Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919)/VI
VI
O Barão, as Costureiras e outras cousas
Tendo aconchegado bem no duro banco, os seus vastos annos cheios de meditações e scisma, Gonzaga de Sá noticiou-me:
— O Barão hoje de manhan recebeu um poeta.
— E d’ahi?
— O poeta, extraordinariamente inquieto, visivelmente embaraçado, foi-lhe perguntar se devia graphar amor com maiuscula.
— E o Rio Branco?
— Que não era conveniente no meio do verso; mas, no começo, quasi se impunha.
— Tenho satisfação em ver de que modo superior vai o Barão influindo nas nossas letras.
— E com espírito!.. Ah! o Barão!
Gonzaga de Sá não pôde deixar-se ficar no êxtase que esse título lhe provocava apesar de achar o Paranhos, como ele chamava às vezes o ministro, uma mediocridade supimpa, fora do seu tempo, sempre com o ideal voltado para as tolices diplomáticas e não com a inteligência dirigida para a sua época. Era um atrasado, que a ganância das gazetas sagrou e a bobagem da multidão fez um Deus. O que Gonzaga admirava era o título dado pelo Imperador. Por essa ocasião, ao pensar eu nisto, repimpado em um luxuoso automóvel de capota arriada, passou, com o ventre proeminente atraído pelos astros, o poderoso ministro de Estrangeiros. Ao ver através das grades do jardim passar o Barão, desdenhoso e enjoado, Gonzaga de Sá me disse:
— Este Juca Paranhos (era outro modo dele tratar o Barão do Rio Branco) faz do Rio de Janeiro a sua chácara... Não dá satisfação a ninguém... Julga-se acima da Constituição e das leis... Distribui o dinheiro do Tesouro como bem entende... É uma espécie de Roberto Walpole... O seu sistema de governo é a corrupção... Mora em um palácio do Estado, sem autorização legal; salta por cima de todas as leis e regulamentos para prover nos cargos de seu Ministério os bonifrates que lhe caem em graça. Em falta de complicações diplomáticas, ele as arma, para mostrar o seu atilamento de Taylerand ou a sua astúcia Bismarkeana. É um autocrata, um quediva, porque isto é bem um futuro Egito... Ele estudou — é verdade — as nossas questões de limites, mas nunca falou no Joaquim Caetano, nem no velho Teixeira de Mello. Propositadamente esqueceu-os; e fez que as gazetas os esquecessem também... Quando o Imperador leu o L'Oyapock e l'Amazone, de Joaquim Caetano, disse que o livro valia um exército de seiscentos mil homens. Ganha Juca a questão do Amapá, recebe dotação, pensão, e os filhos também; entretanto, a filha de Joaquim Caetano vive miseravelmente... É isto! Este Rio Branco é egoísta, vaidoso e ingrato... O seu ideal de estadista não é fazer a vida fácil e cômoda a todos; é o aparato, a filigrana dourada, a solenidade cortesã das velhas monarquias europeias — é a figuração teatral, a imponência de um cerimonial chinês, é a observância das regras de precedência e outras vetustas tolices versalhezas. Não é bem com Luiz XIV que tem pontos de contato; ele imita D. João V, sem Odivelas, talvez, mas o imita. Tivemos um cardeal por muito dinheiro. Foi um a espécie de sino monstro da Mafra, que era o orgulho do rei português.
Nós estávamos sentados num banco do Campo de Santana. Tínhamos marcado o encontro ali, para que ele me mostrasse onde ficava exatamente o “Teatro Provisório”. Depois de ter cumprido a promessa, deixamo-nos ficar sentados, apreciando a tarde e conversando.
