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Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919)/VII

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VII

Pleno contacto

 

Quando fui á Secretaria dos Cultos tratar da questão do Cardeal, falei em primeiro lugar, como era natural, com o director geral dos cultos catholicos, o Barão de Inhangá. Era um velho funccionario do tempo do Imperio que se fizera director e Barão, graças ao seu nascimento e á sua antiguidade de funccionario. Homem intelligente, mas vadio, nunca entendera daquillo nem de coisa alguma. Entrára como chefe de secção e durante as horas de expediente o seu maximo trabalho era abrir e fechar a gaveta da sua secretaria. Foi feito director e, logo que se repimpou no cargo, tratou de arranjar outra actividade. Em falta de qualquer mais util aos interesses da patria, o Barão fazia a toda hora: e a todo o instante a ponta no lápis. Era um gasto de lápis que nunca mais se acabava; mas o Brasil é rico e aprecia o serviço de seus filhos. Quando completou vinte e cinco anos de serviço, foi feito barão. Como dizia, falei-lhe em primeiro lugar e ele me mandou ao chefe da seção “De Alfaias e Paramentos”. Logo que entrei na sala, feriu-me o destaque original de Gonzaga de Sá. O chefe da seção era uma mediocridade das mais banais; mas senti em Gonzaga muita naturalidade, muita força nas suas maneiras e um forte ar de segurança no seu alto semblante, em V. Depois de expor ao diretor da seção o objeto da minha visita, ele tomou o “papel” que eu levava e escreveu no alto de uma das folhas:

— Ao Sr. Gonzaga de Sá para informar e dizer a respeito.

Fomos, eu e o contínuo que me acompanhava, até o oficial designado, e tive verdadeira alegria em verificar que era aquele de quem me afeiçoara ao entrar. Reparei que, antes de escrever, o magnífico chefe das “Alfaias e Paramentos” meneou a caneta ao jeito de um esgrimista, e pareceu-me que a tinta lhe ia, pingando do nariz tímido e vermelho. O seu cursivo, ao fim de minutos, naquelas minguadas letras, surgiu caprichoso, floreado e abundante de uma respeitabilidade de escritura chaldaica. Segui o “papel” até a mesa de Gonzaga de Sá, a quem expus a atroz dificuldade. À luz da leitura vagarosa do processo, o simpático informante considerou bem o caso; e, em breve, sorrindo com a sua úmida boca de moça, perguntou-me:

— Porque não se houve a Secretaria da Propaganda, em Roma?

Logo, porém, tomando da pena, num papagaio, pôs-se a informar com a solenidade requerida. Fora tão brusca a passagem de uma atitude à outra, e os gestos revelaram-me tão bem as suas duas pessoas, que senti imediatamente como se escondia sob aquelas formalidades passageiras a palpitação moça de uma inteligência livre, que se adaptara superiormente ao feitio espiritual de sua terra e à sua própria fraqueza de gênio prático. Foi verdadeiramente daí que nasceram as nossas relações. Por meses seguidos, nós nos encontramos rapidamente, cumprimentando-nos com as maiores arras de simpatia. Insensivelmente, esses encontros demoraram-se, e, portanto, melhor eu pude ir percebendo que se ocultava sob o seu azedume habitual uma grande alma compassiva. Em começo, pareceu-me que ele sistematizara o ressaibo amargo de alguns pequenos desgostos, para formar um temperamento original; mas, com o tempo, verifiquei que não havia em todas as suas manifestações nada de buscado, de procurado, — tudo nele era estrutural e as suas originalidades lhe tinham vindo naturalmente e foram-se fazendo com o lento trabalho sedimentar do tempo, do isolamento, da bondade e do íntimo sofrimento. Então, desconfiei que uma grande mágoa lhe turvara a mocidade, e que essa mágoa, por não a ter nunca confessado, por não lh’o consentir a sua reserva, ficou-lhe imprecisa, vaga e fugidia. Procurei decifrá-la e concebi hipóteses. Não vinha de amor; seria vulgar demais para Gonzaga de Sá. Entretanto, não afianço... No meu amável amigo, a crítica precedia qualquer ato; e assim o amor não faz males. Enfim... Teria tido sempre esse gênio? Ele mesmo me confessara que, a bem dizer, se esquecera de casar; e só lhe passara isso pela ideia nas duas vezes já aludidas. Seria de alguma delas que lhe vinha a mágoa? Não sei, contudo, uma ou outra vez, surpreendi-lhe certos gestos estranhos.

