A Confederação dos Tamoyos/Canto V

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ARGUMENTO.




Chega Jagoanharo a S. Vicente em procura de Tibiriçá.— Alguns Indios lhe mostram da porta de uma igreja o Cacique, que dentro estava orando.— Attrahido por aquelle espectaculo não visto, e pelos canticos religiosos, entra Jagoanharo na igreja, e insensivelmente se ajoelha ao lado do tio.— Findas as preces, erguendo-se ambos, reconhece o Cacique o sobrinho, e dá graças a Deos, cuidando que elle o procura para baptisar-se.— Leva-o á casa, e pelo caminho lhe vai mostrando as cousas mais notaveis da recente villa.— Convida-o a jantar á maneira de um senhor Portuguez, sendo servido pelos de sua nação, com o que se escandalisa o sobrinho.— Dá-lhe este a embaixada, e questionam por longo tempo.— Narra Tibiriçá as tradições dos seus antepassados, e conclue em favor do seu novo estado.— Não se convence o sobrinho.— Trata o tio de seduzil-o com presentes e promessas.— Jagoanharo tudo recusa; e cançados ambos se entregam ao somno.

CANTO QUINTO.

A canôa em que fôra Jagoanharo
Por mandado de Aimbire a São-Vicente,
Já das aguas vencendo a correnteza,
Tinha chegado á ilha desejada,
Onde o mancebo impavido esperava
Achar Tibiriçá, dar-lhe a mensagem.

O Indio embaixador chegando á praia
De Tacaré, que jaz vizinha á villa,
De que foi fundador Martim Affonso,
Soube de uns Guayanás, que conhecêra,
Onde achar poderia o seu Cacique.
Um delles o guiou da igreja á porta,
E de fóra o mostrou, que de joelhos
Com grande devoção orando estava.

Cantavam os neophytos em côro,
Separados os homens das mulheres,
E o venerando Anchieta os dirigia.

Jagoanharo esperava; mas suspenso,
Ouvindo os echos dos sagrados hymnos,
Que o sanctuario enchiam de harmonia,
P’ra dentro olhou: e curioso e attento,
Sem sentir pouco a pouco foi entrando

Pelo encanto da musica attrahido,
Até que a par do tio ajoelhou-se.

Os altares de flores enfeitados,
As tochas e as alampadas accesas,
O odor do incenso, os cantos que soavam
Ao som de nunca ouvidos instrumentos;
Todo aquelle apparato jamais visto
De tal maneira fascinado o tinha,
Qu’elle olhando p’ra o tio foi erguendo
As mãos postas p’ra o céo, e parecia
Mais que todos contrito penitente.
Tibiriçá, que attento o altar fitava,
Só quando as sacras preces terminaram
Erguendo-se encarou com Jagoanharo,
E attonito ficou com tal sorpresa.

« Como! disse elle, aqui!… Tu a meu lado!
Na casa do Senhor!… Feliz si buscas
O baptismo e a fé!… E quão ditoso

Serei eu si me escolhes por padrinho!
E teu pai?… Meu irmão, onde está elle?
Desejará tambem vir humilhar-se
Aos pés do altar do Redemptor do mundo?
Falla, sobrinho, dize… Mas primeiro
Quero, por ver-te aqui tão bem disposto
A receber a luz de Jesus Christo,
Dar graças a meu Deos. » E assim dizendo,
De novo se ajoelha, os braços abre,
E porque Jagoanharo o comprehenda,
Recíta em lingua Túpica um verseto,
Que o zeloso Anchieta compozera:
« Gloria ao unico Deos, ao Pai Eterno!
A ti, Senhor, que em tua alta bondade
Brilhar fizeste a luz entre os gentios;
E por teus sacerdotes nos mandaste
A verdade de Christo, e os bens da graça. »
E assim dizendo beija a cruz de Christo,
Que do collo lhe pende em rubra fita,
Premio do seu valor no fero ataque
Do forte Coligny contra os Francezes.
Depois: « Vamos agora, disse, vamos

Em casa repousar: lá quero ouvir-te,
E noticias saber da nossa gente.

