A Confederação dos Tamoyos/Canto VII

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ARGUMENTO.




Em quanto os Tamoyos esperam que Jagoanharo volte com a resposta de Tibiriçá, parte Aimbire, só acompanhado de Parabuçú, para ir buscar os ossos de seu pai.— Seus presentimentos.— Chegam ao logar, desenterram a igaçaba, e vão lançar fogo á casa de Braz Cubas.— Salta este pela janella; Aimbire o aferra, e o leva de rastos ao pé da igaçaba.— Lança-lhe Aimbire em rosto todas as suas crueldades; e no momento de matal-o apparece-lhe Maria, filha de Braz Cubas.— Enternecido pelos seus rogos, parte Aimbire sem vingar-se.— Motivo porque assim praticou.— Enterram a igaçaba no Cairuçú, e voltam para o campo.— Soffrimentos de Iguassú.— Tenta Anchieta tiral-a do poder de Francisco Dias, e este lhe responde descortezmente.— Divulga-se em São-Vicente a noticia que os Tamoyos se preparam a ir atacar a villa.— Susto dos seus habitantes e prégações dos padres.

CANTO SETIMO.

Além do Cairuçú surge de um lago,
Na serra da Bocaina, o Parahyba,
Que antes de receber o rico feudo,
Que de Ubatuba traz-lhe o Parahybuna,
Piratinga inda pobre se nomeia.
Corre o rio, que após caudal se torna,
Seguindo a direcção da serrania
Paraná-piacaba, ao mar vizinha,

Que pela costa alonga-se alterosa,
Coroada de espessas, verdes mattas,
Como o Parnazo e o Olympo jamais viram
Nos tempos em que os vates fabulando
De altos Numes seus bosques povoaram.

Nestas virgens devezas, entre as grimpas
De successivos montes, donde emanam
Centenares de arroios crystallinos,
Á sombra dessas selvas gigantescas,
Os fogosos Tamoyos esperavam,
Por conselho dos velhos mais prudentes,
A resposta devída a Jagoanharo.

O valente Araray, honrar cuidando
O irmão Tibiriçá, dizia a todos
Que elle, cedendo aos rogos do sobrinho,
Do Tamandatahy deixando as margens,
Prompto viria co’a guerreira tribo,
Que de Piratininga os campos enche.

« Impossível eu creio, assim dizia
O pai de Jagoanharo, que um Cacique,
Um Guayaná tão vil mostrar-se queira,
Que esquecido do irmão e do sobrinho
Se arme p’ra defender estranhas gentes,
Ou se deixe ficar em ocio indigno. »

Araray! tu não sabes quanto imperio
Tem uma ideia nova, grande e santa,
Que a alma penetra, o coração subjuga,
E doma, e vence os naturaes affectos!
Uns pela gloria as vidas barateam,
Outros a morte pela patria affrontam,
Dão-se alguns á verdade em holocausto,
E outros em sacrificio a Deos se votam:
E cada qual da ideia que o domina
Ao mago impulso, tudo o mais desdenha!
Tibiriçá por Christo a patria olvida,
Sacrifica o irmão, deixa os amigos,
E por Anchieta e Nobrega contente

Contra os seus se apparelha, tendo em gloria
A causa defender dos Portuguezes,
Que elle crê ser de Christo a santa causa!
E si elle errasse, a crença o desculpára.

Mal transmontava o sol puro e radiante,
E entre os seus arrebóes auri-purpureos
Como um sublime adeos dizia á terra,
Que elle deixava com amor saudoso.

E aonde vai tão pensativo Aimbire
Pelos andurriaes dessas alturas,
Só do irmão de Iguassú acompanhado?
Onde vão elles sós, quando da noite
Já placido susurra o vago sopro
Por entre as invias, solitarias mattas,
Onde recem-surgidas dos casulos
Esvoaçam esphinges e phalenas?
Ao ver um após outro esses dous vultos
De agigantado porte e tez queimada,

Caminhando ao luar silenciosos,
Por dous genios da noite os tomarias:
E no incerto clarão, entre mil sombras,
Em azas ponteagudas convertêras
Esses feixes de settas emplumadas,
Que das costas lhes pendem tremulantes.

Tinham já muito andado os dous amigos
Sem que palavras entre si trocassem,
Seguindo sempre a direcção de um rio,
Dos muitos que sem nome humildes correm,
Quando Parabuçú a voz erguendo:
« No que pensas, Aimbire? Estamos longe? »

Aimbire para o céo erguendo os olhos,
E ao Cruzeiro do Sul depois volvendo-os,
Lento responde: – Não… Mais alguns passos.

