num mar de papeis, na secção de «alfaias, paramentos e imagens», informando muito seriamente a consulta do vigario de Sumaré, versando sobre o numero de settas que devia ter a imagem de S. Sebastião.

Era Gonzaga um velho alto, já não de todo grisalho, mas avançado em idade, todo secco, com um longo pescoço de ave, um grande gógó, certa macieza na voz grave, tendo uns longes de doçura e soffrimento no olhar energico. A sua tez era amarellada, quasi dessa cêra amarella de certos cirios.

Tratei com elle cheio do respeito que, acima da belleza, merece a velhice. Elle me pareceu agradecer a deferencia, olhando-me com mal disfarçado interesse, por debaixo do pincenez, do fundo do abysmo da sua banca burocratica.

Vi logo nelle um velho intelligente, de amplo campo visual a abranger um grande sector da vida; entendi-o illustrado e de uma recalcada bondade. Não sei tambem porque adivinhei que tinha um bom nascimento e a antiguidade do apparecimento dos seus antepassados nestas terras não datava da Republica nem do ensilhamento.

O meu julgamento não era errado, porque, mais tarde, indo por causa ainda dos tiros a um bispo á Cultos, perguntei-lhe, em meio do negocio:

— Sr. Gonzaga, não é casado?

— Não.

— Nem quiz casar?

— Duas vezes: uma, com a filha de um Visconde, em baile de um Marquez.

— E a outra?

— Filho, você parece que ficou com inveja?

— Talvez, accudi eu prestamente á sua interrogação.

— Pois saiba: a outra foi com a minha lavadeira.

A adivinhação de sua mocidade fiz eu por essa resposta.

Além disso era sceptico, regalista, voltereano. Usava, como vim a verificar mais tarde, para estar em dia com o seu Deus, delle, frequentar as cerimonias religiosas; e não, como a burguezia republicana, para firmar-se nos frades, padres, freiras e irmans de caridade e enriquecer-se ignobilmente, criminosamente, cynicamente, sem caridade e amor, senão aquellas de apparato. Era anti-monastico, mas não maçon.

Para se comprehender bem um homem não se procure saber como officialmente viveu. E' saber como elle morreu; como elle teve o doce prazer de abraçar a Morte e como Ella o abrapou. Depois de contar este grande facto da vida de um amigo, decifrar-lhe-ei os gestos intimos e os seus actos insignificantes exporei. Não ha erro, penso, procedendo assim.

A vida official de Lord Bacon é abjecta e cheia de vilania; mas vêde-lhe as obras, as suas reflexões e, sobretudo, a sua morte são bellas e como eclypsam a sua vida outra!

Tendo imaginado subitamente que a neve podia preservar as carnes da putrefacção, Bacon desceu da sua carruagem em dia de muito frio, já velho era, e entrou em uma palhoça para fazer a experiencia. Comprou um frango, fel-o matar e elle mesmo, com as suas proprias mãos, o encheu de gêlo. Resfriou-se e pouco depois, em casa extranha, pois nem mais forças teve para attingir de carruagem a sua — morreu o ousado innovador, o philosopho do methodo experimental, o autor da grandeza scientifica e industrial de nossos dias.

De Gonzaga de Sá, vou contar-lhes as suas cousas intimas e dizer-lhes, antes de tudo, como morreu, para fazer bem resaltar certos trechos e particulares que serão mais tarde contados, de sua bella obscuridade. Narremos os factos.

Nós tinhamos tratado de encontrarmo-nos no terraço do Passeio Publico, para ver certo matiz verde que o céo toma, ás vezes, ao entardecer. Fui esperal-o com pressa de conversar com elle e admiral-o. Pouco olho o céo, quasi nunca a lua, mas sempre o mar. Embora o não encontrasse logo, o espectaculo do mar distrahiu-me. Mas contemos as coisas por meúdo.

Quando cheguei ao terraço do Passeio, já os morros de Jurujuba e de Niteroy haviam perdido o violeta com que eu os vinha vendo cobertos pela viagem de bonde a fóra; sobre a Armação, porém, pairava ainda o jorro de den- sas nuvens luminosas, por onde, nas oleogra- phias devotas, acostumamos a ver surgir os santos e anjos da nossa fé.