Ao entrar de manhã na seção dos Paramentos, vi de longe que Gonzaga de Sá, desenhava; e quando deu comigo, escondeu grosseiramente o papel. Não era um tal movimento da sua educação e eu pude ver, de relance, que se tratava de uma fisionomia humana. Uma tarde, num botequim em Copacabana, fui dar com o meu velho amigo a rabiscar a carteira. Tomava notas, disse-me, e eu acreditei.

Afora tais gestos, nada me revelava que houvesse nele qualquer mossa de um brusco choque com a vida. Poder-se-ia, para arranjar uma explicação do seu estado d’alma, admitir que a mágoa lhe andava esparsa na desigualdade de sua natureza, na variedade de suas aptidões, sem uma preponderante e vitoriosa, na sua amarga e dorida visão da vida e no seu anelo de absoluto. Havia nele um drama de organização e inteligência, ou o que havia?

Fiz, como verão, todas as hipóteses, mas nunca nenhuma me satisfez; entretanto, para não cansar o leitor, eu lembrarei como Poe (creio eu) que a verdade está sempre na hipótese mais simples, ao que Comte ajunta: a mais simpática. Cada um que faça a sua de acordo com esses conselhos.

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Por uma tarde clara de quinta-feira, foram me lembrando tais coisas enquanto palmilhava o caminho que ia ter à casa do meu amado amigo. Acompanhava-me por ele afora, de envolta com essas agradáveis recordações, uma grande e exuberante alegria na alma. O contato ia ser pleno, e a visita dar-nos-ia o perfeito enlace das nossas almas. Caminhava como para um quarto de núpcias. Mais do que o jantar e as águas fortes que ele me convidara a folhear, levavam-me à sua casa, a simpática curiosidade de viver o interior e o desejo de saborear a sua inteligente palestra, paradoxal e um tanto sentenciosa. Na nossa terra de submissão antecipada, o paradoxo encanta, mesmo sob o aspecto sentencioso. Subi devagar uma rua em ladeira pelas bandas da Candelária; e bati palmas, com respeito, no portão do jardim de sua velha casa, lá quase no alto de Santa Teresa. Veio-me abrir a porta um preto velho, da raça daqueles pretos velhos que sofreram paternalmente os caprichos das nossas anteriores gerações.

— Senhor Gonzaga de Sá?

— Nhonhô?

— Sim, meu velho.

Entrei para a sala principal da casa, da qual mestre Gonzaga de Sá fizera a sua de estudos. Tinha o teto em tronco de pirâmide retangular e esticado, e as estantes, a não ser nos vãos das janelas e portas, eram pequenas, da altura do peitoril da janela, e guarneciam a sala em toda a extensão das quatro faces. Por cima delas, ao jeito de um longo consolo, havia bustos, quadrinhos e minerais insignificantes; e, nas paredes, além de dois ou três pequenos quadros a óleo, uma reprodução da Primavera de Boticelli e um Rouget de Lisle, cantando pela primeira vez a Marselhesa. Havia também sobre a secretária um busto de Julio César e, pregado à parede em que ele se encostava, bem alto, um magnífico retrato de Dante, enquadrado em moldura vulgar. Lia-se-lhe em baixo, em letras góticas, este verso do Inferno: Amor, che a nullo amato amar perdona. Pairava por toda a sala o olhar transcendente de um mocho de bronze, empoleirado na “bandeira” da porta de entrada. Com isso, tudo em muita ordem e sem luxo; havia desordem só na grande mesa do centro, em que livros, revistas, papéis se baralhavam familiarmente. Uma cadeira de balanço destinava-se às longas meditações vadias; à direita da mesa, uma cegonha de pescoço esticado, naquele meneio arisco de cabeça tão característico desse pernalta, presidia com elegância e desconfiança ao laboratório das cismas e dos pensares de Gonzaga de Sá.

