A Confederação dos Tamoyos/Canto VI

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ARGUMENTO.




Excitado Jagoanharo pela discussão que tivera com Tibiriçá, e que espontanea lhe vem á memoria, mal póde conciliar o somno.— Dorme em fim, e neste estado exalta-se sua alma, e sonha.— Apresenta-se-lhe S. Sebastião, cuja imagem na igreja lhe attrahira a attenção, e o transporta ao cimo do Corcovado.— Magnificencia do golfo do Rio de Janeiro, a que nada se compara.— Mostra o Santo ao Indio fundada, no futuro, a grande cidade do Janeiro: seu porto arado de innumeras náos.— A chegada da Familia Real.— A elevação do Brasil á categoria de Reino-Unido.— O regresso de El-Rei D. João VI.— A proclamação da Independencia e fundação do Imperio.— A abdicação de D. Pedro I.— A menoridade.— O amor do povo ao Senhor D. Pedro II.— Assume elle o poder.— O Imperio crescerá com elle.— A Providencia deve conceder a victoria aos Portuguezes sobre os selvagens em favor da propagação da religião de Jesus Christo.— Quer o Indio abraçar a cruz: esta lhe apparece.— Acorda Jagoanharo.— O tio o conduz á igreja.— Encontra-se na praça com Iguassú, que vem presa.— Inutilmente procura libertal-a.— Desesperado parte praguejando.

CANTO SEXTO.

Como da pyra extincta a labareda
Inda o rescaldo crepitante fica,
Assim do ardente moço a mente accesa
Na desusada lucta que a excitára,
Inda alerta e escaldada se revolve.
Em vão na rêde, que suspensa oscilla
De um lado e d’outro, se revira o corpo,
Como após da tormenta o mar banzeiro;

Alma e corpo repouso achar não podem.
Debalde os olhos cerra; a igreja, as casas,
A villa, tudo ante elle se apresenta.
Das preces a harmonia inda murmura
Como um longínquo som em seus ouvidos.
Os discursos do tio mutilados
Máo grado seu assaltam-lhe a memoria.
No espontaneo pensar lançada a mente,
Redobrando de força, qual redobra
A rapidez do corpo gravitante,
Vai discorrendo e achando em seus arcanos
Novas respostas ás razões ouvidas.

Mas a noite declina, e branda aragem
Começa a refrescar. Do céo os lumes
Perdem a nitidez já desmaiando.
Assim já frouxo o pensamento do Indio,
Entre a vigilia e o somno vagueando,
Pouco a pouco se olvida, e dorme, e sonha.

Como immovel na casca entorpecida
Clausurada a chrysalida recobra

Outra vida em silencio, e desenvolve
Essas ligeiras azas com que um dia
Esvoaçará nos ares perfumados,
Onde em quanto reptil não se elevára;
Assim a alma no somno concentrada,
Nesse mysterio que chamamos sonho,
Preludiando a vista do futuro,
A posthuma visão preliba ás vezes!
Faculdade divina, inexplicavel
A quem só da materia as leis conhece.

Elle sonha… Alto moço se lhe antolha
De bello e santo aspecto, parecido
Co’uma imagem que vira atada a um tronco,
E de settas o corpo traspassado,
N’um altar desse templo onde estivera,
E que tanto na mente lhe ficára.

– Vem, lhe diz: e ambos voam pelos ares,
Mais ligeiros que o raio luminoso

Vibrado pelo sol no veloz gyro;
E vão pousar ao alcantilado monte,
Que curvado domina o Guanabara.

Cerrado nevoeiro se estendia
Sobre a vasta extensão do espaço em torno,
E o topo da montanha sobranceiro
Parecia um penedo no oceano.
Mas o velario da cinzenta nevoa
Pouco a pouco se foi descondensando,
E rarefeito em fim em brancas nuvens
Foi vagueando pelo azul celeste.

Que grandeza! Que immensa magestade!
Que espantoso prodígio se levanta!
Que quadro sem igual em todo o mundo!
Onde o sublime e o bello em harmonia
O pensamento e a vista attrahe, enleva,
E faz que o coração extasiado
Se dilate, se expanda, e bata e impilla

O sangue em borbotões pelas arterias!
Os olhos encantados exorbitam,
E lagrimas de amor nelles borbulham.
Como as vibradas cordas de uma lyra
De almo prazer os nervos estremecem;
E o espirito pairando no infinito,
Do bello nos arcanos engolfado,
Parece alar-se das prisões do corpo.

