A Confederação dos Tamoyos/Canto III

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ARGUMENTO.




Terminado o concilio, occupam-se por modos varios os moços, as mulheres e as crianças.— Responde Aimbire ás perguntas que lhe fazem ácêrca dos Europeos.— Quem era Villegagnon.— Apparecem alguns Francezes conhecidos de Aimbire.— São bem recebidos.— Ernesto e Potira se enamoram.— Pede aquelle a Aimbire que lhe conceda a mão da filha.— Este o promette para depois da guerra.— Hymno guerreiro.— O banquete da despedida.— Amores de Aimbire e Iguassú.— Dialogo dos dous amantes.

CANTO TERCEIRO.

Terminado o concilio, guerra, guerra,
Os Tamoyos unisonos bradaram,
Como si todos elles não formassem
Senão um homem só, uma só bocca.

Já dos bosques escuros e dos montes
Projectavam-se as sombras p’ra o oriente,

E a doce viração embalsamada,
Por entre os verdes ramos susurrando,
Vinha seus frescos sôpros espargindo.
Brilhavam no occidente argenteas nuvens
Sobre ondas d’ouro e purpurinas faxas;
E as aves renovavam seus gorgeios
Em despedida ao sol, que transmontava.

Era o tempo em que o bello cajueiro,
Cujos frondosos ramos o chão tocam,
Se ia tornando avaro de seus fructos,
Que ostentam do carmim e do ouro as mesclas,
E de verdes castanhas se coroam.
Chorava o tronco seu lagrimas de ambar,
Que umas sobre outras em crystaes pendiam;
Desta resina o pó n’agua solvido
É para os Indios grata medicina,
De balsamico aroma; de seus fructos
Fabricam elles precioso nectar;
E quem mais talhas tem d’este aureo vinho,
Mais rico se reputa entre os selvagens.

Destas formosas arvores copadas
Coberto estava o campo, em que os Tamoyos
Erguiam as cabanas de taquára,
Com tectos de sapê e de palmeiras,
Que vinte a mais pessoas abrigavam.
Dos esteios pendiam largas rêdes
De fio de tucum, que ao linho iguala:
Nestas rêdes repousam, nellas dormem,
Nellas gemendo deitam-se os maridos
Quando as mulheres dão á luz os filhos,
Como se elles p’ra si a dôr tomassem;
Em quanto ellas airosas e robustas
Ao serviço domestico se entregam.
Tanto o habito póde sobre a gente!

Das cabanas nos angulos se viam
Os fructos da estação, e as igaçabas
De licores diversos abundantes.

Em quanto as criancinhas se divertem

Correndo pelo campo, e outras se amestram
A disparar a setta contra os troncos,
Estão as velhas preparando as carnes,
Já expondo-as ao sol, já sobre brasas,
Já com outros diversos artificios.
Outras cavam o chão, e nos buracos
Lançam a carne ou peixe envolto em folhas;
Depois de terra os cobrem, sobre a terra
Fogo accendem, e dest’arte as carnes torram:
E a isto dão de biariby o nome.

Em quanto no domestico exercicio
Se occupam as mulheres, pelos campos
Os fructos da estação os homens colhem
Para o grande banquete: outros apostam,
Resupinos deitados sobre a terra,
Quem mais destro fará subir ás nuvens
A setta, que voltando traz a presa,
Que nem no ar voando ao tiro escapa.

A um grosso tronco reclinado Aimbire,
E ladeado dos chefes, que o interrogam,

Vai respondendo a quantos lhe perguntam
Sobre os costumes dessa gente estranha,
E o que mais vira na tomada ilheta,
Que de Villegagnon conserva o nome.

Era Villegagnon manhoso e ousado
Cavalleiro Francez, que de Calvino
Ostentava seguir a nova seita,
P’ra ter de Coligny o certo apoio
Na ambição desmedida que o movia;
Mas com todos traidor cuidava o impio
Poder com vís enganos e perfidias
Novo Imperio fundar nestas devezas,
A qu’elle – França Antarctica – chamava,
Mas faltava ao Francez aventuroso
Constancia igual ao plano agigantado;
Faltava-lhe inda mais a fé sincera
De quem attinge á ideia, não ao lucro.