Em dado momento surgiu, na nossa frente, uma menina bonita, acompanhada da notável complacência das velhas mães das meninas bonitas. Aqueles visitantes do Campo de Santana nos surpreenderam; e a menina bonita, lentamente, passou diante de nós, catando olhares nos escassos frequentadores daquele parque abandonado. Era ovelha tresmalhada; não pertencia ao grupo das que são vistas às vezes naquele jardim. Cheirava a Rua do Ouvidor e ao balcão (bar) de Botafogo. Contudo, nem mesmo ao olhar decrépito de Gonzaga de Sá e ao meu estonteante de plebeísmo ela perdoou. Levou-os para casa, quando desfilou diante de nós vagarosamente. Fiquei-lhe agradecido do fundo do caração...
— Até o dia de hoje, disse-me Gonzaga de Sá ao perder as duas mulheres de vista, em que já vou contando mais de sessenta anos de existência, eu me lastimo de não ter tido uma longa e perfeita intimidade com alguma costureira.
Eu, a quem a convivência com tão precioso e excepcional superior hierárquico permitira que se me penetrasse um pouco de seu feitio mental, pus-me doidamente a tirar conclusões daquele seu pequeno desgosto:
— Era de fato bastante instrutivo, pois ficarias (já o tratava por tu e você) admiravelmente apto para julgar a correção do corte dos vestidos das grandes damas, com o que obterias um critério inerrável para estabelecer a escala de suas almas. De mais a mais, as condições do ofício devem dar às moças das oficinas uma forma de espírito especial e rara. Inconscientemente, hão de comparar a nudez das ancas e a frugalidade dos braços nus das suas ricas freguesas com o fascinador, retumbante e fornido aspecto que toma o corpo delas sob fazendas caras com acolchoados hábeis; hão de observar também a iníqua natureza dual das paixões que elas e as freguesas inspiram aos homens... Que influência maravilhosa, meu Deus! exerce a cassa sobre os nossos sentimentos! Está aí uma pura questão de tecelagem que provoca curiosas reações psíquicas! Tudo isso, continuei a dizer com certo entusiasmo, há de romper em excelentes sarcasmos dignos do ouvido de uma alma magoada.
— Tens razão, menino. Com a tesoura do seu humilde ofício criam a beleza das profissionais, donde: orgulho, que se choca com a percepção da sua real situação — daí o sarcasmo.
A mim surpreendera-me o jeito matemático que Gonzaga de Sá dava ao resumo das minhas palavras; mas bem cedo percebi que troçava quando me disse com aquele seu meio sorriso cético:
— Estamos, pelo que vejo, fazendo uma pretensiosa meditação sobre a costureira. E não é sem importância, acrescentou logo o meu dorido amigo, na nossa sociedade vestida, uma meditação sobre tão curioso agente, infinitesimal e ignorado, da grandeza e da majestade das altas camadas representativas. Para se verificar quanto a ação desses pálidos infusórios da sociedade é benéfica, alta e fecunda, basta supor por um instante todas as grandes damas dos upper ten thousands, mal vestidas, simplesmente ajambradas ou nuas. Reduzida ao mínimo ou a nada a sua beleza obumbrante, por inferência iríamos examinar os fundamentos da grandeza dirigente de seus maridos e pais. A crítica, com tal estímulo, estender-se-ia, e a massa, por contágio, impregnada de um irrespeito anárquico e desmoralizante, faria a sociedade naufragar. De resto, não são precisas tantas justificativas; a ciência de hoje faz a corte aos infinitesimais, aos pequeninos... Está aí um ponto de contato entre os políticos de sufrágio universal e os homens de laboratório.
— Ponto de contato sobremodo honroso para ambos, disse eu então.
— Não era bem disso que eu queria falar, emendou Gonzaga de Sá com aquela sua voz pausada, cheia de mansuetude e bondade. Eu lastimava não ter tido uma longa e perfeita intimidade com alguma costureira, pela razão de ter ficado até hoje ignorante dos atavios, das rendas, dos gêneros, espécies, raças e variedades dos chapéus e dos vestidos. Darwin sentiu durante toda a vida não ter aprendido álgebra; eu lastimo não conhecer a técnica da “Notre Dame”.