Vasos com pequenas palmeiras e avencas estavam espalhados por entre tudo isso. Recebeu-me de pé, com um pequeno jornal na mão.

— Pontual. Cinco horas.

— Pensei não te encontrar ainda. Foste visitar o compadre aos subúrbios?

— Fui. Pobre compadre! Vai mal; depois da viuvez piorou muito...

Gonzaga de Sá baixou um tanto a cabeça e, depois, bruscamente, como quem quer afastar uma ideia triste, acrescentou:

— Fui. Cada vez mais interessantes, os subúrbios. Sobremodo namoradores e feministas...

— Feministas?

— Feministas! Como não? A atividade intelectual daquela parte da cidade, ao se entrar no trem, parece estar entregue às moças... Tal é o número das que trazem livros, violinos, rolos de música, que a gente se põe a pensar: estamos no reino da Grã-Duqueza? Conheces a Grã-Duqueza?

— Não.

— É uma opereta de Offenbach em que as mulheres são homens, fazem guerra, têm exércitos... Eu a vi pelo Vasques... Que graça tinha esse ladrão! Dizia muito bem, com muita malícia — se o nenê chorar, quem há de lhe dar de mamar? Ah! o Vasques! Que saudade!... Nos subúrbios dá vontade de perguntar — quem há de dar de mamar aos futuros filhos dessas meninas?

— Não há perigo algum, disse-lhe eu. Quando vier o casamento, fecham as gramáticas, queimam as músicas, e começarão a repetir a história igual e enfadonha de todos os casamentos, burgueses ou não.

— Há de ser assim mesmo, pois a eternidade de nossa espécie parece repousar sobre bases sólidas. Que achas?

— De pleno acordo, repliquei eu. Basta que as mulheres, sejam quais forem as condições delas, não pensem em outra coisa e queiram-na de qualquer modo até o ponto de fazer a raça humana a mais perfeitamente desgraçada de todas as raças, espécies, gêneros e variedades animais e vegetais do planeta. Eu as acuso!

— Às vezes penso dessa maneira, sem dúvida de natureza alguma; mas, depois, surge cada coisa que... Há duas horas, na estação da Piedade... Mas... Vênus é uma deusa vingativa, dizem.

Eu me tinha sentado no divã, junto à porta de entrada, e, mestre Gonzaga de Sá, na cadeira de balanço. Entre nós, em todo o seu comprimento, havia a grande mesa do centro. O meu amigo tinha-a ao alcance da mão, enquanto eu estava um pouco afastado. Pelas janelas abertas entrava a branda viração da tarde, e as emanações do jardim eram trazidas por ela e se dissolviam pelo ambiente todo. Olhando as deliciosas figuras do melancólico Sandro, discorria o meu generoso amigo:

— Há duas horas, na estação da Piedade, esperava eu o trem. Afinal, foi ele anunciado. Daí a instantes apontou, ao tempo em que um homem atravessava a linha um pouco, a montante da estação. Avisos... gritos... gestos... O trem apita. O homem entontece, ataranta-se e é apanhado — mas de que maneira, meu Deus?! O limpa-trilhos levanta-o, atira-o sobre aquela espécie de plataforma-proa — sabes? O animal agarra-se a um ferro e a locomotiva acaba parando, bem junto à estação, trazendo o pobre homem de cabeça partida, humilhado, ensanguentado, mas vivo, vivinho, aparvalhado, sucumbido, completamente esmagado de terror diante daquela besta paleontológica que ele mesmo inventara. A eternidade da nossa espécie repousa sob bases sólidas, Machado.

Ouvindo uma voz na sala, voltei-me.

— Machado: minha tia Escolástica, apresentou-me Gonzaga de Sá.