Por Lery e Richer, com quem tratára,

Tinha sido o Tamoyo iniciado
Nos pontos principaes da lei de Christo:
E desses dous zelosos calvinistas
Grata lembrança o Indio conservava.

Narrava Aimbire os usos e os costumes
Dos homens do outro pólo; e como adoram
A um Deos Trino e invisível, que governa
Tudo o que existe, e que de si tirára
Só com esta palavra poderosa:
– Faça-se! – e tudo fez-se ao seu mandado.
Como vendo esse Deos o mal dos homens,
Mandou Jesus seu filho p’ra ensinar-lhes
O caminho do bem e da verdade:
Mas os homens ingratos o mataram.
« Esse Filho de Deos, dizia Aimbire,
Só ensinou aos homens que se amassem,
Que fossem todos como irmãos e amigos.
Elles confessam isso, elles o adoram;
Mas por tudo qu’eu vi, pelo que fazem,
Creio que de seu Deos as leis aprendem

P’ra calcal-as melhor, e não cumpril-as.
Vede como são máos os Emboabas.
E o que esperar podemos de taes homens. »

Nisto vio-se brilhar por entre a selva
Um clarão, que nos ares se movia:
– Quem será? – Todos gritam n’um momento:
E os esparsos guerreiros acudindo,
Em ordem de combate se formaram.
Soou um brado ao longe, e o echo ouvio-se
De um clarim, instrumento estranho a muitos,
Que de pavor encheo as almas fracas,
Cuidando ser algum Maraguigana,
Que já viesse annunciar-lhes morte.
Mas o audaz Aimbire, em cujo peito
Não palpitava o medo, assim lhes brada:
« Ou sejam Anhangás, ou sejam homens, 1
Amigos ou contrarios, aqui firmes
Esperemos sem medo. Por ventura
Tão fracos sereis vós como as mulheres,
Que fogem só co’a sombra do perigo? »

Soou de novo o lugubre instrumento;
E o destro Aimbire, já no chão deitado,
E co’o ouvido applicado sobre a terra,
Pôde melhor ouvir o som longinquo,
E logo, dando um pulo, alegre brada:
« Homens são, pela voz eu os conheço!
São do rochedo os bravos companheiros:
Rindo e cantando vem! É gente amiga,
Que vem unir-se a nós; eu a esperava. »

Gritos de almo prazer soltaram todos,
E as selvas resoaram de alegria.
Correndo em confusão receber foram
Os de Aimbire tão caros companheiros.

Mal se encontram na taba, entre os applausos
De quantos já por elles esperavam,
Para Aimbire os Francezes se dirigem;

E o principal d’entre elles abraçando
O chefe da cohorte Americana,
Na lingua do paiz lhe diz: « Amigos,
Eis-nos todos aqui para ajudar-vos,
P’ra vencer ou morrer a vosso lado.
P’ra a guerra estamos promptos, si p’ra guerra
Hoje vos preparais. Os nossos braços
Por vós dardejarão ardentes raios
Contra os vossos insanos inimigos.
Se vingar pretendeis os frios ossos
De vossos pais e amigos, dos insultos
Dos feros Portuguezes, concedei-nos
A gloria de verter o nosso sangue
Em tão sublime empreza, que adoptamos
Como si o mesmo céo nascer nos visse. »

Então o bravo chefe dos Tamoyos
Dest’arte replicou: « Chegais a tempo;
Ha bem pouco brilhava o sol nos montes,
E ouvio-me celebrar os grandes feitos

Do rochedo, em que juntos pelejámos.
Não sois estranhos, não, a esta gente,
Que já vos considera como amigos.
Em vós o coração desmente a pelle,
Cuja côr nos tem sido tão funesta.
Os raios vossos nos serão propicios
Contra os nossos crueis perseguidores.
Vinde: nossas cabanas vos esperam,
Do nosso vinho bebereis comnosco
No banquete frugal de despedida.
Si da marcha chegais afadigados,
Nossas rêdes p’ra vós estão suspensas:
E nem vos faltarão gentis mulheres,
Que alegres velarão a vosso lado,
Á gloria de servir-vos aspirando. »

Agradeceram elles a seu modo
Tão grato acolhimento, e para o campo
Entre applausos geraes se encaminharam.
Alguns mais folgazões e galhofeiros
Iam garganteando, ou já pulando,

Com que mais aos Tamoyos alegravam,
Que mui amantes são do canto e dansa.

