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Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919)/VIII

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VIII

O Jantar

 

D. Escolastica obrigara-me a passar deante della e Gonzaga de Sá seguira-nos com o jornal na mão. Penetramos na sala contigua, onde parei um bocado, a ver os retratos de familia. O Mestre não rompera com a tradição, que os quer na sala de visitas. Ahi os tinha, e não no seu gabinete de trabalho. Havia uma galeria de mais de seis veneraveis retratos de homens de outros tempos, agaloados, uns, e cheios de veneras, todos; e de algumas senhoras. Sem bigodes, de barba em collar, com um olhar imperioso e sobrecenho carregado, um delles me pareceu que ia erguer o braço de sob a moldura dourada, para sublinhar uma ordem que me dizia respeito. Cri que ia ordenar: mettam-lhe o bacalhão. Virei o rosto e fui pousar o olhar na figura impalpável de uma moça com um alto penteado cheio de grandes pentes, muito branca, num traje rico de baile alto de outros tempos.

— Quem é? perguntei:

— Minha avó, em moça, mãe de meu pai. Viveu em França, assistiu à revolução. Demorei-me olhando o retrato e os meus sentimentos já eram outros. A fisionomia benévola da moça, terna, irresistivelmente meiga, fizera-me esquecer a carranca do velho de barba em colar.

— Gostaste? Tem alguma coisa da Escolástica, não achas?

— Parecem-se.

— Quando moça, era exatamente, dizia meu pai, exceto os olhos que, em Escolástica, puxam para o verde e, nela, eram profundamente azuis, de Minerva. Não parece nada com os outros meus avós, cujas fisionomias dão a entender que tinham da vida uma visão de carrasco.

— Você tem cada propósito, Manuel. Pareces doido... Ele foi sempre assim. Nunca se o pôde entender, disse para mim a velha tia.

— Não há desrespeito nenhum... Cada um na sua época, refletiu Gonzaga. Por mais que não queira, homem do meio, o meu retrato para os pósteros deve ter alguma coisa de parecido com o do de um homem de prego. O onzenário, sob este ou aquele disfarce, é o homem representativo da época...

E seguimos para a sala de jantar, não sem que eu deitasse um longo olhar sobre aqueles velhos móveis de jacarandá, tão amplos e fortes que se diria feitos para outra raça de homens que não a nossa, aquela que vemos por aí nas ruas, nos teatros, nas regatas, nas corridas, mesquinha e sórdida.

D. Escolástica sentou-se à esquerda; Gonzaga de Sá à cabeceira, e eu à sua direita. Pela janela nas duas extremidades da sala, fiquei vendo o exterior. Desciam pelo flanco bruscamente claro da pedreira pequeninos negrumes de gente; à esquerda, na chapada do morro, uma palmeira adelgaçava-se pelos ares.

— Gostaste da casa?

— Gostei.

— Foi de meu pai... Que sacrifícios para ficar com ela! Não queiras nada com a justiça, pois quase sempre é a única herdeira. Felizmente conservei-a.

— Foi a única vez que te vi ativo, refletiu D. Escolástica.

— Pudera! Eu amava o ambiente, as vistas, o teto, as paredes...

— Quase não mudou nada, observou a tia.

— Alguma coisa. Aquela palmeira, por exemplo, explicou Gonzaga de Sá, apontando à janela, é nova.

— Nova! Tem mais de vinte anos, fez D. Escolástica.

— Nova, sim! Se não nos viu nascer...

Olhei ainda uma vez a altiva elegância da árvore, lá, muito no alto, pairando sobre toda a cidade, e a beijar as nuvens radiantes. Há mais de vinte anos sofria a violência inconstante dos ventos; há mais de vinte anos escapava à raiva traiçoeira do raio; há mais de vinte anos suportava o rugido inofensivo do trovão.... Todas essas negações, e as outras vindas da terra dura, granítica e pobre, fizeram-na maior, mais airosa, deram-lhe mais orgulho e atiraram-na aos ares altos. Hoje, plana sobre tudo, sobre a cidade, sobre a ingratidão do granito e olhará compassiva e desdenhosa as pobres e cuidadas árvores que enfeitam as ruas. O jantar começou a ser servido por um copeiro dos seus dezoito anos. Acabando de tomar a sopa, Gonzaga de Sá, que tinha o pequeno jornal na mão, disse-me:

— Eu não quero adiar o prazer que te prometi.