« E chegaremos nós co’o sol nascente? »

– Muito, muito antes que madrugue a aurora.
Quando a lua chegar do céo ao meio,
Devemos nós lá estar… Já perto estamos.

« Não ouves um rumor? »
    – Sim; é o rio,
Que alli mais adiante se despenha,
E depois mais abaixo á esquerda volta,
E vai surgir na varzea. Pouco falta.

« E não te enganarás chegando ao sitio? »

– Presente o tenho; e como que estou vendo
Meu velho pai ao tronco recostado
Do grande ipê, que está do rio á margem,
Perto de alguns patís e araçazeiros.

« Existirá o ipê? ou já queimado
Terá servido ao fogo do Emboaba? »

Aimbire suspirou, e nada disse.
Assim com grande pausa ambos fallavam,
Como si em outra cousa ambos pensassem.
Dados mais alguns passos, novamente
O irmão de Comorim frio pergunta:
« No que pensas, Aimbire? »
      – Eu?
       « Sim. »
        – Pois dize
Tu primeiro.
    « Vinha eu pensando agora…
E ambos – em Iguassú – dizem a um tempo!
Por um momento os passos suspenderam,
O folego, o fallar, como si attentos
Seus corações presagos consultassem,
Ou como si dos genios das florestas
Quizessem escutar algum annuncio.

« Pensava em Iguassú, prosegue Aimbire:
Como que a ouvia, que por mim chamava,
Com voz tão suffocada e tão sentida
Que de susto e de dôr me enchia o peito. »

– E eu como que a via, diz-lhe o amigo,
Cahir nas mãos dos feros Emboabas.

« Não mais, Parabuçú! Que ousas dizer-me?
Não mais; que essa lembrança me horrorisa!
Ah quando terão fim nossas desgraças?
Muito temos soffrido; e muito ainda,
O coração m’o diz, soffrer devemos.
Que alluvião de males nos trouxeram
Esses homens crueis, que horrida guerra,
Ou dura escravidão nos dão á escolha!
Irmão de Comorim, ah tu não sabes;
Não, tu não sabes o que é ser escravo!
Não ser senhor de si, viver sem honra,
Acordar e dormir sem ter vontade;

Calado obedecer com rosto alegre,
Soffrer sem murmurar, comer chorando;
Trabalhar, trabalhar ao sol e á chuva,
E isto p’ra que um senhor tranquillo viva!…
Ah! tu não sabes o que é ser escravo;
E eu sei o qu’isso é… Quando em tal penso
Abrasa-me o furor… Meu pai, coitado!
Na escravidão morreo: e si inda eu vivo
É só para vingar tão grande infamia.
Elles m’o pagaráõ co’um mar de sangue!
Podesse o mar rolar os seus cadav’res
Até ás praias que embarcar os viram,
Que eu ás ondas seus corpos arrojára,
P’ra que fossem de nós levar noticia
Aos amigos e irmãos que lá ficaram. »

Dest’arte discorrendo os dous chegaram
A um valle, onde por terra se estendiam
Ingentes troncos de arvores annosas,
Que os machados a custo derrubaram,

E o fogo a cinzas reduzira os ramos,
P’ra dar campo ao mesquinho pasto do homem.
Enorme jatahy, que mal cortado
Junto á raiz, co’o peso desabára,
Atravessado estava sobre o rio
Como uma ponte enraizada á terra.
Passam por elle os dous; e além saltando,
Perlustra Aimbire o sitio e o reconhece,
Máo-grado tantas arvores soberbas
Prostradas pelo chão… Vão-se-lhe os olhos
Por esses negros troncos gigantescos,
Como esqueletos de Titanea raça,
Que o tempo conservára… Um calafrio
Como o sopro da morte ao peito anciado
O sangue lhe reflue… Receia, teme
Não achar o que busca… Avança os passos
Pela margem do rio; e avante enxerga
Negrejar ao luar o immenso vulto
Do grandissimo ipê tão desejado.
Como afanoso o coração lhe bate!
– Eil-o! – brada: e correndo abraça e beija.
E rega com seu pranto aquelle tronco

Junto ao qual enterrára a igaçaba,
Que de seu velho pai guardava o corpo.