Eis chegam: logo um côro de donzellas
De coma flutuante, e mal cobertas
Co’um tecido de pennas de tucano,
Tão esbeltas no talhe que venciam
As mais bellas palmeiras destes bosques,
Ante elles assomando graciosas
Lhes offertam em cúias coloridas
O ardente nanauy, e outros diversos 2
Saborosos licores, que ellas mesmas
De fermentados fructos extrahiram.

« Sejais bem vindos, dizem; para servir-vos
Aqui nos tendes, bravos estrangeiros. »
E nisto os vão das armas despojando,
E dos pesados mantos embebidos
De poeira e suor. – « Vinde comnosco,
Lavai nesta agua pura as mãos e o rosto,

E si o corpo vos pede algum descanço,
Nas nossas rêdes repousai tranquillos. »

« Afadigada foi nossa viagem
Por incultas veredas, disse um delles
Que a lingua do paiz melhor fallava:
Mas quem póde trocar grata vigilia,
No meio do festim dos homens livres,
E á sombra d’estas arvores amigas,
Pelo somno, que irmão do esquecimento,
Vos viria roubar aos nossos olhos!
Olhos cheios de imagens deleitosas
Só cançados de ver ao somno cedem.
Deixai, gentis meninas, que elles gozem
Das graças naturaes do vosso porte:
Qu’elles nadando em ondas de ternura
Fixados sobre vós se fartem hoje
De um prazer, que talvez bem pouco dure. »

Como apraz o louvor! Quão gratas soam

As meigas expressões! Nem da espessura
As virgens, pouco affeitas a taes mimos,
Desdenhosas se agastam escutando-as!
É feminil instincto o ouvir finezas,
Que, se amor não inspiram, nunca offendem.

– Como te chamas, estrangeiro amavel?
Com terna voz pergunta uma das moças,
Em quem mais juventude resplendia,
E que á frente das outras se ostentava
Tal como o chupa-flôr entre as mais aves.

« Meu pai chamou-me Ernesto em minha infancia;
Porém na tua terra me nomeiam
Cabellos de guará: tu vês a causa. »

« Pois eu te chamarei Guaraciaba, 3
Que co’o sol teus cabellos rivalisam.
Agora se saber queres meu nome,

Vai perguntar a Aimbire, que primeiro
Vio-me os olhos abrir á luz do dia,
Quando em seus braços paternaes tomou-me
Das mãos de minha mãi, que já não vive. »

Aimbire, que taes cousas escutava
Ao lado de Iguassú, chega-se á filha,
Aperta-lhe a cabeça contra o peito,
E enternecido diz-lhe: « Filha minha,
De meu primeiro amor unico fructo,
De tua mãi herdaste o nome e as graças;
Em ti folgo de ver minha Potira,
Potira qu’eu amei como amo a aljava,
O arco e as settas, que meu pai deixou-me;
Potira qu’eu amei como amo os bosques
Que me viram nascer, e a liberdade
Por quem hei de morrer armado em guerra;
Potira qu’eu amei, e cujos olhos
Suspenso e amoroso me traziam.
Mas ella me deixou! Ah! entre as pedras
Sobre a terra que a cobre amontoadas

Cresce o verde capim e a flôr do campo,
Que talvez de seu corpo a vida bebam.
Potira te chamei, oh filha minha,
Viva imagem d’aquella qu’eu amava.
Só tens uma rival na formosura:
É a minha Iguassú: ambas tão bellas
Como um sahy de um guanumby ao lado. 4
Que guerreiro haverá que te mereça?
Feliz daquelle para quem volveres
De amor os olhos fluctuando em ondas,
Feliz daquelle para quem tu mesma
O cauim preparares, e a quem deres
Filhos, que ao menos no valor me igualem. »