Nitheroy! Nitheroy! como és formoso!
Eu me glorio de dever-te o berço!
Montanhas, varzeas, lagos, mares, ilhas,
Prolifica Natura, céo ridente,
Legoas e legoas de prodigios tantos,
N’um todo tão harmonico e sublime
Onde os olhos verão longe deste Eden?

Não és tão bello assim, ceruleo golfo,
Onde a linda Parthênope se espelha,
Tão risonha e animada como a noiva

No dia nupcial leda se arrêa
Para mais encantar do esposo os olhos!
Não és tão bello assim, quando torrentes
De purissima luz vão esmaltando
Tuas magicas ribas apinhadas
De garbosas cidades, de palacios
Entre bosquetes e odorosas tempes,
E combros de ruínas gloriosas
Da romana grandeza que inda choras.
Ou quando no teu céo voluptuoso,
Onde o ar perfumado amor inspira,
Entre os círios da noite alveja a lua,
No mar mostrando ao longe a bella Capri,
E a saudosa Sorrento, onde meus olhos
Cuidam ver inda infante o egregio Tasso
Brincando á sombra de frondosos louros.
Ou mesmo quando inopinado ás vezes
O teu volcaneo monte, contrastando
A brandura da doce Natureza,
Horrisono troando e estremecendo,
Das sulphureas entranhas arremessa
Pela bocca infernal, de fumo envolta,

Altos jorros de lavas inflammadas,
Como ardentes columnas crepitantes,
Que estalam no ar, e rompem-se em chuveiros,
E umas sobre outras cahem em catadupas,
E torrentes de fogo, que lambendo
Vão o seu dorso, avermelhando as nuvens.
Meu patrio Nitheroy te excede em galas,
Na grandeza sem par muito te excede!

A alma ardente do Indio enleiada goza
Contemplando esse mar que em flôr se quebra
Nessas longinquas praias e enseadas,
Que recortando vão da terra as orlas,
Como uma argentea franja abrilhantada;
E esses continuos montes verdejantes,
Que o vasto Nitheroy cingem e fecham
Como em profundo lago, salpicado
De graciosas ilhas. Ah! disseras
Um pedaço do céo cheio de estrellas,
Guardado entre muralhas de esmeraldas!

Resupino gigante de granito
Protege a entrada do remanso equoreo;
E co’o pé colossal, penedo ingente,
Ao longe mostra a barra ao viajante,
Que absorto fica ao ver a maravilha!

Pouco a pouco essas terras, esses mares,
Essas altas montanhas, essas ilhas
Foram-se enchendo de prodigios novos;
Como n’um panorama, invenção rara
Do engenhoso Francez, mudam-se as scenas
Pelo effeito da luz varia disposta.

O santo guia então dest’arte falla
Com prophetica voz ao Indio attento,
Cuja mente no sonho se aclarára:

« Volve os olhos áquella immensa varzea,
Que desde o And’rahy ao mar se estende.

Não vês aquelles combros que branquejam,
Enchendo todo o campo, entre os verdores,
E se alongam em grupos alinhados
Pelas praias e encostas das montanhas?
É a nova cidade do Janeiro,
Que em breve tem de ser alli fundada
Co’a minha protecção. Formosa e grande
Será como ora vês, cabeça illustre
De todo o vasto Imperio Brasileiro,
Do qual a Cruz será o alçado emblema
Da sua liberdade e independencia.
Vês tu como a cidade tanto cresce,
Que já em torno della outras se elevam?
Aquella que alli vês na opposta margem
A linda Nitheroy será chamada.
Quantas outras innumeras cidades
Neste Imperio da Cruz se irão erguendo!

« Olha agora p’ra o mar: eil-o sulcado
Por essa multidão de ousados lenhos,
Uns co’as velas bojudas, insuffladas

Como expandidas azas branquejantes,
Outros movidos pelo fogo interno;
Que o engenho, inspiração de Deos aos homens,
Governa a terra, o mar, o ar, o fogo.

« Vês tu aquella náo apavonada
De listões tremulantes, multicores,
Soberba entrando a foz do Guanabara,
Que a saúda com brados jubilosos?
Sabes quem nella vem?… Uma rainha,
E seu filho e seus netos, descendentes
Dos Reis de Portugal! Familia illustre,
Que deixa o paço avito, e a terra patria,
Para abrigar-se nesta plaga amena,
E aqui fundar um Throno, e um Reino novo,
Maior Reino que o velho que deixára.