Fazia uma tarde dubia, de luz irregular e ameaçando tempestade; mas, a minha secreta correspondencia com o meio avisara-me que não choveria. Chegado que fui, sentei-me a um banco embutido no muro, bem defronte a uma das novas escadarias que levam á gabadá avenida «Beira-mar». Em seguida puxei um cigarro e puz-me a fumal-o com paixão, olhando as montanhas do fundo, afogadas em nuvens de chumbo; e, engastado na barra de anil, um farrapo de purpura, que se estendia por sobre os ilhotes de fóra da bahia.

Considerei tambem a calma face da Guanabara, ligeiramente crispada, mantendo certo sorriso sympathico na conversa que entabolara com a grave austeridade das serras graniticas, naquella hora de effusão e confidencia.

Villegagnon boiava na placidez das aguas, com seus muros brancos e suas arvores solitarias.

Notei então o accordo entre o mar e as serras. O negro costão do Pão de Assucar dissolvia-se nas mansas ondas da enseada; e da magoa insondavel do mar, se fazia a tristeza da Bôa-Viagem.

Transmutavam-se naturalmente e tocavam-se amigavelmente.

O mar espelhejante e movel realçava a magestade e a firmeza da serrania e, em face da sua sumptuosidade, por vezes conselheiral, o sorriso complacente do golfo tinha uma segurança divina.

O poeta tinha razão: era verdadeiramente a grandiosa Guanabara que eu via!

A Gloria, do alto do outeiro, com o seu sequito de palmeiras pensativas, provocou-me pensar e rememorar minha vida, cujo desenvolvimento, — conforme o voto que os meus exprimiram no meu baptismo — se devia operar sob a alta e valiosa protecção de N. S. da Gloria. E, quando alguma cousa nos recorda essa apagada e augusta cerimonia, vêm á lembrança factos passados, cuja memoria vamos perdendo.

Claro é que não tentei ver se tinha já attingido á altura em que plana minha sagrada Madrinha. Era de esperar que estivesse mais proximo e, se ainda não estou, nem a millesimo do caminho, nunca mais lá chegarei... Não tive desgosto; dei como um desvio de sentimento, procurando ver como minha vida desenvolvera, segundo as obscuras determinações do fragmento do planeta, em que nascera. Durante meia hora, fiz um detido exame dos meus actos passados e fui colhendo as suas analogias com o meu ambiente patrio.

Tinha sido vario em seus aspectos e descuidoso como a irregularidade do meu solo natal. Sorrira com a bahia, entre triste e alegre; e tive debaixo desse sorriso uma réstea da energia daquellas rochas antiquissimas.

Deante da Serra dos Orgãos, cujo grandioso anceio de viver em Deus fui sentindo desde menino, aprendi a desprezar as fôfas cousas da gente de consideração e a não ver senão a grandeza de suas inabalaveis agulhas que esmagam a todos nós.

Fui bom e tolerante como o mar da Guanabara, que recebe o bote, a canôa, a galera e o couraçado; e, como ella, tranquilla sob a protecção de montanhas amigas, fiz-me seguro á sombra de desinteressadas amizades.

Quiz viver muito, tive impetos e desejos, nas suas manhãs claras de Maio, mas o sól causticante do seu verão ensinou-me (antes que M. Barrès m'o dissesse) a soffrer com resignação e a me curvar aos dictames das cousas, sempre bôas, e dos homens, ás vezes máos.

Saturei-me da quella melancolia tangivel, que é o sentimento primordial da minha cidade. Vivo nella e ella vive em mim!

E assim, fui sentindo com orgulho que as condições de meu nascimento e o movimento de minha vida se harmonizavam umas suppunham o outro que se continha nellas; e tambem foi com orgulho que verifiquei nada ter perdido das acquisições de meus avós, desde que se desprenderam de Portugal e da Africa. Era já o esboço do que havia de ser, de hoje a annos, o homem creação deste logar. Por isso, já me apoio nas cousas que me cercam, familiarmente, e a paizagem que me rodeia, não me é mais inedita: conta-me a historia commum da cidade e a longa elegia das dôres que ella presenciou nos segmentos de vida que precederam e deram origem á minha.

