Visão (Machado de Assis)
Vi de um lado o Calvario, e do outro lado
O Capitolio, o templo-cidadella.
E torvo mar entre ambos agitado,
Como se agita o mar n'uma procella.
Pousou no Capitolio uma aguia; vinha
Cansada de voar.
Cheia de sangue as longas azas tinha;
Pousou; quiz descansar.
Era a aguia romana, a aguia de Quirino;
A mesma que, arrancando as chaves ao destino,
As portas do futuro abrio de par em par.
A mesma que, deixando o ninho aspero e rude,
Fez do templo da força o templo da virtude,
E lançou, como emblema, a espada sobre o altar.
Então, como se um deos lhe habitasse as entranhas,
A victoria empolgou, venceu raças estranhas,
Fez de varias nações um só dominio seu.
Era-lhe o grito agudo um tremendo rebate.
Se cahia, perdendo acaso um só combate,
Punha as azas no chão e remontava Anteo.
Vezes tres, respirando a morte, o sangue, o estrago,
Sahio, lutou, cahio, ergueu-se... e jaz Cartago;
É ruina; é memoria; é tumulo. Transpõe,
Impetuosa e audaz, os valles e as montanhas.
Lança a ferrea cadeia ao collo das Hespanhas.
Gallia vence; e o grilhão a toda Italia põe.
Terras d'Asia invadio, aguas bebeu do Euphrates,
Nem tu mesma fugiste á sorte dos combates,
Grecia, mãi do saber. Mas que póde o oppressor,
Quando o genio sorrio no berço de uma serva?
Pallas despe a couraça e veste de Minerva;
Faz-se mestra a captiva; abre escola ao senhor.
Agora, já cansada e respirando a custo,
Desce; vem repousar no monumento augusto.
Gottejão-lhe inda sangue as azas colossaes.
A sombra do terror assoma-lhe á pupilla.
Vem tocada das mãos de Cesar e de Sylla.
Vê quebrar-se-lhe a força aos vinculos mortaes.
D'um lado e de outro lado, azulão-se
Os vastos horizontes;
Vida resurge esplendida
Por toda a creação.
Luz nova, luz magnifica
Os valles enche e os montes....
E além, sobre o Calvario,
Que assombro! que visão!
Fitei o olhar. Do pincaro
Da colossal montanha
Surge uma pomba, e placida
Azas no espaço abrio.
Os ares rompe, embebe-se
No ether de luz estranha:
Olha-a minha alma attonita
Dos céos a que subio.
Emblema audaz e lugubre,
Da força e do combate,
A aguia no Capitolio
As azas abateu.
Mas vôa a pomba, symbolo
Do amor e do resgate,
Santo e apertado vinculo
Que a terra prende ao céo.
Depois... Ás mãos de barbaros,
Na terra em que nascêra,
Após sangrentos seculos,
A aguia expirou; e então
Desceu a pomba candida
Que marca a nova éra.
Pousou no Capitolio,
Já berço, já christão.