Que linda figura de velha era a dela. Muito clara, com uns olhinhos verdes e um miúdo perfil de criança. Tudo era candura e simpatia naquela velha solteirona. A alvura de seu casaco ressaltava extraordinariamente, imaculada, e seus cabelos brancos, já com aquele tom amarelo da grande velhice, eram apanhados em bandos, com uma rede de linha preta. Não me pude demorar mais, vendo-lhe a fisionomia de setuagenária. Gonzaga de Sá pediu licença e foi com ela ao interior da casa dar uma providência. Voltou logo. Houve tempo, porém, para que eu, indiscretamente, pudesse ver sobre a mesa uma folha de papel rabiscado. Havia oito ou dez narizes desenhados sucessivamente, e por mão inábil que se esforça em vazar uma forma que viu ou já ouviu e ainda tem em mente. Que singular mania, meu Deus.

— Não imaginas, disse-me ao entrar, como estes pombos me dão trabalho.

— Crias pombos?

— Crio. Gosto das aves, especialmente dos pombos, do seu voo, das irisadas penas do seu pescoço, da sua graça, da sua natureza intermediária de ave de terreiro e de voo... O brutamontes do meu gato mete-lhes medo; mas os pobrezinhos voam para o Sol... Já tens fome?

— Não.

— Mandei trazer um pouco de vinho Bucellas branco. Gostas?

— É delicioso.

Dentro em pouco o velho preto Inácio entrou com os copos e a garrafa numa bandeja.

— Deixa aí, Inácio.

Embora Gonzaga de Sá falasse com toda a brandura, o pobre velho quase deixou cair a garrafa.

— Não imaginas, menino, que tesouro de dedicação há nesse homem. Eu não sei de onde ele o tira e de que maneira argamassou tão grandes sentimentos. Nasceu escravo, uns dias antes de mim; meu pai o libertou na pia, por isso. A mim me acompanha desde os primeiros dias do nascimento. É um irmão de leite. Viu-me nas atitudes mais humildes; apreciou-me em propósitos repugnantes; assistiu ao desmoronamento da grandeza da minha casa familiar; entretanto, não sendo, como parece a todos, destituído de inteligência critica, sou para ele o mesmo, o mesmíssimo, cuja representação se lhe fez na consciência, no correr dos seus primeiros lustros de vida. Eu não o chego absolutamente a compreender. Acho-o obscuro; mas me deslumbra — é grandioso! Às vezes, confesso, me parece uma subalterna dedicação animal; às vezes, também confesso, me parece um sentimento divino... Eu não sei, mas amo-o.

Não fora sem comoção que Gonzaga de Sá me dissera isso; houve como um ligeiro trêmulo na sua voz, e talvez para disfarçar foi que pegou de um pequeno jornal de província, passando o olhar ligeiramente por ele.

— Lês a Gazeta de Uberaba? indaguei.

— Leio. Um amigo, político lá, manda-me.

— Que ele te mande, não é de admirar; mas que a leias!...

— Leio. Gosto dos jornais obscuros, dos jornais dos que iniciam. Gostos dos começos, da obscura luta entre a inteligência e a palavra, das singularidades, das extravagâncias, da livre ou buscada invenção dos principantes.

— Estás como o meu amigo Domingos Ribeiro Filho, que diz: todo o vitorioso é banal.

— Concordo com ele, mas unicamente no meu estreito ponto de vista pessoal.

— De certo.

— Eu assino a Pesquisa, de Cascadura. Está ali um exemplar. Tira.

E apontou uma estante junto de mim.

— Esta?

— Sim. Lê o sumário.

Tinha em mãos a Pesquisa, de Cascadura, em cuja capa, feia e suja, a envolver uma má brochura de sessenta paginas, li vagamente: Literatura subjacente; Teixeira de Souza, o estilista e o romancista, por Gualberto Marques; Halos, poesia por Beltrando F. de Souza; O pintor Manuel da Cunha e os coloristas fluminenses do Século XVIII, por Aymbiré Salvatore; O temperamento na ciência, por I. K.; A matemática dos árabes e hindus e o cálculo diferencial em face da geometria grega, por Karl von Walposky da Costa; Da necessidade de corromper a língua portuguesa falada no Brasil, por Bruno Uricury Furtado; A dissociação da matéria e o inabalável científico, por Frederico Balspoff de Melo; Os casos do mês e os seus comentários, crônica por Baldonio Flaron.