Que me importavam os germanos e os gregos! O estado e a arte! Outras gentes que não comprehendo, nem os seus sonhos que resultaram nestas duas tyrannias!

Sonho tambem por minha conta, ao geito dos meus mortos; e os meus sonhos são mais bellos porque são imponderaveis e fugaces...

A esse tempo, passava. olhando tudo com aquelle olhar que os guias uniformizaram, um bando de inglezes, carregando ramos de arbustos - vis folhas que um jequitibá não contempla!

Tive impetos de exclamar: doidos! Pensam que levam o tumulto luxuriante da minha matta, nessa folhagem de jardim!

Façam como eu: soffram durante quatro seculos, em vidas separadas, o clima e o eito, para que possam sentir nas mais baixas cellulas do organismo a belleza da Senhora — a desordenada e delirante natureza do tropico de Capricornio!... E vão-se, que isto é meu!

Logo me recordei, porém, dos meus autores — de Taine, de Renan, de M. Barrès, de France, de Swift, e Flaubert — todos de lá, mais ou menos da terra daquella gente! Lembrei-me gratamente de que alguns delles me deram a sagrada sabedoria de me conhecer a mim mesmo, de poder assistir ao raro espectaculo das minhas emoções e dos meus pensamentos.

Houve em mim, por essa occasião, um indizivel reconhecimento sem limites... Olhei com veneração aquella parva gente, em homenagem aos de seu sangue que me educaram e me fizeram saber que eu, burro ou genial, sabio ou nescio, inflúo poderosamente no mecanismo da vida e do mundo.

Humilhado, abaixei a cabeça... O meu velho amigo chegava; a tarde, porém, não nos fôra favoravel e não nos déra o espectaculo que esperavamos.

Ficamos durante algum tempo, a conversar no terraço do tradicional jardim publico.

Gonzaga me disse, ao ver outro bando de britannicos:

— Não posso supportar esses inglezes! Que pressa teem em andar! A tarde assim mesmo não está de afugentar... Andem devagar, devagarinho... Não se corre nem para a morte a quem amo... Vamos jantar em casa, embora minha tia não esteja em casa.

Eu tinha vinte annos e um louco sonho de ser Director. Arripiaram-se-me os cabellos diante daquella invocação da morte...

Acceitei o convite, apezar de tudo.

— Vamos a pé e pelo caminho mais longo.

Dirigimo-nos pelos Barbonos para aquellas veneraveis azinhagas de aldeola italiana, que levam á Santa Thereza. Nada me dizia; pouco depois, porém, passamos diante de um casarão brutal. Gonzaga me perguntou, apontando o convento de Santa Thereza:

— Sabes quem mora ali?

— Freiras.

— Mora tambem um conde, e creio que princezas.

— Mortas?

— Sim, mortos! Vês lá o signal da morte?

— Não; está sorridente e alegre.

— E este casarão ali?

— Está aqui, está desabando.

— Morto, não é?

— Sabes porque? Porque não guarda nenhum morto.

Continuamos a subir.

Ao chegar ao jardim de sua casa, que olhava para a Lapa, para a Gloria, para a Armação, para Niteroy, contemplou o mar insondavel, abaixou-se para colher uma flor que me offerecera, mas cahiu, e morreu. Foi assim. Dias depois da morte do meu amigo, com o titulo de — O inventor e a Aeronave — , entre os papeis desencontrados que elle me legou com os seus livros, encontrei uma folha de almasso, escripta de um lado e de outro. Li-a e verifiquei que se tratava de uma narração completa. Embora não dê ella toda a medida do espirito e da concepção do mundo do meu saudoso amigo, eu a publico para que aquelles que não o conheceram possam de algum modo apreciar o meu camarada intellectual e mestre, cujos julgamentos e opiniões sobre os homens e as coisas muito influiram para a escolha dos caminhos que a minha actividade mental tem trilhado.

Gonzaga era desses homens cujo pensamento se transmitte mal pelo escrever ou por outro instrumento qualquer de communicação criado pela nossa humanidade. A sua intelligencia não sabia dar logo um pulo da cabeça para o papel; e só a sua palavra viva, assim mesmo em palestra camararia, era capaz de dizer delle tudo o que lhe era proprio e profundamente. seu.

