A Confederação dos Tamoyos/Canto IV

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ARGUMENTO.




A aurora.— A partida.— Melancolia de Iguassú.— Seu cantico saudoso repetido pelo echo.— Marcha dos guerreiros pelos bosques virgens.— Durante a noite fazem fogueiras para afugentar as feras, e deitam-se nos ramos das arvores.— Lucta das jararacas com o fogo.— Apparecimento do Payé.— Temor dos Indios.— Discurso do Payé aconselhando-os a desistir da empreza.— Aimbire se lhe oppõe.— Extraordinario sortilegio da Tangapema.— Conjura Aimbire o fatal annuncio, e ameaça o Payé.— Desapparece este sem que se saiba como.

CANTO QUARTO.

Já da noite os negrumes se extinguiam.
O sol que extensas vira Eôas plagas,
Que a terra lhe mostrára no seu gyro,
De assomar no brasilico horizonte
Mesmo ao longe se mostra jubiloso.
Como é sublime o alvorecer da aurora
Nestes formosos climas! Já seu rosto
Rutila entre essas colossaes montanhas,

Que em fórma de pyramides se elevam,
Ou de egypcias columnas, sustentando
Nos verdes capiteis de eternos bosques
O vastissimo tecto de saphira.
Rôxas, purpureas nuvens, d’ouro orladas,
Se curvam, se ensanefam e arcos formam,
Que ao triumphante sol entrada ampliam.
É hora da partida! A sensitiva,
Que da noite o langor emmurchecêra,
Se desperta e desdobra as verdes folhas.
Das palmeiras os grelos como lanças
Igneas lampejam co’o fulgor diurno,
E o aroma matinal o campo exhala.
É hora da partida! Bramam feras
Nos covís do deserto; o hymno de gloria
Ao Creador entôa a Natureza,
E a voz lhe cadenceia o alado côro,
Que alegre pelas comas verdejantes,
Antes de ir procurar seu alimento,
Com suaves gorgeios e trinados
Parece graças dar á Providencia,
E aos homens ensinar a dar-lhe graças.

É hora da partida! Sim, é hora!
Já rouquejam dos chefes as inubias,
E nos valles os sons o echo prolonga,
Dos tardos olhos repellindo o somno.

Mal do somno despertos os guerreiros
Da terra se levantam; estiriçam
Os braços, tres vezes as cabeças
Emplumadas sacodem: assim vê-se
Vasta planície de flexiveis cannas,
As verdes folhas agitando, erguer-se
Quando se enfreia o vento que as curvára.

Ás costas cada qual suspende a aljava
Pejada de farpadas, leves flechas,
E o arco sobraçando, a maça empunha.
Outros sopesam galhos guarnecidos
De candido algodão e sêccas palhas,
Com que do inimigo aos campos mandam
Pelos ares o incendio, o estrago, e a morte.

Por incultas veredas mal trilhadas,
Luctando co’os sipós que os emmaranham,
Os Tamoyos belligeros caminham
Seguidos dos Francezes alliados,
Tão poucos que talvez de cem não passem.

Marcham das tribus na avanguarda os chefes,
E ante todos soberbo Aimbire assoma.
Do exercito na cauda horrendas velhas
Enrugadas, medonhas como espectros,
Nuas, pintadas do verniz vermelho
Do fructo do urucú, e matizadas
De listas transversaes ou angulosas,
Amarellas e negras, vivas cores
Que tiram do assafrão e genipapo,
Sobre bordões se curvam, e carregam
Os potes de cauím, tão grato aos Indios.

Sobre o cume de um monte alcantilado,
Assentada Iguassú contemplativa,

Nas mãos pousando o queixo, a coma esparsa,
Negra, lustrosa, em ondas fluctuantes,
Vê ao longe o exercito sumir-se,
Ora outeiros subindo, ora descendo,
E entre os dos bosques corpulentos troncos
Arbustos os guerreiros lhe parecem.