« Eis erguido esse Throno! A elle sóbe
João, sexto no nome entre os Reis Lusos;
E o Brasil, que colonia supportára

Do altivo Portugal os duros ferros,
Agora Reino irmão é proclamado!

« Porém inda é mais alto o seu destino,
Que Deos assim o quer; e hade cumprir-se
Apezar da ambição de homens mesquinhos,
Que na sua vaidade leis dictando,
Cuidam poder mudar as leis eternas,
Que a marcha e a sorte das nações regulam.

« Oh quanto póde o amor do patrio berço
No humano coração, rei ou vassallo!
Volta o Rei de seus pais ao velho Throno,
Que abalado chorava a sua ausencia,
E deixa o filho sustentando o novo,
Porque a dôr de o perder o não destrua,
E não se apague o amor que o elevára.
Deseja o pai que o herdeiro dos seus Thronos
Um só seja, e os reuna, e mande, e reine;
Mas nem do Rei os calculos prudentes,

Nem do filho o respeito e a obediencia
Aos decretos de Deos resistir podem:
E ambos, cedendo, mostram-se mais sabios
Que esses, de orgulho cheios, que pretendem,
Lá no congresso da longinqua Lisia,
Com discursos e leis, e ferro e fogo
De novo escravisar o Reino grande,
Que quer ser livre, e póde, e deve sel-o!
Como os homens são loucos quando intentam
As nações sotopor aos seus caprichos!

« Pedro, o Principe herdeiro dos dous Thronos,
Bem vê que um vasto mar os tem distantes,
E que uma só vontade e um mesmo sceptro
Já não podem unir nações distinctas;
Quanto mais, nem seu peito em tal consente,
Curvar e sujeitar a nação nova,
Resplendente de brio e de futuro,
Ao Reino Lusitano, que definha,
E a quem tem elle de outorgar um dia

A antiga liberdade, e uma Rainha
Filha sua, nascida nesta terra.

« Eil-o, egregio mancebo de alto porte,
Dos filhos do Brasil já ladeado,
E desse sabio Andrada, que se ufana 1
Co’os illustres irmãos de ter nas veias
Sangue de Tib’riçá e dos Tamoyos.

« Eis o heroe lá nas margens do Ypiranga!
Escuta sua voz; eil-o que brada:
– Independencia ou morte. – Exulta, oh Indio!
Exulta, qu’esse brado foi ouvido
Desde o vasto Uruguay té o Oyapock;
E os povos, que o escutam jubilosos,
Bradam com Pedro: – Independencia ou morte!

« Um novo Imperio grande se levanta
Onde o feliz Cabral a cruz alçára;

A cruz, simbolo santo de triumpho,
De resgate e de gloria aos opprimidos:
E Pedro, o defensor dos seus direitos,
Ufano de o fundar sóbe a esse Throno,
Que tem por base amor e liberdade.

« Vê que debalde derrubal-o intentam
As armas desses feros Portuguezes,
Que obedecem ao mando de um Madeira;
E se lembram dos feitos singulares,
Que seus avós no Oriente já fizeram.
Vê que se trava sanguinoso pleito,
Onde os Limas se amestram corajosos,
Defendendo o pendão da Independencia:
E onde os netos illustres dos Vieiras,
Do leal Camarão a par dos netos,
Combatem pela mesma santa causa.

« Vê dos Tupís as descendentes tribus

Como alli se recordam que pelejam
Contra os filhos dos seus perseguidores;
E como nessa escola porfiosa
Do novo Imperio os bravos se exercitam
Para futuras lides e altos feitos.
Alce-se o ferro contra o ferro alçado;
Porém maldito quem provoca a lucta.

« Vê que a victoria fica aos defensores
Deste Imperio da Cruz, da justa causa
Que Deos ama e protege; e que lá fogem
Tintos de sangue os feros inimigos
Da nascente, brasilia liberdade.