« Sim, mil vezes feliz! – Ernesto exclama.
E si a côr de meu rosto merecesse
O que já mereceram meus cabellos,
Agora afouto lhe off’recêra a dextra;
Qu’inda não vi mais bella creatura,
Gestos mais senhorís, olhos mais negros,
Olhar mais terno, mais mimosa bocca,

Onde um sorriso meigo e pudibundo
Suave amor nos corações embebe. »

Sorri-se o pai, e affabil lhe responde:
« Si o sol dêo sua côr aos teus cabellos,
Como nos dêo á pelle, tambem póde
Com seus raios crestar a côr da lua,
Que afogueada brilha no teu rosto,
E em trevas converter-te a coma de ouro.
Não serás o primeiro de côr branca
Que se enlace a uma virgem destes bosques.
Contente desde já te concedêra
A formosa Potira por esposa,
Si eu por Tupan jurado não tivesse
Que a nenhuma mulher eu me uniria,
Nem esposo daria á minha filha,
Em quanto de meu pai os frios ossos
Fossem calcados pelos pés dos Lusos. »

« Bem! exclama o Francez, dás-me esperança.

Bem! Meu braço unirei aos vossos braços,
E pela mesma causa luctaremos;
E si vencermos, como espero, oh dita!
De Potira serei fiel esposo. »

Para a guerra porém marchar não podem
Sem que primeiro tenham celebrado
Da despedida a festa. – Á festa – bradam
Com unanime voz os chefes todos:
– Á festa! á festa! – os Indios lhes respondem.
Dá Coaquira o signal, e de repente
Troam todas as bellicas inubias,
Marraques e urucás: o echo estrondoso 5
Como o rugido de enraivadas feras
Os valles repercutem: mil volateis,
Aos ninhos seus fugindo amedrontados,
Sem tino pelos ares esvoaçam,
Como as folhas das comas arrancadas
Pelos ventos nos ares remoinham.

Ao clangoroso som dos instrumentos,
Que foi pelos desertos retinindo,

Succede alto silencio. Então Coaquira
Sobre um combro de terra se levanta,
P’ra que seja de todos visto e ouvido,
E a ponta do seu arco no chão crava.
Uma alva cúia de inimigo craneo,
De licor espumante transbordando,
Aos labios chega e a esgota: eis de improviso
Sacro fogo as entranhas lhe devora;
Inflammam-se-lhe os olhos, e se envolvem
N’uma auréola de sangue; as cans mescladas
Esparsas se arripiam sobre a fronte
Como hirsutos espinhos; dentes rangem,
Franze-se a testa, as faces se intumecem;
Arqueja o peito, e todo o corpo treme,
Como si um calafrio o sacudisse.

Momento é esse em que no céo sereno
Placida alveja a lua; e ao indio vate
Com pallido clarão branquea o rosto.
As fogueiras, que em torno em chammas ardem,
Escarlates reflexos n’elle imprimem

Co’o pallor do planeta contrastando.
Mal perturba o silencio das fileiras
O brando sopro das nocturnas auras,
Que as folhas estremecem murmurando.
Oh que sagrado horror nos peitos lavra
De quantos alli ’stão! Do vate o aspecto
É de um phantasma que apparece em sonhos,
Ou dos genios malignos que se antolham
Em solitaria noite ao peregrino.

Olhos espavoridos pelo campo
Elle vibra, e depois na lua os fita.
Descruza os braços e p’ra o céo os ergue;
Bronzea, tonante voz, rouca e medonha,
Sóbe do peito aos labios arquejando,
E troveja este cantico de guerra:

« Gloria, gloria a Tupan! Sua voz trôe
Desde a cabana erguida na montanha
Té nos covís reconditos das feras.