Em seguida pus-me a folhear, lendo aqui e ali as páginas da suburbana publicação mensal. Não o fiz sem surpresa. Causava admiração que em tão detratado subúrbio se agitassem tantas ideias diferentes e novas. Gonzaga manteve-se calado, sem perder um só dos meus gestos. Gozava...

— Cascadura dando a nota, hein?

— É verdade.

— À vista dos nossos grandes jornais e revistas catitas, a Pesquisa, de Cascadura, é uma bela publicação intelectual. Folheei ainda uma vez a brochura; li trechos aqui e ali, e depois disse:

— Curioso é que haja tanta gente obscura capaz de escrever sobre assuntos tão elevados. Conheces algum?

— Nenhum; mas o que te surpreende?!... Há entre nós muito talento. O que não há é publicidade, ou, antes, a publicidade que há é humilhante, além de completamente destituída de vistas superiores.

— Como?

— Muito simplesmente... Analisemos: quais são os meios de publicidade?

— O jornal e a revista.

— ....e o livro, concluiu Gonzaga de Sá.

— O livro também.

— Um jornal, dos grandes, tu bem sabes o que é: uma empresa de gente poderosa, que se quer adulada e só tem certeza naquelas inteligências já firmadas, registradas, carimbadas etc. etc. Ademais, o ponto de vista limitado e restrito dessas empresas não permite senão publicações para os leitores medianos, que querem política e assassinatos. Os seus proprietários fazem muito bem, dão o que lhes pede o público... Se não consultam as médias, têm que lisonjear os potentados, os graúdos, porem-se a serviço deles — gente, em geral, perfeitamente estranha ao tênue espírito brasileiro e que não quer saber de coisas do pensamento desinteressado... Além disso, são necessárias mil curvaturas para chegar até eles, os grandes jornais; e, quando se chega, para não escandalizar a média e a grande burguesia, onde eles têm a sua clientela, é preciso atirar fora o que se tem de melhor na cachola.

— E as revistas?

— São a mesma coisa, tendo a mais as fotografias.

— Não há entre nós, continuou ele, aquela procura que estimula a argúcia dos editores e empresários de publicidade do estrangeiro — a da inteligência viva e nova. Qual o que! Satisfazem-se os nossos negociantes de livros e jornais com o ramerrão, e, para variar, mandam buscar a novidade em Portugal. Sofreiam o nosso pensamento, porque, quem não aparece no jornal, não aparecerá nem no livro, nem no palco, nem em parte alguma — morrerá. É uma ditadura.

— Você deve dividir a culpa... E o público? e os autores?

— O público é maleável, é dirigível; os autores, estes sim, têm culpa. Entretanto, eu achei um meio de travar conhecimento com a jovem inteligência de minha terra: leio as revistas obscuras e alguns jornais de província.

Se a dor da rima e do metro aumentam a beleza da poesia, a escassez do espaço dá um grande realçe aos artigos das pequenas revistas. Adivinha-se muito do que os autores não puderam dizer; inventando-se também muito do que nem sequer lhes passou pela mente... Sugere?

— É possível que tenhas raras emoções na leitura das pequenas revistas, mas nos jornais de província — tão cheios de política e intriga!

— Engano! Este número da Gazeta de Uberaba é um desmentido perfeito ao que asseveras.

— Ora! Questiúnculas!

— Questiúnculas! Hom’essa! Altas questões sociais, meu amigo! Cuida da indústria pastoril e diplomacia!

Ao dizer isto, Gonzaga de Sá foi-se levantando aos poucos, pondo-se afinal de pé e fazendo menção de ler, com o jornal à altura dos olhos.

Olhei um instante à janela. As nuvens esgarçavam-se nas cumiadas das montanhas e cobriam-se diversamente à luz macia do poente. Aqui, era laranja; ali, púrpura, ouro, anil, cinzento; ora franjavam-se; ora em novelos; ora em fitas, em barras, tomando as mais caprichosas e instáveis formas, com as mais belas cores dos belos céus.

Gonzaga de Sá não teve tempo de pronunciar uma palavra. Iluminada, com uma luz de retabulo, na porta de comunicação, D. Escolástica, a tia, apareceu, convidando:

— Venham jantar.

Fomos. Gonzaga de Sá levou ojornal.