Ao me dizer Gonzaga de Sá que ignorava completamente tão transcendente departamento da vida; que não tinha as menores noções de conhecimento tão útil à filosofia das paixões, à ciência dos costumes e à análise das cristalizações sociais, diminuiu-se-me a admiração que eu lhe tinha e tão tumultuaria se mostrava desde o início das nossas relações.
Gonzaga de Sá estava rebaixado a meus olhos. Platão não conhecer o vestuário das damas de Atenas — era possível? Como se saberão ao certo os fortes motivos da custosa nomeação de tal delegado ao Congresso de Repressão da Vadiagem dos Cães, na Itália, se não se souber com exatidão de que fazenda era a saia de Mlle. Zedolin, que dançou num baile chique e partiu para a Europa pouco antes daquela nomeação? Um vestido possui sempre um imenso poder vibratório na nossa sociedade; é um estado d’alma; é uma manifestação do insondável mistério da nossa natureza, a provocar outras em outros. E como Gonzaga de Sá, um sábio, um pensador, um sutil anotador da vida, não lhe tinha estudado a história natural?
— Enfim, disse-me ele, pode parecer que naquela procura de fazendas, de rendas, naquele ajustamento torturado de panos às carnes, há o anseio de um ideal de plástica superior, etérea, imponderável, acima da grosseria dos nossos corpos terrestres; que há em tudo aquilo alguma coisa de desinteressado, de espontâneo, dela para ela; mas, qual! Sabes para que aquilo tudo?
— Para quê?
— Para arranjar um casamento, quatro filhos e criar um cavador a mais, malcriado, feroz e exigente. Ignóbil! Algumas, ainda por cima, aprendem violino...
Foi então que me arrependi de ter mal julgado o meu excelente e arguto amigo. Ele não parava nos detalhes; talvez mesmo não, soubesse o que era voile, nanzouk, escossez, soutache, e outras sabenças de costureira; mas atingira a lei básica, a filosofia primeira do vestuário feminino e — quem sabe? — masculino. Uma única objeção poderia surgir a ela. Por que se vestirão bem as damas fáceis? Tudo se resume, para manter o seu rigor generalizante, em modificar um pouco, na noção de casamento, o dado de sua duração. Feito isso, a lei Gonzaga de Sá é perfeitamente rigorosa e verdadeira. Mas aquele olhar que a menina bonita, por misericórdia, deitou-me, decididamente me enterneceu. Eu me pus de repente a favor das damas contra a elegante indelicadeza de Gonzaga de Sá:
— Oh! Gonzaga! Que perversidade! Não te apiedas, vais esmagando...
— Não; absolutamente não. Os indivíduos me enternecem; isto é, o ente isolado a sofrer; e é só! Essas criações abstratas, classes, povos, raças, não me tocam... Se efetivamente não existem!? E, pelo conceito literário, filosófico, sociológico e religioso — mulheres — tenho até uma grande afeição de ordem puramente intelectual — bem entendido! — para que não haja contradição.
— Afeição?
— Na verdade; e é infinita e absorvente.
— Espantas-me.