« Saúda, oh Indio, a tua patria livre
Do jugo contra o qual armas teu braço;
E o espirito levanta a Deos Eterno,
Que nunca deixa sem justiça os homens,

Pune os erros dos pais co’as mãos dos filhos,
E prostra o oppressor aos pés do oppresso.
Thronos cahem, thronos se erguem! Reis e povos
Como as ondas do mar sobem e descem!
Do pensamento humano o sopro ardente,
Que da Razão perenne a luz recebe,
As novas gerações inflamma e anima,
Máo grado os antepostos refractarios!
A vida é movimento, e a humanidade
Como tudo caminha e se renova;
Mas Deos, unico, immovel permanece:
A seus eternos planos nada é tarde,
Nada é cedo, tudo é quando ser deve,
Que presentes lhe são os tempos todos.
Como vês, n’um olhar, deste alto monte,
O que andando verias pouco a pouco,
Assim Deos tudo vê n’um só momento,
Sem passado ou porvir tudo domina!
E as almas puras, já do corpo extremes,
Da terra pela morte resgatadas,
Vêem co’os olhos de Deos o que estás vendo,
Qu’inda é futuro p’ra os humanos olhos.

« Quero mostrar-te mais, o qu’inda mesmo
Já passado causára espanto ao homem,
Que as leis da Providencia desconhece,
E harmonisar não sabe a coexistencia
Da liberdade humana e do destino.

« Olha, e alli vê no meio da cidade
Aquella vasta praça apinhoada
De longos batalhões, de povo em turmas,
Que affluem dos quatro lados, como o sangue
Afflue ao coração quando ha perigo.
Não ouves o estridor da vozeria
Como o som de longinqua trovoada,
Ou das ondas do mar o rumor surdo?
Não vês como ao clarão da casta lua
Relampejam em linhas ondulantes
Essas polidas armas erriçadas,
Como si do inimigo voz de guerra,
A santa paz e o somno perturbando,
Ao combate chamasse essas phalanges?

« Sabe pois o qu’isso é. Uma palavra,
N’um momento fatal articulada,
Como a voz do destino alli retumba.
O Fundador do Imperio abdica o Throno!
Diz um adeos ás margens do Janeiro;
Orphão deixa seu filho, tenro infante
Qu’inda não póde sopesar o sceptro,
E mais tres filhas tenras sem defeza,
Tanto elle crê no amor desse bom povo!
E vai por alto impulso além dos mares
Oppor-se ao proprio irmão em campo armado;
Libertar essa terra em que nascêra,
Terra de seus avós, sempre querida;
E firmar em seu Throno uma Rainha,
A Segunda Maria, filha sua:
E em fim morrer. O mundo dirá delle:
– Soube ser cidadão, ser pai, ser homem
Tendo nascido Rei. – E é quanto basta.

« Mas vê ao lado do auri-verde solio

Esse Infante gentil, que no seu berço
Pelo sol tropical foi aquecido,
E as auras respirou destas devezas,
Que liberdade e amor bafejam n’alma.
Vê o neto de Reis, de Pedro o filho,
Desse prudente Lima acompanhado, 2
No seu paço, sem guardas que o defendam.
Mas como o povo o ama! Como o guarda
Com paternal cuidado e puro zelo,
Sem que de imposto mando leve sombra
Da espontanea affeição lhe offusque o brilho!
Sublime proceder, que assás revela
Como do povo o amor mais se dedica
Quando menos se tenta escravisal-o!
Grande lição aos Principes da terra,
Que al pensando em tyrannos se convertem,
Conculcando a justiça e a liberdade,
Mananciaes de amor, de paz, de gloria;
E cuidam que as phalanges sustentadas
Co’o suor da nação escravisada
São do Throno os esteios mais seguros:
Erro fatal aos Reis, fatal aos povos!

« Oh que immenso futuro o Céo destina
Ao Imperio da Cruz, e ao seu Monarcha,
Que com elle se firma, cresce e avulta!

« Mas não se fórma um povo de repente,
Nem contam as nações sua existencia
Por annos, tal como o homem conta a sua:
Annos são dias, mezes são instantes
P’ra o crescimento e a força dos Imperios:
Por seculos, por seculos só contam!
Condemnada ao trabalho a especie humana,
Só co’o trabalho prosperar lhe é dado:
A sciencia, a virtude, a paz são premios
De mil lucubrações, de mil fadigas.
E si um Pedro lançou do Imperio as bases,
Outro o fará subir á mór altura,
E a gloria, a força crescerão com elle.