Em caminho lhe foi mostrando as cousas
Mais dignas de attenção na nova villa:
« Aqui moram, dizia, os santos padres,
A quem devemos tanto; elles ensinam
O caminho de Deos aos nossos filhos,
E só em fazer bem vivem pensando;
E tão humanos são, e amigos nossos,
Que só por isso os seus já os odeiam.
Não são como os Payés, que vos enganam
Com embustes e vans feitiçarias.

« Eis a casa do bom Martim Affonso,
Meu padrinho, e senhor do que estás vendo.
Elle aqui não está, que o Rei mandou-o
Governar outros povos mui distantes,
Lá onde além dos mares nasce o dia.
Todos estes sertões que atravessaste

Desde o Paranaguá, terras e rios,
Até o Macahé, tudo isto é delle,
Que o nosso Rei lhe dêo, que é seu amigo. »

– « E quem dêo, o mancebo lhe pergunta,
E quem dêo a esse Rei a terra nossa,
Para tiral-a a nós, que aqui nascemos,
E dal-a a seu prazer aos seus amigos? »

« O Rei, lhe volta o tio, não precisa
Que ninguem lhe dê nada; tudo é delle.
O Rei tira, o Rei dá, o Rei é dono
Das terras e do mar: é senhor nosso. »

– « Então o Rei, replica-lhe o sobrinho,
É mais do que Tupan? Desejo vel-o! »

« Si é mais do que Tupan! brada o Cacique:
O que é Tupan? Deos é que póde tudo.
E depois delle o Rei; o resto é nada…
Mas não, tambem os padres podem muito. »

– « Dize, e o Rei come e bebe, e tambem morre? »
« Sim, come, bebe, e morre. »
    – Então é homem!
Promptamente o selvagem lhe retorque.

« Homem, sim; mas de Deos na terra imagem,
E curvar-nos devemos a seu mando.

« Vês tu aquella casa? Alli habita
O Portuguez Ramalho, que é meu genro:
Has de vel-o, e a mulher, e os meus netinhos. »
Isto mostrando o chefe convertido,
Só não mostrou o carcere da villa,

Onde, como animaes, os pobres Indios
Á fome, á sêde, e á força se amansavam.

Nisto passou, no meio de uma escolta,
Um grupo de selvagens, que amarrados
Vinham a dous em dous, e as criancinhas
Das mãis nos hombros: pobres creaturas,
Á traição dos seus bosques arrancadas,
Um duro captiveiro as esperava.
Bem os vio Jagoanharo, e nada disse,
Mas os labios mordeo, voltando o rosto.

Já em casa chegados, o Cacique,
Crendo o sobrinho não tão bronco e fero,
Quiz grandeza ostentar ante seus olhos,
E co’o aspecto do luxo seduzil-o.
Convida-o a comer em mesa ornada
Com todo o apparato e louçania
De um senhor Portuguez d’aquelles tempos.
Por alguns Guayanás servidos eram.

– « Quem são estes, pergunta o Indio inculto,
Que em quanto nós comemos assentados,
Tão humildes estão em pé servindo?
São acaso inimigos prisioneiros? »
« São da minha nação, volta-lhe o tio,
Soldados Guayanás, meus camaradas. »
Ouvindo tal com pasmo e quasi iroso
Já o mancebo ergue-se; mas prudente
Disfarçou seu despeito, e com frieza
Disse: « Então uns aqui servem aos outros,
Sendo todos amigos e guerreiros?
E como tu tambem os Portuguezes
Pelos nossos irmãos serão servidos? »
Razões mui sociaes dêo-lhe o Cacique
D’aquella differença e jerarchia,
Necessaria ao governo e á boa ordem.
Mas não quiz o selvagem convencer-se.
Findo o brodio, o soberbo mensageiro
P’ra um lado leva o tio, e assim lhe falla:

« Devo agora dizer-te qual a causa

Que me fez procurar-te entre inimigos,
Expondo a minha vida p’ra salvar-te.
Teu irmão Araray, e o grande Aimbire,
Chefe geral de todos os Tamoyos,
Pindobuçú, Coaquira, e mais guerreiros,
Por mim mandam dizer-te que elles promptos,
Armados e já perto, estão dispostos,
Com tantos arcos que parece um matto,
A vingar as affrontas, que incessantes
Estes vís Emboabas lhes tem feito.
Mas meu pai quiz primeiro qu’eu viesse
Por tua mãi pedir teu forte apoio.
Muito lhe dóe o ver-te tão contrario
Á tua terra e aos teus. Esperam todos
Que um Guayaná, Cacique, e tão valente,
Não arme o braço seu contra os amigos,
Contra seu proprio irmão, contra o sobrinho,
Em defesa dos máos que nos perseguem;
E tão máos, tão crueis, que até odeiam
Esses bons padres, como tu disseste,
Que só em fazer bem vivem pensando!
Vê que taes elles são!… Co’a nossa gente