— Não me acuses de inconsequência. Apieda-me o individuo a sofrer — já t’o disse; mas, certas criações intelectuais nossas, incapazes de me provocar o sentimento profundo que posso nutrir por uma pessoa, são contudo bem reais para me despertar, às vezes, simpatia ou indiferença no campo abstrato que lhes é próprio. Detesto a antropologia e amo a crítica religiosa. Foi meu anseio, quando moço, logo ao ler Renan, partir para a Europa e estudar o hebraico, o sânscrito e o zende, mas... não me foi possível. É que algumas criações da inteligência humana são orgânicas, articuladas e perfeitas; não resultam de aproximações, da escolha de certos dados e abandono de outros, arbitrariamente; não provêm de médias guerreiras. Deves ter reparado que o recurso aritmético da média tudo avassalou. É um recurso poderoso e razoável para certos aspectos da nossa atividade; mas, perfeitamente impróprio para dar a feição sentimental de uma classe, de um povo, ou mesmo traduzir as suas determinantes da inteligência e caráter. Por sua própria natureza, a inteligência, o caráter, e os aspectos sentimentais, com o suporem a sociedade, são tiranicamente individuais. O gênio é Rousseau, não são os suíços... Poderias dizer: na média no Rio de Janeiro, por ano, nascem tantas pessoas, pois trata-se aí de números; mas errarias grosseiramente se dissesses que na média os cariocas são felizes. A felicidade, sensação tão volátil, instável, irredutível de homem a homem, ê coisa diferente, e não consente média a abranger centenas, milhares e milhões de seres humanos. Imagina tu que Mme. Belasman, de Petrópolis, tem um grande joanete, um defeito hediondo, com o qual sobremaneira sofre; e o operário Felismino, da Mortona, orgulha-se em possuir um filho com talento. Mme. Belasman vive acabrunhada com a exuberância de seu joanete. Passou a meninice a sofrer por ele, a adolescência foi-lhe uma angústia; e tão insignificante aumento de seu pé, na sua consciência, reflete-se duradouramente, continuadamente, com as manifestações mais inacreditáveis e aterrorisantes; entretanto, Felismino, quando bate rebites, sorri e antegoza o estrondo que uma parcela do seu sangue vai causar na sociedade. Os companheiros acreditam-no doido, e já porque uma vez ele se tenha referido entusiasticamente às brilhantes qualidades do filho, criou para este dois ou três inimigos. Está sagrado! Quem é mais feliz — pergunto —, Mme. Belasman ou o Sr. Felismino? E, à vista disso, poderás dizer que todas as damas de Petrópolis são felizes e os operários de fundição são desgraçados? Há média possível para a felicidade das classes? Nós, os modernos, nos vamos esquecendo que essas histórias de classe, de povos, de raças, são tipos de gabinete, fabricados para as necessidades de certos edifícios lógicos, mas que fora deles desaparecem completamente: — Não são? Não existem. Compreende-se a esfera, o cubo, o quadrado, em geometria; mas, fora daí, é em vão querer obtê-los. E de tal modo este engano está agitando a nossa opinião, que, parece-me, vai ressurgir o famoso debate escolástico dos “universais”. Tu o conheces, não é?
— Mal.
— Encheu a Idade Média a pergunta: certas ideias gerais são uma realidade? Existem, de fato, ou não, fora dos indivíduos que as concebem? Por séculos a opinião se dividiu, o debate se alongou; e houve entre os sábios partidários apaixonados — realistas e nominalistas —, como hoje, nos nossos cavalinhos, entre seus juvenis frequentadores, há azuis e verdes. O moderno debate ainda não se estabeleceu; embora isso, eu sou conceitualista como Abelard; e por sê-lo é que tenho pena de Mme. Belasman em face do orgulho do Felismino da Fundição da Mortona...
A noite caía rapidamente. A tarde, dúbia, apressara-lhe a queda e não nos dera senão um monocrômico crepúsculo de chumbo, com bambolinas de teatro. Por nós, uma caleça descoberta, suja e feia, passou, sopesando um par gordíssimo, que parecia não temer a tempestade que se anunciava. Tínhamos deixado o parque e descemos pachorrentamente a Rua da Constituição, sem medo também do aspecto torvo da tarde. Depois da caleça estalou uma leve charrete, cuja passagem pôs alguma coisa de alado, de independente e petulante, naquele ambiente taciturno. Nós dois, por minuto quando no largo do Rocio, estivemos sem nada dizer, parados, olhando para um lado e outro, até que Gonzaga me disse:
— Vamos ainda ao Garnier, pois quero comprar o Poincaré — La Science et l'Hipothese. Depois iremos jantar umas petisqueiras. Descemos a Avenida em direção à Rua do Ouvidor.