« Mas antes que o Segundo, egregio Pedro,
Viril genio mostrando em tenros annos,

Por voto da nação empunhe o sceptro,
A discordia, accendendo a civil guerra
Nos campos do Uruguay e do Amazonas,
E do Itapicurú nas longas margens,
Fará nascer, máo grado os seus furores,
Novos amores e virtudes novas.
Aqui e alli do velho Lima um filho
Se ha de immortalisar, deixando á patria
O nome de Caxias para exemplo 3
De bravura, justiça e lealdade.
Como na essencia do homem força occulta
Ao mal exterior resiste e o vence;
Assim no seio da nação enferma
Poder mysterioso a regenera.
Tal é do mundo a lei, tal a harmonia,
Que si o mal segue ao bem, tambem mil vezes
Do mesmo mal o bem surge radiante,
Como succede o dia á noite escura.

« Desse humano porvir, a Deos presente,
O véo ergui, oh Indio, a um breve quadro,

Que nem tudo convêm mostrar-te agora.
Tu, que n’alma só vês a liberdade,
Por quem soberbo affrontarás a morte,
Sabe que o teu poder será vencido
Por um poder maior e sobrehumano,
Contra o qual dos mortaes forças não valem.
Da verdade será essa victoria,
E não d’aquelles que fruil-a aspiram,
Que de tão longe vem após o ganho,
Sem saber que outro &m mais alto os chama.
Assim de Deos se ostenta a providencia,
E o infinito saber, que espanta os homens.
A verdade da Cruz sublime e santa
Nestas incultas plagas brilhar deve,
Porque a luz do Senhor não falte aos homens,
Cujos pais a perderam por seus erros.
Mas essa luz de Deos, que a Cruz reflecte,
Não deslumbra a razão, não a escravisa,
Nem aos pés de um tyranno os homens prostra;
Antes nos corações amor inspira,
Paz, justiça, igualdade e liberdade,
Que hão de com ella triumphar no mundo,

Posto que de seu brilho um pouco escassas,
Porque as mãos dos mortaes tudo profanam.

« Como a agua da fonte pura emana,
Mas no seu deslizar, sempre agitada,
De terra envolta, a transparencia perde;
Tal o supremo bem, a sã verdade,
Emanação de Deos á intelligencia,
No tropel das paixões, que se ante-elevam,
Perde um pouco o fulgor e empallidece:
Mas um só raio da verdade eterna,
A caligem dos erros rechaçando,
Basta para accender um sol de vida.
E esse sol brilhar deve nestes climas!

« Indio, si amas a terra em que nasceste,
E si podes amar o seu futuro,
A verdade da Cruz acceita e adora.
Que importa quem a traz ser inimigo,
Si o bem fica e supera os males todos!

Bons e máos, tudo serve á Providencia!
Como de um fructo putrido, lançado
Sobre a terra, a semente germinando
Nova arvore produz e novos fructos;
Assim desses crueis, corruptos homens,
Que vos flagellam hoje, um santo germen
Aqui produzirá filhos melhores.
Invencivel poder tem a verdade,
Que o Christo do Senhor na cruz morrendo
Legou aos homens todos – que se amassem.
Amor é igualdade, paz, justiça,
Fraternal união e caridade.
Estas são as lições que a Cruz nos dicta. »

– Dai-me a cruz! – Brada o Indio mesmo em sonho:
– Dai-me a cruz! A seus pés quero prostrar-me.

E uma alvissima cruz mais resplendente
Do que a prata polida, e que o brilhante
Ao luzir de um relampago, apparece

No céo sobre aureo fundo luminoso,
Que em rosea vibração no azul se perde.
Dulios sons de suavissima harmonia
Se evaporam nos ares perfumados.
Estatico adorando o puro emblema,
O santo guia ás nuvens se levanta
Por dous alados Anjos sustentado:
E o Indio absorto cahe sobre os joelhos,
Na cruz fitando estatelados olhos,
Mãos e braços erguidos, todo immovel;
Como si o espanto do prodigio immenso
Petrificado lhe deixasse o corpo,
E em seu arranco lhe soltasse a alma.

Mas o corpo que dorme, e a alma que sonha,
Como si outra alma fosse em outro corpo,
Diversa commoção experimentam.
Da rêde se alça o Indio mal desperto,
E entre o sonho e a vigilia inda confuso,
Vendo a grata visão esvaecer-se:
« Salva-me, oh Cruz! » exclama, e de joelhos

Cahe attonito ao lado do Cacique,
Que tendo precedido o sol nascente,
Aos pés de um Crucifixo orando estava,
Como soía ao despontar da aurora.