Marcham alguns Francezes, que os conhecem,
Que o mesmo Deos adoram, e nos dizem
Serem na sua terra os Portuguezes
Taes como os Aimorés nos nossos bosques.
Dize tu mesmo, e crês que na crueza
Os Aimorés com elles rivalisem,
Ou que as onças ferozes os igualem?
Temos razão, ou não, de aborrecel-os?
Que Guayaná valente, ou que Tamoyo
Poderá ser amigo de tal gente?
Dize, Tibiriçá, o que decides?
Que resposta me dás com qu’eu exulte,
E do teu Araray a dôr dissipe? »

O chefe Guayaná pensando um pouco,
Com voz pesada diz: « Quando na igreja
A meu lado te vi, cuidei que vinhas
Com pensamentos d’alma arrependida
Procurar o caminho da verdade.
Mas tu me vens propor traição e guerra!

Nenhum outro ousaria assim fallar-me!
E si eu me não lembrasse de que és filho
De meu unico irmão, pago terias
Tua arrogancia e destemido arrojo.
Vai, dize a meu irmão, e a esse Aimbire,
Esse ingrato a quem eu poupei a vida,
E que ousado anda os Indios incitando,
Qu’eu aqui os espero; elles que venham,
Com quantos braços reunir poderem,
Que em defesa da igreja e dos bons padres
Contente morrerei, porém luctando.
Dize-lhes que um christão, qual eu sou hoje.
Que me honro de chamar Martim Affonso,
Tem por gloria morrer por Jesus Christo,
E que só em christãos irmãos enxerga.
Mas dize-lhes tambem que eu condoido
Dessa vida sem Deos, sem lei, que vivem
Como animaes no matto, os aconselho
Que venham receber a luz da igreja,
E a palavra de Deos, que aqui se ensina.
Dize-lhes mais, que a guerra que hoje intentam
Contra gente tão forte e venturosa,

De seu Deos tão amada e protegida,
Só em damno será, e p’ra exterminio
Dos que com ella emparelhar não podem
Nem na força do braço, nem na industria,
Nem no saber, que vale mais que tudo.
Que se lembrem que já esses Francezes,
Que a elles se ligaram p’ra vingar-se,
Foram por Mem de Sá lançados fóra
Da ilhota, onde tão fortes se julgavam,
Sem lhes valer na lucta atroz e horrivel
O seu Villegagnon, que abandonou-os.
Em fim, dize-lhes qu’eu lhes peço e rogo
Que se ajuntem a mim, e que me sigam;
Que ouçam a voz do céo, que os padres pregam,
Si querem que seus filhos inda sejam
Senhores desta terra. De outro modo
Serão todos p’ra sempre exterminados,
Ou p’ra os sertões fugindo, irão ás feras
Disputar os covís, viver com ellas,
Até que de lá mesmo expulsos sejam.
Si os canguçús podeis vencer co’as flechas,
Estes vos vencerão co’as espingardas.

Quem mais industria tem é o mais forte.
Como amigo te fallo, e te respondo. »

Ouvindo este discurso, surprendido
O mensageiro estava, e suspirando:
« Assim pois, exclamou, não nos bastava
Este odioso inimigo, além nascido,
Não sei onde, em longinqua, ignota plaga.
Senão que tu; tomando o seu partido,
Queres co’os Guayanás, que te obedecem,
Combater contra o irmão e contra amigos?!
Isto é pois o que os padres te ensinaram?
E esse Deos, por quem já Tupan deixaste,
Quer que em favor do estranho o irmão se mate?
E esta é a nova lei em que tu vives,
Pela qual condoido nos lamentas
Que vivamos sem Deos, sem lei nos bosques?
Não teremos nós leis porque vivemos
Em perfeita igualdade, e outras seguimos
Diversas dessas leis que hoje tu segues?