— Qual?

— A leitura destas lindas crônicas da Gazeta de Uberaba.

— Vamos ver.

— Trata-se da chegada a Uberaba de...

— Alguns poetas?

— Não.

— De naturalistas?

— Não. Trata-se da chegada de reprodutores zebus. O jornal ocupa-se com o fato em três colunas e começa assim: “Ainda uma vez Uberaba teve ensejo de constatar o quanto pode a iniciativa dos seus filhos etc., etc.”

Continuou a ler e em outro ponto, disse-me:

— Guarda esta frase: “batedores de uma nova cruzada etc.”

Emendou a leitura e, em dado momento, chamou-me a atenção:

— Olha este pedaço: “embora o adiantado da hora, grande massa de povo, calculada em cerca de quinhentas pessoas etc.” Que multidão! Hein?

Reencetou a leitura e não tardou em interrompê-la para sublinhar certo trecho.

— Nota que houve música: “então” (quando chegaram os touros e as vacas) “a banda

‘Santa Cecília’ rompeu brilhante dobrado e nutridas aclamações se fizeram ouvir.” Vivam as vacas! Acrescentou Gonzaga.

Seguiu por diante a sua leitura e, em certo ponto, disse-me:

— Observa este pedacinho: “vieram alguns individuas ‘nelore’... destacando-se um pelo belo porte e excepcional beleza...”

Abaixou o jornal e considerou:

— Imagina tu quantas vacas amorosas não o esperavam em Uberaba.

A tia, a esse tempo, repreendeu-o:

— Que é isso, Manuel, acaba de jantar!

O jantar daí por diante correu calmamente, sem a intervenção do gado zebu. Aproveitando o incidente, D. Escolástica pôs-se a narrar-me a estranheza da vida do sobrinho. Não parecia um velho, não tinha horas para nada, não tinha método algum. Comia a toda hora; levantava-se alta noite e saía; passava dias fora de casa, com um e com outro. Parecia verdadeiramente um cigano, desses que vivem ao Deus dará.

— Não sei ainda como vives, rematou D. Escolástica com aquele seu ar natural e untuoso.

— Ora! fez ele.

— Há dias que ele me chega aqui, continuou D. Escolástica para mim, à meia noite... E sem jantar! Não sei onde anda... Chega cansado... E não é tudo: há noites que passa em claro a ler, a ler...

Admirou-me muito o interesse afetuoso com que ela seguia a vida do sobrinho. Revelava um desvelo diário, minuto a minuto, de dia e de noite..

— Tu não me compreendes, Escolástica, apesar de me teres criado.

— Sim, de certo; essas maluquices... Essas tuas vagabundagens...

E o diálogo continuou assim, com uma frescura juvenil de amuo entre irmãos de vinte e poucos anos.

— É verdade que o Manuel sempre foi extravagante. Uma vez (ela se pôs a me contar) meu irmão, o pai, foi agarrá-lo na janela do sótão. Desce, Manuel, desce! Que fazes aí? O senhor sabe o que ele respondeu?

— !...

— Quero voar, Papai. Meu irmão repreendeu-o muito e Manuel chorou o resto da tarde.

— Era bem meu pai, lembrou Gonzaga de Sá. Alto, meticuloso, muito grave e solene — conheceste?

— Não; nem podia.

— É verdade.

— Esteve no Paraguai?

— Não. Já não podia. Depois da guerra contra Rosas, em 1852, ficou no magistério, como lente da Escola Central, explicou-me Gonzaga de Sá. Estava já muito alquebrado, em 1865, quando rebentou a guerra contra Lopes.