Ruim melancolia lhe agrilhôa
O coração immerso na tristeza.
De copada aroeira em verde ramo
Modúla o sabiá canções de amores
Com magicos accentos da saudade;
Canções que embebem n’alma o abatimento,
Branda, terna affeição, langor suave,
Que quasi a vida extingue entre delicias;
Canções, direi melhor, que a alma extasiam,
E do corpo mortal arrebatando-a,
Ao vago espaço a sobem, e a sublimam
Ás puras regiões de excelsos gozos.
Que coração ha hí já tão quebrado,
Tão vazio de amor, ou já tão duro,

Cujas cordas não vibrem doces echos,
Quando o canoro sabiá gorgeia
Seu canto matinal por entre as selvas?
Que coração ha hí petrificado,
Que allivio não encontre quando exhala
A dôr sua em tristissimos suspiros,
Em cantos repassados de amargura?

Canta, oh virgem dos bosques olhinegra!
Canta, oh bella Iguassú! canta, acompanha
O terno sabiá, que te convida.
Ah doce é o cantar! remedio é prompto
Que d’alma aos seios sóbe, e a magoa abranda
Do malfadado coração que chora.
Tal da papoula o expandido aroma
Entorpece o aguilhão que o peito punge,
E n’alma ideias gera deleitosas.

« Só, eis-me aqui no cimo da montanha,
Dos meus abandonada; como um tronco
Despido, inutil no alto da collina,
A que os ramos quebrou Tupan co’a flecha.

« Só, eis-me aqui, do velho pai ausente,
Ausente do querido bem amado;
Como viuva rôla solitaria
Em deserto areal seu mal carpindo.

Inda hoje o caro pai vi a meu lado,
Inda hoje o amante eu vi!… Fugiram ambos
Velozes como os cervos da floresta:
Já fui feliz, mas hoje desgraçada! »

E os echos responderam: – desgraçada!

« Desgraçada!… E inda vivo? Antes á guerra
O pai e o bravo amante acompanhasse:
Ouvindo sua voz, seu rosto vendo,
Acabar a seu lado melhor fôra. »

E os echos responderam: – melhor fôra!

« Genios, que as grotas povoais, e os valles;
Genios, que repetís os meus accentos;
Ide, e do amado murmurai no ouvido
Que a amante sua de saudade morre. »

E os echos responderam: – morre… morre!

Morre… morre! soou por longo tempo.
O canto cala um pouco a triste moça,
Murmurando dos echos o estribilho,
Como si algum presagio concebesse.
Os negros olhos de chorar cançados
Co’as mãos enxuga; mas de novo estanques
Lagrimas brotam, que lhe o peito aljofram,
Como goteja em bagas abundantes
De fendida tabóca a pura lympha.

O sabiá de ouvil-a enterneceo-se;
E como si algum genio o inspirasse,

Ouvindo-a modular tristes endechas
Tão cortadas de dôr, calou seu canto:
Ou talvez que julgando-se vencido,
Não podendo imitar tão doce gamma,
Mudo aprendesse a gorgear mais terno.
E quem conhece os intimos mysterios
Da vida, e dos instinctos de taes entes,
P’ra affirmar ou negar o que parece?
Suspendendo ella o canto, elle replica
Com mais grata e escolhida melodia.

Por um momento a solitaria o escuta;
Crava os olhos no céo menos chorosos;
Suspira e geme, e continúa o canto:
E temendo que os echos lhe respondam,
Em meia voz começa compassada.

« Porque tão cedo, oh sol, hoje raiaste?
Porque flammejas como accesas brazas?
Ah! tu me queimas: teu calor modera,
Que na marcha os guerreiros enlanguece.

« Desta terra que é tua, destes bosques
Que o grão Tamandaré depois das aguas 1
Do diluvio plantára p’ra seus filhos,
Hoje os Tamoyos em defesa marcham.

« Tamandaré foi pai dos avós nossos;
Sempre Tamandaré a ti foi caro;
Tu, oh sol, o aqueceste na velhice;
Aquece os filhos seus; mas ah! não tanto.

« Olhos meus, de chorar cançados olhos,
Que tendes mais que ver? Já se sumiram
N’aquelles densos bosques os guerreiros
Entre os ariribás e as sapucaias.

« Nada mais vejo que prazer me cause.
Só estou sobre a terra; vinde, oh feras!
Não ha quem me defenda: vinde, ao menos
Menos dura é a morte que a saudade.