Achas então que é justo, que é bem feito
Que deixemos a terra em que nascemos,
Ou que sejamos nella escravos desses,
Que da terra e de nós se julgam donos? »

« Escuta, Jagoanharo! assim prosegue
O chefe convertido, meio culto,
De engenho perspicaz e previdente.
Quero dizer-te mais. Meu pai contava
Que esta terra, que nossa hoje chamamos,
Nem sempre nossa foi. Antes de tudo,
Quando Tamandaré inda vivia,
Nua e deserta muito tempo esteve
Pelo grande diluvio que inundou-a,
E a cobrio té aos montes, afogando
Plantas, e aves, e animaes, e homens,
E só esse Payé deixando vivo
Para de novo povoar a terra.
E tão verdade é isto que até mesmo
Dizem os padres, que de tudo sabem,
Que era Noé o nome desse velho,

E não Tamandaré como dizemos.
Depois que a terra se arreou de novo
De verdes bosques, animaes e homens,
Os que primeiro para aqui vieram,
Filhos do unico pai dos homens todos,
Foram, como parece, esses Tapuyas,
Que co’as feras luctando as imitaram,
Posto que os Taboyaras se acreditem
Os primeiros senhores desta terra,
E orgulhosos por isso assim se chamem.
Não sei donde lhes vem essa vaidade,
Si elles tem dos Tupís a língua e os usos!
Mais brancos do que são eram taes homens,
Qual o Aimoré, que é dessa raça, o mostra:
O sol ardente lhes crestou a pelle,
Como tambem a nós, que após viemos.
Depois chegaram os Tupís valentes,
Que mais do que elles a Tupan respeitam,
E por isso mais brandos e entendidos.
Estes ouviram de Sumé as vozes 1
Junto do Itajurú, onde entalhadas
Estão as impressões do seu cajado,

Quando o poder de Deos apregoando,
Como agora estes padres o apregoam,
Lhes dizia: – Si a pedra com ser dura
Se abranda, e cede á voz do Omnipotente,
Como á verdade resistir mais duros
Os corações dos homens, de Deos filhos? –
Desse velho Payé inda hoje existem
Muitos signaes; em Itapoã seus passos,
E em Marapé, no mar, o seu caminho,
Quando ao furor fugio de homens ingratos.
Foi Sumé, ou Thomé como é mais certo,
Que era branco e trazia longas barbas,
Quem mostrou aos Tupís como extrahindo
Da mandioca o succo venenoso,
Se fabrica a farinha e a tapioca.
Desses Tupís nós todos descendemos,
Tupinambás, Tamoyos, Taboyaras,
Guayanás, Carijós, e outros muitos
Que por toda esta terra se estenderam
Sempre em frente do mar, em guerra aberta
Co’os Tapuyas que o centro procuraram,
E que jamais comnosco paz quizeram.

« Agora chegam estes Portuguezes,
Que melhor do que nós a Deos conhecem,
Que vivem como irmãos em grandes villas,
Que fazem tantas cousas espantosas,
E só querem que nós os imitemos,
Respeitando a seu Rei, a lei, e aos padres;
E vós vos declarais, como os Tapuyas
Já comnosco fizeram, seus contrarios,
Por cuidar que esta terra só é vossa!
Em vez de vir com elles instruir-vos,
E aprender suas artes proveitosas!
Porque só vossa deve ser a terra?
Toda a terra é de Deos. Terra não falta
P’ra todos nós; só falta quem trabalhe.
Mais que venham depois acharão terra.
Vós fabricais a setta, a igaçaba,
A farinha, o cauím, a rêde, a inubia,
E tantas outras cousas que vos servem;
Mas porque não haveis com paciencia
Aprender a fazer cousas melhores?
Vem ver a minha horta… Olha, sobrinho,
Quantas plantas em tão pequeno espaço!