— Tiveste um irmão que morreu na campanha?

— Tive; o Januário, o mais velho.

— E os outros?

— Todos morreram sem descendentes. Só uma irmã, a Maria da Glória, que vive ainda na Bahia, onde o marido é desembargador aposentado, é que teve filhos, quatro penso eu, que já lhe devem ter dado netos. Não a vejo há trinta anos e não lhe escrevo há cinco.

— É a mais moça?

— Não; sou eu. Ela é mais velha do que eu um ano e pouco.

— E tua mãe, morreu muito moça?

— Não; em boa idade. Deixou-me com oito anos. Quem me criou foi Escolástica.

Ao dizer tais palavras, houve na voz do meu amigo um pequeno tremor; entretanto, era banal o fato que a frase lembrava e o jantar chegou à sobremesa, entremeado por esse diálogo. O café foi servido na sala de visitas, com as janelas abertas para as bandas de Niterói, que começava a iluminar-se. A sala ainda não tinha luzes e havia uma grande paz no exterior. Casas do morro começavam a iluminar-se e todas pareciam contemplar-nos com simpatia. A palmeira, em pé, muito firme, adormecera. Uma cigarra estridulou no jardim, e mais depressa nos vieram as cismas. A cigarra calou-se. Fumávamos, eu e Gonzaga, e olhávamos o morro, enxergando pouco.

— Como estará o Romualdo?

— Como vai ele? perguntou D. Escolástica.

— Muito mal. E o Aleixo Manuel, aos oito anos, tão vivo, tão excepcional... Coitado! Sem as doçuras maternas já; agora, o pai... Como vai ser sempre a sua alma cheia de arestas...

— Ele tem ido ao colégio, Manuel? fez-lhe a tia.

— Vai. É uma criança extraordinária, muito mesmo; já lê desembaraçadamente e calcula... Ah! se for o gênio esperado!.. Quem dera!?

Gonzaga pôs-se a olhar interrogativamente. A sala estava quase em treva completa e, na indecisão dos traços de sua cabeça, eu só via o seu grande olhar que me envolvia todo, respirando vaticínios de simpatia. D. Escolástica ergueu-se da cadeira, olhou um pouco a janela, depois voltou-se e disse, destacando palavra por palavra:

— Está escuro. Acende as luzes, Manuel.

E os bicos de gás foram acesos vagarosamente. O velho piano Erard, de cauda, monstruoso, muito grande, surgiu todo inteiro na sala iluminada, como um animal fantástico. Mal as luzes brilharam, a paz externa quebrou-se. Houve um pequeno sussurro e a vida das coisas continuou.

— D. Escolástica não toca?

Esta pergunta eu lhe fiz por mera polidez, visto que a sua avançada idade já a devia ter separado do velho instrumento.

— Há trinta e tantos anos que não.

— Desgostou-se??

— Desde que ouvi o Gottschalk não tive mais ânimo de me sentar ao piano. Só quem o não ouviu! Era macio, que coisa! Tinha não sei o que nas mãos...

E a velha senhora queria achar palavras, modismos que transmitissem a grande impressão que lhe fizera o pianista e suas músicas; e, com o esforço, o seu olhar de esmeralda tomou mais brilho, correndo por ele uns lampejos de mocidade breve apagados.

— Nunca ouviste peças dele? perguntou-me Gonzaga de Sá.

— Uma ou outra.

— Merecia ouvi-las. São bem diferentes da música dos mestres europeus — seca, cerebral, sem raízes na nossa sensibilidade americana. O Gotschalk era fantástico, dolente, impetuoso... Aqui ele provocou um delírio geral.

— Gostavas muito, não era, Manuel? Lembro que foste a todos os concertos com teu pai. Falavas muito na Morta, no Poeta...

— .... na Savana, na Bamboula, nos Olhos creoulos, concluiu Gonzaga de Sá. Que entusiasmo gerou! E estávamos em guerra com o Paraguai... Não foste, Escolástica, ao concerto monstro?