Trabalhando á porfia os dous amigos
Cavam o chão, e a urna desenterram;
Ao vêl-a, o pio Aimbire enternecido
Exclama: « Oh Cairuçú! guerreiro illustre,
Que depois de uma vida gloriosa
Tão malfadada foi tua velhice,
E acabaste de dôr no captiveiro.
Oh Cairuçú, meu pai! Desde essa noite
Em qu’eu neste torrão guardei teus ossos,
A sós, sem testemunha além da lua,
Que hoje o caminho alumiar me veio;
Desde essa noite, em qu’eu jurei vingar-te,
Um dia só não tive de repouso.
Assás luctado tenho, e inda não basta.
Desta terra banhada com teu pranto,
Terra de escravidão, que a um senhor nutre;
Tirar venho teu corpo… Outro jazigo
Te darei nesse monte ao mar fronteiro,

Que o teu nome terá para memoria,
E onde os passos do barbaro estrangeiro
Não mais farão estremecer teus ossos.
Mas antes qu’eu te leve, atroz castigo
Devo dar ao cruel que incauto dorme.
Inda um momento espera; um bom amigo
Aqui está p’ra ajudar-me. »
    E tendo dito,
Vão os dous pelo campo recolhendo
Galhos sêccos e folhas de coqueiros;
E dous feixes formando, enormes feixes
Atados com cipós, os põem ás costas,
E seguem por um trilho, entre canteiros
De milho e mandioca, até que avistam
N’um pequeno terreiro uma fogueira,
Que ou por prazer accendem cada noite,
Ou para afugentar nocivas feras;
E ao lado da fogueira uma choupana
De mesquinhas senzalas rodeada.
E mostrando-as Aimbire ao companheiro:
« Nesta o cruel senhor, diz elle, habita;
E naquellas os miseros escravos. »

E á choupana central se approximaudo,
Junto aos esteios põem os combustiveis,
E contra a porta em calculados montes:
E do vizinho fogo accesas brazas,
E inflammados tições em palha envoltos,
Vão aos feixes lançando. Asinha o fogo,
Pelo vento assoprado, arde e crepita;
E o incendio chispando avulta e cresce,
E em torno a casa lavra e a cerca toda.
Denso fumo nos ares se ennovela,
E as labaredas tremulas se elevam
Lambendo as beiras do sapê do tecto:
Já sobre elle voando á cumieira,
De um lado e d’outro as chammas se confundem
Com vermelho clarão ao céo subindo.

Entretanto defronte da janella
Vai Aimbire postar-se, e attento espera,
Tal como o caçador espera a caça
Que o cão foi levantar dentro da monta.

Eis abre-se a janella; e um vulto de homem
Espavorido se ergue, mal envolto,
Hirsuta a coma, os olhos desvairados,
Pallido todo, e ao chão se atira e corre,
Como um phantasma que abre a campa e foge,
Ou alma que do ardente inferno escapa.
Aimbire o reconhece, e prompto o aferra,
Como um demonio aferra a alma damnada
Que por pacto infernal lhe está sujeita.
E arrojando-o por terra enfurecido,
O leva de empurrões, quasi de rastos,
Té ao tronco do ipê, junto á igaçaba.

« Olha p’ra mim, Braz Cubas! brada o Indio
Com rouca, horrenda voz e um riso hediondo:
Olha-me bem, e vê si me conheces?
Não quero que tu morras sem que saibas
Quem se vinga de ti, dando-te a morte. »

Á tal ameaça a victima tremendo

Mal pôde articular: – Piedade, Aimbire!
Tem compaixão de um pai.

    « De um pai, tu dizes?
Eu tambem tive um pai; e tu, malvado,
Delle e de mim piedade não tiveste.
Dentro desta igaçaba jaz seu corpo
Pedindo o sangue teu. »
    – Porque? A vida,
Não a morte, lhe eu dera, si podesse.

« Sim, porque elle vivendo te servira,
E eu inda hoje seria teu escravo.
Escuta: quando tu p’ra aqui vieste,
Ha muito tempo já, mulher eu tinha
Tão bella como a lua que estás vendo,
Tão joven, delicada, e tão mimosa
Que outra esposa qual ella não havia;
E um filho me devia dar bem cedo,
Do nosso terno amor primeiro fructo.

Tu a viste, e não sei si a cubiçaste.
E um dia, que eu caçando longe andava,
A vejo vir correndo, tropeçando
Pela montanha acima, já sem forças,
Quasi a vida exhalando. Corro á ella,
Nos braços a recebo; e ella cahindo,
Apenas dizer pôde: – os Emboabas!
E alli do susto e da fadiga exhausta,
E das dores talvez tendo a criança,
N’um tremor expirou a malfadada,
A tão cara Potira, esposa minha. »

– E será minha a culpa?
    « Sim: e que outros
Senão tu junto aos teus a perseguiram?
Escuta ainda mais: passados tempos,
Tu em paz com meu pai viver fingias.
Um dia acompanhado o acommetteste,
E como minha mãi te ia fugindo,
E gritando por mim que a soccorresse,