Vê alli o cajú, vê a banana,
A jaca, o cambucá, a canna doce,
E quantas fructas ha por esse matto,
Que sem fadiga aqui colher-se podem.
Esta planta que vês chama-se vinha,
P’ra aqui os Portuguezes a trouxeram
Com outras muitas, e animaes não vistos.
Desta come-se o fructo, e faz-se o vinho
De roxa côr, que á mesa tu gostaste.
Vê quantas flores, que no campo murcham,
Como lindas aqui a vista alegram!
Os homens são assim, querem cultura.
Vê n’aquelle cercado quantas aves,
Que o trabalho me poupam de ir caçal-as!
Vê n’este tanque quantos peixes vivos,
Que brincando pescal-os qualquer póde!
Sem de casa sahir, tudo aqui tenho;
E quer chova, quer vente, e a qualquer hora,
Acho o meu alimento sem canceira.

Vê agora esta casa como é feita;

Como melhor me cobrem estas vestes,
De tecido tão fino e côr tão linda,
Que excedem na belleza ás vossas plumas.
Vê agora esta espada como corta!
E esta espingarda, que nas mãos ’stá firme,
E vale mais que centos dessas flechas.
Olha, vê tudo bem, observa e nota.
Dize tu mesmo agora, Jagoanharo,
Não achas que é melhor viver tranquillo,
Gozando destes bens, tendo tudo isto,
Do que errante viver por entre os bosques,
Sempre incerto, arriscado, e exposto ás feras?
Não achas que é melhor que aos Portuguezes
Nós todos nos unamos? Que casemos
Nossos filhos co’os delles? Que façamos
Uma nova nação, grande e temida
Dos Tapuyas, que comem carne humana,
E de quantos a nós moverem guerra?
Si amas a independencia e a liberdade,
Tu não as perderás como eu vivendo
Sujeito a Deos, ao Rei, ás leis que impedem
Que a seu prazer o forte roube ao fraco.

Mais livre e independente me acho agora,
Que posso chamar meu quanto possuo.

« E Deos, o grande Deos, que nos dá tudo,
Que seu Filho mandou para remir-nos,
Para morrer por nós, para ensinar-nos
O caminho do bem e da verdade!
Não achas que devemos dar-lhe graças
Dia e noite, entoando sacros hymnos
Reunidos na sua santa igreja?
Que podes aqui ver que te desgoste,
E te faça odiar a nossa vida?
Dize, falla, responde: então que pensas? »

Um sorriso de dôr e de ironia,
Proprio d’alma orgulhosa e pouco instructa,
Roçou os labios do sagaz mancebo,
Que tudo via com desdem selvagem,
Mal pesando as razões, que ouvira apenas.

« Queres pois qu’eu responda? Bem, escuta,
Mas deixa-me dizer tudo o que penso.
Tudo isto é muito bom p’ra quem deseja
Converter seus irmãos em seus escravos,
Gozar á custa do suor alheio,
E em paz como senhor viver mandando.
Que importa a meus irmãos que eu tenha muito,
Si elles devem soffrer p’ra que eu só goze?
Nem eu quero gozar á custa delles.
O direito do chefe é ser na guerra
O primeiro a marchar e expôr-se á morte,
E mostrar-se valente mais que todos,
Para que os mais o imitem e lhe obedeçam;
Que fóra do combate iguaes são todos.
Eu porém vejo aqui os teus guerreiros
Trabalhar para ti; não enfeitados
Como tu, mas com sujos, rotos pannos,
Banhados de suor, que mal os cobrem.
Quando comes sentado, em pé ’stão elles,
E depois vão roer os teus sobejos!
E entre nós até mesmo o estrangeiro
E o inimigo comnosco juntos comem!

São elles os qu’eu vi lavrar teu campo,
Limpar o teu quintal, dar milho ás aves,
Que tens p’ra teu regalo no cercado!
Elles trabalham pois, e só tu gozas!
Em que consiste aqui a liberdade
E a independencia do homem, que gabaste?
Onde a igualdade está? Porque motivo
Tanto tu has de ter, e elles nada?
Porque? bem eu o sei! E tu pretendes
Que te imite meu pai? ou que venhamos
Aqui servir a ti e aos Portuguezes?
Cuidas tu que os Tamoyos corajosos,
E os poucos Guayanás que nos ficaram,
A tão pesado jugo as frontes dobrem!
Não, não: antes a morte, dirão todos.
E eu com elles tambem prefiro a morte!