Tibiriçá se espanta, ergue-se, e brada
Co’um accento em que a fé se expande immensa:
« Tu me ouviste, oh Senhor! e tu venceste!
Tua palavra occulta e poderosa
Pôde mais do que a minha! Eis Jagoanharo
Por ti só convertido, que te adora!
E quem do teu poder duvidar póde? »
E assim dizendo, e de prazer chorando,
Todo de santo amor assoberbado,
Terno se arroja aos braços do sobrinho,
E o aperta, e o beija, e titubeia, e arqueja,
E a voz lhe falta, e se redobra o pranto.
Após esses transportes jubilosos:
« Ah! vamos já, disse elle, prestos vamos
Ao nosso santo Anchieta, que na igreja
Certo já deve estar a Deos orando;

E talvez que já Deos por algum Anjo
A tua conversão lhe annunciasse. »
E ambos vão, um co’a mente em Deos só posta,
E o outro só vendo o que sonhando vira.

Mas na praça da igreja o povo junto,
Vozes e gritos a attenção lhes chamam.
No meio do tumulto alguns selvagens
Recem-chegados, velhos e mulheres,
Co’as mãos p’ra traz ligadas, caminhavam.
Param os dous: e Jagoanharo olhando,
Oh encontro fatal, caso imprevisto!
Com pasmo reconhece entre esses presos
A formosa Iguassú, que ia chorando.

« Iguassú! onde a levam?… Brada e corre:
Soltem-na já!… » E vai, e quer soltal-a;
Empurra a quem se oppõe; muitos o expellem,
E luctando feroz se arroja, enfia
Por entre as turmas qual bravio touro

Arremettendo a uns, prostrando a outros.
A morte erguida em cem pontudos ferros
Vai sobre elle cahir; mas o Cacique,
Que o segue, o antemura co’o seu corpo:
« Não o matem! gritando: É meu sobrinho. »
E ajudado d’alguns fieis amigos,
Da confusão o arranca, e a custo o salva,
Levando-o de rojão da igreja á porta.

Nisto alli se apresenta o padre Anchieta
No lumiar da porta, acompanhado
Dos discipulos seus, que orando estavam:
E co’o gesto e co’a voz silencio impondo,
Ouve a causa e as razões desse tumulto;
Quem Jagoanharo seja, ao que alli veio,
E quem a presa indígena, que em pranto
Longe já vai co’os vís que a captivaram.

Tendo Tibiriçá exposto o caso,
O venerando Anchieta commovido:

« Jagoanharo, lhe diz, eu te prometto
Que Iguassú voltará do pai aos braços.
Vou tiral-a das mãos dos que a roubaram:
Eu e Tibiriçá a entregaremos,
P’ra que nada lhe falte, á tua prima,
Esposa de Ramalho, em cuja casa
Por nós será guardada e defendida.
Vai em paz, filho meu; e dize a Aimbire,
Dize a Pindobuçú que sem receio
Podem vir procural-a e recebel-a. »

– Mas eu a quero já, lhe volta o Indio,
Quero a Pindobuçú leval-a eu mesmo. »

Porém Anchieta via que impossivel
Era nesse momento achar dispostos
Os roubadores a entregar a presa;
E só da persuasão branda empregada

Conseguir esperava o nobre intento;
E disto o Indio convencer tratava.
O que entendendo o irado Jagoanharo:
« Malvados! brada, oh perfidos traidores!
Assassinos crueis ! eu vos conheço!
E ainda fallareis de caridade?
Vossos pais o seu Deos crucificaram,
Derramaram seu sangue; e vós, infames,
Para mais insultar cobardemente
A esse Deos, que adorais por zombaria,
Vindes aqui roubar-nos e matar-nos
Com palavras de amor, a cruz mostrando.
Branca era a cruz que eu vi; a vossa é negra
Como as vossas acções e as almas vossas!
Eu chamo o vosso Deos para punir-vos,
E contra vós lhe off’reço os nossos braços. »

Isto dizendo, parte irado e insano,
As margens ganha, e na canôa entrando,
Remando vai co’os dous que o esperavam,
E já de foz em fóra inda pragueja.

Assim as acções más, que aos olhos fallam,
Destroem da sã doutrina o doce effeito.
Como um som a palavra se evapora,
Si a par della os exemplos de virtude
Não vão ao coração, não o edificam.