« Sim, morrerei… » E mais dizer não pôde:
Em meio de um gemido a voz faltou-lhe.
Os labios lhe tremiam convulsivos
Como flores batidas pelos ventos.
Cruza os braços no collo, os olhos cerra,
Pende a fronte, e no peito o queixo apoia,
As derretidas perlas entornando:
Tal n’um jardim a candida açucena,
De matutino orvalho o calix cheio,
Si o zephyro a bafeja, a fronte inclina,
Puros crystaes em lagrimas vertendo.
Não sei si dorme, ou si respira ainda;
Mas parece entre pedras bella estatua.
O sol que ao resurgir a vio chorosa,
Nesse mesmo logar chorosa a deixa.

Entretanto os Tamoyos vão vingando
Altas serras pejadas de cabiúnas,
Cupahibas, jacoás e sucupiras;
E descendo já lassos da fadiga,
Chegam co’a tarde n’uma varzea amena,

Plantada pelas mãos da Natureza.
Curta é a varzea, e um bosque além começa.
Negreja o oriente, e rôxas nuvens
De fogo orladas pelo céo vagueam.
Parece o occidente um mar de sangue,
Com vagas de ouro; o sol nada no meio
Como um pharol acceso ou igneo escudo,
Que ao longe seus reverberos reflecte.
Um vapor azulado se deslisa
Sobre o vasto horizonte: ao longe os montes
Quaes saphiras se ostentam sotopostas
A inflammados rubins. Toda a floresta
Representa uma nuvem condensada
Sobre a terra, da côr da violeta,
E aureo effluvio sobre ella se evapora.

Nunca humano pincel pôde a Natura
Ao vivo retratar: ella n’uma hora
Por magico poder taes quadros fórma,
E o homem de pintal-os desespera.
Vinde saudar a virgem Natureza,

Oh artistas da Europa encanecida!
Vinde inspirar-vos neste Paraiso,
Que de humano artificio não carece
Para mostrar-se grandioso e bello.

Cantor sublime dos brasilios bosques,
Que fazes dos pinceis que a Natureza
Com tanto amor te dêo? Caro Araujo, 2
Tu que pintando o que tão bem descreves
Com essa alma de fogo, que se abrasa
N’um volcão de arrojados pensamentos,
Crear podias maravilhas d’arte,
Que a par dos versos teus mais te exaltassem,
Porque não mostras quanto póde o engenho,
Que esta Patria accendeo p’ra gloria sua?

Espessa é a floresta, emmaranhada
De parasitas mil que se entrelaçam,
Pelos troncos se enroscam como serpes,
E abraçando-os lhes sorvem força e vida

Co’a seve de que nutrem-se vorazes;
Como dos reis os tredos lisongeiros
Tanto lhes pesam, tanto mal lhes fazem.

Cabal rio, de longe dimanado,
A floresta divide em duas partes.
Repousa a escuridão sobre esses tectos
De apinhoadas folhas de mil ramos
De mil diversas arvores gigantes,
Cujas flores os ares embalsamam.
Como errantes estrellas relampejam
Phosphoricos insectos, aclarando
O horror da escuridão: ora alinhados
Luminosas serpentes se afiguram;
Ora n’um só logar, como um chuveiro
Seu pallido clarão juntos soltando
Vão fingindo relampago longinquo,
Que das nuvens rebenta e se evapora;
Ora em chusmas pousados nas colmêas,
Que pendem de altos troncos, representam
Illuminadas cúpolas dos templos,

Que em noite festival nos ares brilham
Sobre os escuros tectos das cidades.
Desta negra mansão o horror redobra
O funebre clamor da voz nocturna,
O echo dos ventos que entre as folhas gemem,
O echo do rio que o trovão simula,
E lento se prolonga reboando;
E o echo inda mais funebre e monótono,
Como o som do martello sobre a incude,
Da immovel araponga, que soluça 3
De ancião jequitibá na altiva coma.
Esta é a voz da Natureza em luto,
Voz terrivel que os homens apavora,
E a ideia lhes desperta do infinito.