« Nada me agrada aqui, excepto a igreja,
E o Filho desse Deos que elles mataram,
De quem ouvi contar tão grandes cousas

Que pelos homens fez, só ensinando
Que todos como irmãos sempre se amassem.
Mas porque esses homens que o adoram
Nada do que elle fez comnosco fazem?
Querem que nós humildes o imitemos
Para melhor, crueis, escravisar-nos,
Roubar nossas irmãs, nossas mulheres,
E viverem aqui como senhores,
Como os unicos donos desta terra!
E que mal lhes fizemos? Por ventura
Os recebemos mal como os Tapuyas,
Que aos Tupís guerra eterna declararam?
Que digam elles de que modo affavel
Sua chegada aqui foi festejada?
Si alguma cousa os nossos lhes negaram?
Si ante essa cruz, que em nossa praia ergueram,
De joelhos prostrados, imitando-os,
Não estiveram com respeito attentos
A quanto o padre fez, e a quanto disse?
E negar poderão estas verdades?
Si lhes fizemos guerra, é que elles guerra
Primeiro com perfidias nos fizeram.

Não se queixem de nós, mas de si mesmos,
Que em seus escravos converter-nos querem. »

Não faltaram ao chefe intelligente
Razões p’ra rebater as do sobrinho;
E ambos largo tempo pleiteando
Convencer um ao outro não poderam.
Dest’arte os sabios em questões sublimes
Após longo debate e controversia
Firmes em seus conceitos permanecem:
Que como a luz tão varia se reflecte
Segundo os corpos, côres mil lhes dando,
Tal a verdade, que uma só ser deve,
Varia se mostra nos juízos varios,
A que paixões diversas senhoream.

Vendo o chefe sagaz como baldadas
Eram suas razões, busca outro meio,
Que poucas vezes resistencia encontra
Nos fracos corações da humana gente:

Meio tão efficaz, vergonha do homem!
Que chega a impôr silencio ao santo, ao justo,
E deslumbra a razão, calca a verdade.

Começou por mostrar uns avellorios,
Com que adornou o collo do sobrinho;
Dêo-lhe uma faca e um lenço de Alcobaça;
Prometteo-lhe uma espada, armas de fogo,
E honras de capitão da sua gente,
Si com ella prestar viesse apoio
Á nascente colonia Vicentina.
Exaltou-lhe o valor, encheo-lhe o peito
De vaidosas ideias, de esperanças
De um futuro brilhante e glorioso.
Tudo quanto accender póde a cobiça,
Quanto a vaidade e o orgulho excitar póde,
Desenvolveo com manha de homem culto,
Que bem da seducção conhece a força
Para vencer o coração rebelde.
Não duvidando já do seu triumpho,
Com mostras de prazer o abraçava:

Já conduzil-o á igreja pretendia
Naquelle mesmo instante, e apresental-o
Ao venerando Anchieta, que lá ’stava
Os neophytos sempre doutrinando.

Do filho de Araray a alma incorrupta
Tinha toda a altivez e a magestade
Da virgem Natureza que a formára!
Era um bello diamante em rude crosta!
Tudo elle rejeitou! Não pôde a offerta
Mais do que a razão! Quão poucas vezes
Isto acontece assim! « Nada ha que possa,
Disse, fazer que eu traia a minha gente.
Ainda que o teu Rei me desse o dobro
De quanto tu agora me promettes,
Não deixaria os meus para servil-o,
Sacrificando a alheia liberdade. »

Podemos lamentar a ignavia do homem,
A rudeza do espirito selvagem;

Mas o valor que ás seducções resiste,
Que faz que a alma á cobiça se não dobre,
É virtude tão rara, santa e egregia,
Que o devido louvor ninguem lhe nega.
Si é sublime no heroe, mais é naquelle
Que da gloria o pregão nem mesmo espera.

O Indio christão por fim desenganado,
Vendo que a noite p’ra seu meio andava,
Convidou o seu hospede ao repouso
N’uma rêde suspensa. Elle entretanto
A Deos se encommendando fervoroso,
Com aquella fé viva de um converso,
Foi tambem repousar. Doce esperança,
Inseparavel sombra do desejo,
Em sua alma vagava de que a noite,
Tão placida e suave conselheira,
Amigo pensamento bafejasse
No coração rebelde do sobrinho.