— Não; mas fui ao benefício da Stoltz. Nunca houve aqui um beneficio como o dela. Manuel era muito menino; tinha onze ou doze anos. Eu fui. Hoje, quando me recordo, me parece estar vendo a sala do Provisório repleta e linda de senhoras e moças. Depois da ária Oh! mio Fernando!, da Favorita, houve um estrépito d’almas, flores e flores, brindes. A duquesa de Abrantes, sobre uma almofada por ela própria bordada, manda-lhe uma coroa. A sala delirou — coroai-vos! coroai-vos! Flores, gritos, flores, gritos... A Stoltz hesita, afinal põe o emblema na cabeça. Que mulher! Nem que fosse uma rainha!

E eu refletia comigo mesmo sobre a ingenuidade daquela sociedade; e D. Escolástica continuava:

— Parecia uma palma só — todas ao mesmo tempo...

— Meses depois, vinham as descomposturas, as perlongas parlamentares, os epigramas — não foi, Escolástica? observou Gonzaga.

— É verdade. Tudo aqui é assim: muita festa, muita festa, depois...

— Houve até uns versinhos, continuou Gonzaga, que ficaram famosos. Diziam-nos do Francisco Octaviano:

Que importa que digam que é velha, que é feia
Que pinta os cabelos, que enfeita o carão

Gonzaga de Sá tinha lágrima nos olhos e a tia olhava para o teto cheia de beatitude. Admirei-me e disse:

— Como te lembras!

— Ora!... A cidade os soube de cor durante dez anos.

— O Lírico foi sempre o nosso fraco, refleti.

Influência do Império. O Provisório custou rios de dinheiro. Precisava-se de um salão, de um lugar de encontro para a grande gente. Nós não tínhamos palácios, não havia uma educação mundana... Acrescia a falta de cultura das altas classes. Sem que, em geral, tivessem recebido um forte preparo na mocidade, a gente rica, os plantadores, os grandes negociantes, e mesmo os políticos, só podiam compreender a música e a ópera no Teatro — lugar em que pouco se fala. Era preciso uma casa elegante para poli-los com auxílio da arte. A ópera tem esta vantagem, é fácil, compreensível, popular, por mais que os magnatas queiram-na fazer transcendente. Quem, durante vinte, trinta anos, esteve fora das coisas da inteligência, pode compreendê-la do pé para a mão, sem esforço. A ideia do Imperador, ao iniciar uma aristocracia, foi aproveitar essa música para reuni-la, obrigá-la a se encontrar, a se falar, a se casarem entre si. Falhou. A nobreza não se fez e o Lírico degenerou em moda idiota, sempre com o mesmo espírito curto, mas sempre em roda de tolos. Procura exemplo, hoje, na sala do Lírico os grandes nomes de 52. Onde estão? Onde param os filhos, os netos? Não se sabe...

D. Escolástica nada dizia. Naturalmente, nada compreendia daquelas ilações do irmão. Eu fiquei surpreso, embora Gonzaga de Sá já me tivesse habituado a tudo. Pelas oito horas despedi-me e vim descendo a ladeira devagar. Tinha penetrado no passado, no passado vivo, na tradição. Em presença daqueles velhos bons que me falavam das coisas brilhantes de sua mocidade, tive instantaneamente a percepção nítida dos sentimentos e das ideias das gerações que me precederam. Em torno daquele legendado “Provisório”, grotesco e formalista, que eles evocaram, pude ver os trabalhos e as virtudes dos antepassados e, também, seus erros e seus crimes. Vim descendo... Lançara mais uma raiz; estava mais firme contra as pressões externas, senti que sorvera também uma gota de veneno. Tomei o elétrico. No primeiro banco sentei-me, e me pus a mastigar ideias. Atravessei a rua do Catete e, muito animado, o rococó Largo da Glória. Vi o velho Passeio regurgitando. Tinha mastigado ideias... Não há civilização isenta de crimes e de erros — conclui. Estava na Estação.Saltei.