Temem os Indios de arrojar-se ao rio
Em horas tão sinistras; e a seu modo
Co’um sêcco e duro páo n’outro encravando,
Como quem atarracha um parafuso,
Desenvolvem calor, e a flamma surge
Como por força magica ateada:

Que ao homem, inda que bruto, jamais falta
P’ra o que mais lhe é mister a intelligencia.
Aqui e alli em circulo levantam
Cem fogueiras que as feras afugentem,
E dest’arte seguros e tranquillos
Sobem aos troncos, e entre os ramos buscam
Leito p’ra o somno, asylo contra as feras.

Já tudo dorme emfim, é alta noite.
O fogo despertou as jararacas,
Inimigas do fogo, que dormiam.
Eil-as silvando vem, o fogo investem,
Debatem-se com elle; ora recuam,
Erguem-se inchadas, cahem sobre as fogueiras;
Esta já salta, e a cauda o chão açouta;
Aquella gyra no ar como um corisco;
Ora em torno se arrastam, té que o extinguem.
Só esparsos carvões e cinzas restam.
Quaes, luctando co’as brazas, se queimaram;
Quaes feridas, co’a dôr no chão se enroscam,

Mordendo a terra, e orbes descrevendo;
Quaes vão aos seus covís victoriosas.

Começa a noite a declinar. Um echo
Na espessura resôa, rouco e surdo,
Como echo do buzio. O horror se espalha,
De sobresalto o somno se interrompe;
Despertam-se os guerreiros, receiosos
Que os malignos genios Macacheras,
E os ruins Juruparís os acommettam. 4
Uns tomados de medo cahem dos troncos,
E nem ousam da terra erguer as frontes;
Outros espavoridos, como estatuas
Estão immoveis, mudos escutando.
De novo perto estruge o som medonho,
E se repete pela vez terceira.
No mesmo instante um funebre gemido
Vai entre os negros troncos sibilando,
Como o guincho do mocho entre ruinas;
E dous lumes a par, de fumo envoltos,
Que os olhos lembram de infernaes duendes

Pela mente febril phantasiados,
Ora aqui, ora alli erram na selva,
Até que da cohorte em frente estacam.
A luz surge das orbitas de um craneo
Suspenso n’uma flecha: é a lanterna
Horrenda dos Payés, que nestas plagas
De sortilegio usando o medo incutem;
Que onde falta a verdade o embuste avulta.

« É Payé! » N’uma voz todos bradaram.
« É Payé! » Cada bocca pronuncia.
Batendo estão os corações de medo,
E os olhos todos no Payé pregados.

Eil-o, alto e mirrado, e bem parece
De magico poder mumia animada,
Que da terra surgira, ou do profundo!
Disseras qu’essa pelle crespa e sêcca,
Como a cortiça de já velho tronco,
Sobre ossos descarnados se amoldára.

« Filhos destes sertões, brada o agoureiro,
Eis o vosso Payé, que vos procura!
Velho Coaquira, destemido Aimbire,
Como dos meus conselhos não cuidosos,
Tão afoutos p’ra guerra duvidosa
Ides, sem minha voz ouvir primeiro?
E quereis que Tupan por vós combata,
Quando do seu Payé, que em vós só pensa,
Em continuo jejum na gruta escura,
Não consultais a magica sciencia?
Como filhos vos amo; e si estes olhos,
Sêccos como o meu corpo, inda tivessem
Alguma occulta lagrima, ver-me-hias
Na minha dôr vertel-a neste instante.
Oh filhos meus! que males vos aguardam!
Que males, ai de mim!… e inda heide eu vel-os!
Feliz eu si primeiro em minha gruta
Para sempre meus olhos se fechassem.