O céo é de Tupan, a terra é nossa;
Nossos pais a regaram com seu sangue;
A nós toca morrer para vingal-os.

« Nossos pais livres foram, e temidos
Dos Aimorés terriveis, que só comem
Crua carne, e só quente sangue bebem.

« Do que nos servem mãos, arcos e flechas,
Si o fero Portuguez impune calca
Nossa terra, e captiva nossos filhos?

« Pais, mulheres, irmãos, filhos e amigos,
Ou são a nossos olhos fulminados,
Ou escravos vão ser dos Emboabas.

« Ah não! Ligeiras pernas, braços fortes,
Iremos abrazar suas cabanas,
Sem medo dos trovões, sem temer raios. »

Dança ligeira traçam os Tamoyos
Em torno de Coaquira, repetindo:

« O céo é de Tupan, a terra é nossa;
Nossos pais a regaram com seu sangue;
A nós toca morrer para vingal-os. »

De nova inspiração accesa a mente,
O bardo dos Tamoyos continua:

« Noite é esta talvez a derradeira
Para muitos de nós, em que nos veja
A lua em branda paz estar folgando.

« O sol hade amanhã dourar os grêlos
Das palmeiras do monte; e nós armados
Já marchando p’ra guerra o saudaremos.

« Eia, dancemos hoje; eia, bebamos
Entre nossas mulheres, nossos filhos,
Que amanhã só de guerra pensaremos.

« Por nós temos Tupan! Eia, no sangue
Do inimigo lavemos nosso opprobrio,
E seus corpos que fiquem sobre a terra.

« A terra os repudie de seu seio;
Só negros urubús sobre elles pastem;
E morra co’o vapor quem enterral-os.

« De herdada valentia exemplo novo
A nossos filhos demos. Morra o fraco
Que a morte de seu pai vingar não sabe. »

Pára espumando o trovador Tamoyo,
E arrobado em deliquio cahe por terra.
Gyrando o côro á roda delle canta:

« O céo é de Tupan, a terra é nossa;
Nossos pais a regaram com seu sangue;
Á nós toca morrer para vingal-os. »

Das inubias ao som termina o canto;
Cessa a dança, e o banquete principia.

De mão em mão já plenas cúias passam
De licores balsamicos, que excitam
O olfacto, o paladar, e a propria vista;
Licores pelos Indios extrahidos
Do sumo do ananaz delicioso,
Do aipim e do cajú, que a sêde aplaca,
E refrigera o mal do amor impuro,
Mimo fatal das Venus Européas,
Que a America até-li não conhecia.
Em festival, opiparo banquete
O polido Europêo não desdenhára
Taes licores gostar em taças de ouro.
Tostadas carnes de mui varias caças,

Sêccas umas ao sol, outras torradas,
Co’o pó do cumari mais saborosas,
Servem de refeição, regalo aos Indios,
E aos amigos Francezes que os imitam.
Grandes jurupirás, bellas garoupas,
Torrados camarões, fructas aos montes,
O appetite voraz tudo consume.
De comer e beber já muitos cançam:
Alguns, por tantos vinhos excitados,
Dão-se a gargantear toscas endechas;
E ao som dessas monotonas cantigas,
Que os vapés sonorosos acompanham,
Dançando alongam da vigília os gozos.
Geral contentamento o campo anima.
Porém ao quadro o aspecto a aurora muda
Quando nuncia vem ser da despedida:
Da despedida, oh céo! quão dura é ella!
Ah diga-o quem tiver de amante o peito,
De mãi o coração, alma de amigo.

Terna esposa se mostra muda e triste,
Carregando em seus braços dous penhores,
Que ella aleita e amima; outros em torno
Em brincos innocentes correm, pulam,
Ou se apoiam-lhe ás pernas, e as abraçam:
Assim de artista celebre inspirado
Destro cinzel esculpe em duro marmor
Bella estatua, que aos olhos representa
A maternal Natura caridosa.

Velha mãi alli ’stá, e um pai annoso,
Que o bravo filho abraçam, e só pedem
Que honre sua velhice, e antes fique
Para pasto de abutres sobre o campo,
Do que sem gloria volte, e sem que augmente
O collar que o pescoço lhe guarnece.