Comtudo, como já disse, vou publicar a pagina de almasso encontrada por mim, entre os papeis que elle me deixou, no fito de dar uma modica idéa do que verdadeiramente era o meu velho Gonzaga de Sá, official da secretaria dos Cultos. Eil-a:

«Desde dez annos não havia segundo em que elle não pensasse na machina. A's vezes, sobre as folhas do Canson, tanto se demorava a riscar e a traçar que não chegava bem a comprehender como passára da tréva da noite para a claridade da manhã. Folhas e folhas de papel, outras vezes, amontoava com cerradas equações e outras expressões algebricas; e, nas horas de descanço, passeando os olhos distrahidos por ellas, appareciam-lhe deante delles, com as suas rebarbativas letras gregas os «fi», os «mi», os «gamma», os «pi», aquelles minusculos caracteres ligeiros e de curvas subtis, como pelotões de tenues pensamentos que as «integraes» faziam avançar em fileiras disciplinadas, marchando para frente, para frente... Consultava revistas, tratados, compendios; folheava- os bem e, noites e noites, com os pés nagua para afastar o somno, ficava sobre as as suas paginas a ler, a comparar um com outro, a cotejal-os inteiramente absorvido no ensino delles, a meditar, a advinhar nelles os impossiveis para o seu apparelho e a perscrutar os obstaculos que devia vencer, e as leis a que se devia curvar.

Afinal um bello dia, depois de um longo trabalho de horas a fio, elle appareceu no papel, maravilhosamente desenhado a côres; e ali, o inventor o remirou muitas vezes, alongou mais uma linha, amaciou mais uma aresta ou uma ligação e, por fim, teve a machina completa, perfeita, tal e qual a idéa que trazia em mente e se fôra fazendo em poucos, dia a dia, durante uma gestação de vinte annos.

Descançou nesse dia feliz e sem egual.

Pôde dormir um largo e profundo somno reparador e tranquillo; mas, já no dia seguinte, meditava sobre os materiaes com que devia construil-a. Considerou a resistencia de cada um, o peso especifico, o custo tudo elle levou em linha de conta com sagacidade e sapiencia.

Combinou uns com os outros, considerando as suas qualidades, as suas vantagens e defeitos, tendo sempre em mira o effeito que desejava; escolheu motores, delicados engenhos de força e pequenez; e partiu, com todo esse pensamento meticuloso e sério, para a officina onde ia construir o seu apparelho de voar.

Nem um momento das horas de trabalho, arredou o pé de junto aos operarios; de cada peça, seguiu todas as operações de sua construcção; de quando em quando as pesava e ordenava limar, polil-as mais, para que tivessem exactamente o peso, calculado com a approximação de milligrammas. Não havia parafuso que elle não visse bem o passo de modo que uma differença maior ou menor não fosse perturbar o rigidez do systema e fazer falhar o que esperava do seu invento. Ficou prompto, e lindo, e aligero que nem uma libellula. Iria subir, iria remontar os ares, transmontar cordilheiras, alçar-se longe do sólo, viver algum tempo quasi fóra da fatalidade da Terra, innebriar-se de azul e de sonhos celestes, nas altas camadas rarefeitas...

A experiencia seria de manhã e, á noite toda, não dormiu como si, no dia seguinte, fosse se encontrar com o amor com que sonhou e, para realisal-o agora, tinha aguardado muitos annos de angustia e de esperança.

Veiu a aurora e elle a viu, pela primeira vez, com um interessado olhar de paixão e de encantamento. Deu a ultima de mão, accionou manivellas, fez funccionar o motor, tomou o logar proprio... Esperou... A machina não subiu.»

Eis o que havia na folha amarellecida de almasso encontrada por mim, no anno passado, entre os papeis que Gonzaga de Sá me deixou.

Não comprehendi immediatamente a significação dessa fantasia; mas, referindo-a a este e aquelle aspecto de sua vida, entendi bem que elle queria dizer que o Acaso, mais do que outro qualquer Deus, é capaz de perturbar imprevistamente os mais sabios planos que tenhamos traçado e zombar da nossa sciencia e da nossa vontade. E o Acaso não tem predilecções...