« Estes annosos troncos, tão antigos

Como Tamandaré; estas florestas
A cuja sombra nossos pais dormiram
O socegado somno do homem livre,
Vão ser em breve a cinzas reduzidas
Por essas mãos iniquas, sempre armadas
De mortal fogo contra vós, incautos,
Contra vós, que co’amor os recebestes!
Fugi, Tamoyos meus; fugi, deixai-lhes
De Nitheroy as margens deleitosas,
Que elles invejam tanto; e onde pretendem
Á custa vossa apaseentar seu ocio,
E erguer co’as vossas mãos suas cidades.
Deixai-lhes estas varzeas tão regadas
De aguas tão doces, e estes verdes mattos
Onde colheis o cambucá gostoso,
O odoroso ananaz, e a grumixama.
Tudo deixai-lhes, sim; fugi, mas livres,
Que a par da liberdade tudo é nada,
E aqui sereis escravos. Desta terra,
Que já vossa não é, pois que seus olhos
Passaram por aqui, tirai sómente
De vossos pais os ossos, que os não pisem

Os pés de tão ferozes inimigos.
Ide, e tirai da terra as igaçabas
Que esses ossos encerram; e com ellas
Vamos todos, além dos grandes serros,
Procurar outra terra mais longinqua,
Outros sertões mais invios, outros rios
Mais caudalosos, e outro céo mais puro. »

« E onde? brada Aimbire acceso em ira,
Como si o inferno lhe estourasse n’alma:
E onde, estulto velho, onde acharemos
O céo de Nitheroy? As ferteis plagas
Do nosso Parahyba? E as doces aguas
Do saudoso Carioca, que suavisam
Dos cantores a voz melodiosa?
Tudo deixar?… Fugir?… Mas tu deliras!
Fugir?… Que Curupira malfazejo
Inspirou-te tão baixos pensamentos? 5
Fugir! sem combater?… Quem?… Nós, Tamoyos?!
Ferve-te acaso o cajuhy nas veias,

Ou perturba-te o fumo que se exhala
Do queimado tabaco nesse craneo,
Que fincado ahi tens sobre essa flecha?
E onde iremos nós, que nos não sigam
Esses que cuidam não caber na terra,
E toda a terra querem e o mar todo?
Que rios caudalosos, que altos serros
De amparo servirão ás nossas tabas,
Si elles canôas tem e pés ligeiros?
Em que sertões iremos acoutar-nos,
Como as tapiras que de tudo fogem? 6
E onde livres, e em paz esconderemos
Esses ossos de nossos pais guerreiros,
Que temendo estão já que os revolvamos?
Ossos de nossos pais! estai tranquillos:
Não temais que os Tamoyos vos aviltem,
E da terra em que estais vos tirem hoje,
Para entregal-a ao barbaro estrangeiro.
Não fugiremos, não. Dizei, Tamoyos,
Dizei: quereis fugir? »
    « Queremos guerra;
Guerra, e só guerra. » Unisonos bradaram.

« Ouves? ouves, Payé? (Aimbire exclama
De prazer exultando). Ouves o grito
Que ainda forte sôa?… Já conheces
Que gente vai aqui? Que mais tu queres?
Que nos dizes agora? Ah! já te calas! »

Após breve silencio, o agoureiro
Com voz pesada diz: « Pois bem, Tamoyos,
Vosso valor o animo me exalta.
Vamos ver si Tupan, que vos escuta,
Quererá proteger vossas fadigas. »

Assim dizendo o Aruspice dos bosques
Deixa em pé a lanterna pavorosa;
Toma duas forquilhas de páo sêcco,
Como tesouras, e com força as finca
No duro chão, defronte uma da outra
Tres palmos de distancia: após sobre ellas

Deita e amarra com torcida embira
Uma clava de pennas enfeitada,
A que chamam os Indios Tangapema.

Tendo assim preparado o sortilegio,
Chama p’ra junto a si os tocadores
De cangoeira, instrumento de ossos feito,
Que os cabellos erriça co’os sibilos.
– Tocai, dançai comigo. – Eil-o que dança
Em torno á Tangapema; e já dançando,
Seguem-lhe os passos muitos dos Tamoyos,
Pelo infernal concerto arrebatados.
Mais que todos as velhas se revolvem,
E em côro a feias bruxas se assemelham.
Cada vez mais a mais se anima a orchestra,
E cada vez a dança mais se anima;
Como um confuso rodopio rapido
De violento uracão que gyra e zune.
Mais celeros não são os Dervis d’Asia
No rodante bailar religioso,
Com que o grande Allah honrar pretendem.