Mas em momento tal quem ha que iguale.
A formosa Iguassú na acerba angustia
Da saudade, que o peito lhe agrilhôa?

O funebre fanal, que a noite aclara,
Entre milhões de estrellas moribundas,
Quasi ao termo tocava de extinguir-se,
Qual tampada que d’oleo vai minguando;
E ao lado de Iguassú, que não dormira,
Ainda Aimbire estava. Elle dest’arte,
Disfarçando o pezar que o opprimia,
Consolar procurava a terna amante,
De cujos negros olhos borbulhavam
Como perolas lagrimas continuas,
Que elle com beijos ternos enxugava.

« Oh de Pindobuçú amavel filha,
A Aimbire destinada; olha, querida,
Como se apaga e desparece a lua
Quando sobre ella negra nuvem passa!
Assim co’o pensamento de deixar-te
O fogo de meu animo se extingue.
Vês como o calumby co’a noite murcha!
Assim meu coração de dôr se encolhe
N’este momento que p’ra mim é noite,

Apezar de que o dia vem nascendo,
E já o calumby desdobra as folhas.
Mas de guerreiro pai filho guerreiro,
Amigo de teu pai, e teu amante,
Dos Tamoyos a injuria vingar devo.
Eu me ausento de ti: mas ah! quão cara
Vai aos nossos crueis perseguidores
Esta ausencia custar! Suas cabanas
Serão por nossas mãos incendiadas,
Devorados seus campos, e seus filhos
Mesmo á vista dos pais e dos parentes
Sem piedade serão estrangulados,
Para acalmar a sêde de vingança.
Dessa raça feroz seguindo o exemplo,
Implacavel serei exterminando-a. »

Iguassú que tal ouve se arripia:
« Não mates, não, Aimbire, os innocentes
Filhinhos d’esses homens, que banhados
São ao nascer em agua mysteriosa.
Tu mesmo me contaste, que elles dizem

Que quem matar tão debeis creaturas
Abrazado será lá n’outra vida.
Elles são do seu Deos tão protegidos
Que os raios e os trovões lhes obedecem,
E se escondem nas suas espingardas.
Tão forte é o seu Deos, que até parece
Que Tupan o respeita e o adora. »

« Adore-o quem quizer, qu’eu não o adoro! »
Já em furor Aimbire lhe responde:
« Nem elle, nem Tupan, quanto mais homens
Affrontar poderão a tempestade
De flechas, que obumbrar vai o seu campo.
Braços de Aimbire, procellosos braços,
Acaso alguma vez frouxos tremestes
Canguçús e giboyas subjugando?
Alguma vez tremestes quando a morte
Em cada setta aos Lusos enviastes?
Porque não fartarei a minha raiva
Com todo o sangue do inimigo odioso?
Bella Iguassú, por mim nada receies;

Faze como eu, não creias nos inventos
Com que busca essa gente amedrontar-nos. »

« És grande, és forte, Aimbire! — diz-lhe a moça.
Desculpa o meu temor tão mal fundado;
Mas zelo foi de amor. Vai, oh guerreiro,
Em tua valentia assaz confio.
Vai, defende os Tamoyos. Vai, triumpha,
Ou morre exterminando a impia raça
Dos nossos oppressores. Vai: si acaso
Minha imagem seguir-te no combate,
Não esmoreças, não; investe ousado,
Estica o arco e a flecha, e a morte envia
Com toda a força do teu braço ingente.
Vai, Aimbire-guassú, ao lado marcha
Do ancião Pindobuçú, e como filho
Véla sempre sobre elle: inda que forte,
Meu pai é como o tronco solitario,
Que aos ventos resistio das tempestades;
Mas abalado jaz, e pende e murcha:
Sete vezes das mãos os dedos conta

Que tem visto dos bosques os coqueiros
Com seus cachos de côcos enfeitados.
Vai, e volta com elle; e nestes braços
Terás de esposa a paz e a recompensa.