Amainando já vai a estranha dança;
Já vão minguando os circulos valsantes;
Tontos e frouxos já repousam muitos,
Até que em fim cançados todos param,
E em torno ao feiticeiro se acocoram,
Como egypcias estatuas de granito.
Só elle inda volteia, possuido
De algum demonio, que lhe agita os membros.
Que diabolicos gestos, que tripudios,
Que esgares faz, os olhos não tirando
Da magica armadilha! Já lhe banha
Todo o corpo o suor em grossas bagas.
Com rouca voz e sons interrompidos,
Que parece o bulhão d’agua que ferve,
Não sei que tetro canto sybillino,
Que horrenda evocação stá murmurando.
Nunca em Delphos a Pythia assim tão cheia,
Do deos que a enfurecia, e tão convulsa
Sobre a sagrada tripode arquejando
Soltou com voz confusa o seu orac’lo.
Só se lhe ouve dizer: – Mando eu que posso;
Quero e mando: obedece, Macachera ! –

Pela terceira vez isto dizendo,
Como certo de ser obedecido,
Incha as bochechas, firma os olhos rubros.
E tres vezes assopra a Tangapema.
Oh infernal prodigio! Eis de repente
Sobre as forquilhas estremece a clava,
Como sobre o altar do sacrificio
A victima estremece quando o ferro
Lhe abre o ventre e as entranhas lhe revolve,
P’ra dar algum presagio ao Adevinho.
Estalam, arrebentam-se as embiras,
Sem que visivel mão a clava toque.
Eil-a já solta das prisões que a atavam,
E em torno a si gyrando, ao céo se eleva
N’uma linha espiral que a prumo sóbe,
Deixando boqui-aberta o vulgo ignaro.
Só Aimbire de colera roxeia,
E espera conjurar o vaticínio
Si contrario elle fór ao seu intento.

Sóbe a clava zunindo como a pedra
Pela funda com força arremessada:

Sóbe, e tão alto vai que no ar se some.
Mas volta… eil-a que vem… traz sangue! É certo!
Onde foi ella? Donde vem? Quem sabe?
Vem toda ensanguentada!… Mas parece,
Pelo rumo que segue, cahir deve
Distante das forquilhas… Máo presagio!
Aimbire, qu’isso vê, inda de longe,
E teme o effeito do fatal annuncio,
Dispara incontinente alada flecha,
Que a vai ferir nos ares, e trazel-a
Para onde elle quiz. A flecha e a clava,
Uma encravada n’outra, ambas já descem,
E entre as forquilhas cahem. Aimbire exulta!
Mas o velho Payé horrorisado:
« Impio (exclama)! Tu vês? Vês tu? Entendes
O que isto quer dizer? »
    – « Sim; muito sangue
Temos de derramar. Sim; a victoria
É certa para nós… Vai-te, agoureiro,
Se a vida te não pesa, e aqui não queres
Ter a sorte da tua Tangapema.
Vai-te, que é tempo de marchar p’ra a guerra. »

Disse Aimbire; e um susurro se levanta
Entre os guerreiros, p’ra marchar já promptos.
Os Francezes pasmados do que viram,
Como explicar não sabem tal prodigio.
Que mysterios são estes da Natura, 7
Que os olhos vêem e a sciencia repudía?
Seria uma illusão? ou caso estranho
De occulta força, que a sciencia ignora?

Sumio-se o feiticeiro: não se sabe
Si ao rio se arrojou, ou si escondeo-se
No bojo de algum tronco carcomido,
Ninhos de serpes que o Payé não teme.
Crêm alguns que elle aos ares se elevára
Entre os vapores do queimado fumo;
Outros, que a terra por seu pé batida,
Abrindo-se convulsa, o engulira.

O crer é d’alma natural instincto,
Que da sciencia ás duvidas resiste.

E no que não crerão homens tão brutos,
Se muitos dos que tem a luz de Christo
Crêm, e ensinam a crer em taes prodigios?
E que homem tem da omnisciencia a chave,
Que os arcanos penetre do invisivel,
E a verdade de Deos, luz immutavel,
Mostre á proscripta raça dos humanos,
Condemnada a não ver a realidade?