Tu apressado após lhe déste um tiro,
E a mataste, cruel, dentro do matto.
Preso meu pai trouxeste, e uma criança;
E entregar-me vim eu ao captiveiro
Para estar com meu pai e minha filha,
E sobre elles velar. Si não matei-te
Foi só porque esse velho e essa criança
Não podiam pa fuga acompanhar-me,
E aqui ficando os teus os matariam.
Lembras-te tu do pobre Guaratiba?
Tu a um tronco o amarraste, em cuja base
Havia um formigueiro, e o açoutaste
Até fazer saltar co’o sangue a pelle
Das costas, que uma chaga lhe ficaram;
E as formigas, em chusmas negrejando
Sobre o convulso corpo, o remordiam!
E eu, á casa voltando do trabalho,
E vendo-o assim, por elle intercedendo,
Tu furibundo me disseste: – O mesmo
Tambem a ti farei, se ousado fores! –
Guaratiba morreo martyrisado!
Assim a esposa, a mãi, o pai, o amigo,

Tudo quanto eu amava me roubaste.
Sabes em fim quem sou… Agora… morre! »

« Perdão para meu pai! perdão, Aimbire!
Ah não mates meu pai! » Assim bradando
Uma gentil menina, mal envolta
N’uma alva de dormir, se arroja ao collo
Da victima, que jaz de susto immovel.
« Ah não o mates, não. » Seu debil corpo
Cobre o corpo do pai; e um braço alçado
Como que apara o golpe, ou que o conjura.

Anjo da guarda alli do céo baixado
Para salvar o peccador da morte,
Tanto assombro ao Tamoyo não causára,
Como essa apparição tão repentina,
Que da lua ao palor, em tal soidade,
Mais inspira terror mysterioso.
O braço herculeo, que vibrava a maça
Prestes a desfechar o mortal golpe,

Por instantaneo encanto no ar estaca.
Recúa Aimbire o corpo, e apavorado
Olha, e como que a si dubio pergunta:
Si é verdade o que vê, ou si é um sonho.
Em seu rosto feroz vagando o pasmo,
Desfaz-lhe o senho, e lhe descerra os labios,
E a piedade em seu peito o arquejo expande.

Elle emfim reconhece essa menina,
Esse anjo tutelar. – Maria! exclama:
Pobre Maria, és tu?! – E involuntario
Um movimento faz para abraçal-a;
Mas vendo alli o pai, o rosto volta,
Dizendo: – Não tens sangue que me farte.
Vamos, Parabuçú! vamos, partamos. –
E tomando a igaçaba asinha fogem.
Outros heroes mimosos da fortuna,
Por altilocos vates celebrados,
Nunca, brandindo da vingança o ferro,
De tão grande piedade exemplos deram.

Pai e filha alli ficam quebrantados,
Do susto o pai, e do heroismo a filha.

Já longe iam os dous; nem mais os olhos
Voltaram para traz. Surgia a aurora,
E Aimbire ao companheiro assim dizia:
« Fraco talvez me julgues e cobarde,
Que commovido á voz de uma menina,
Deixei com vida o barbaro assassino,
Mallogrando a fadiga de apanhal-o,
Quando eu para fartar minha vingança
Tinha a filha e o pai sob um só golpe.
Porém essa menina que alli viste,
Maria, aqui nasceo nos nossos bosques
De uma boa mulher da nossa terra.
Mil vezes em meus braços carreguei-a,
E mil vezes chorando a mim corria,
Quando seu duro pai a castigava.
Ella com minha filha sempre unidas,
Como duas irmãas da mesma idade,
Me adoçaram o horror do captiveiro.

Quando eu voltava á casa e lhe levava
Alguns ovos de anuns, ella contente
Se lançava a meu collo, e me beijava.
Pobre Maria! tudo quanto tinha
Comigo e minha filha repartia!
Ah! eu a vi chorar junto ao cadaver
De meu infeliz pai, que tanto a amava.
Ella o cobrio de flores; e eu guardei-as
Co’os restos de meu pai nesta igaçaba.
Eis porque suas lagrimas, seus rogos,
Todas essas lembranças reavivando,
Ante seu pai meu braço desarmaram. »

– Mas porque do cruel não te vingaste?
E comtigo Maria não trouxeste? –

« Nem de tal me lembrei nesse momento.
Tu não és pai; si o fôras me imitáras.
Meu coração de pai, posto que irado,
De uma criança ao pranto se enternece,

Como na guerra de furor acceso
Nem com rios de sangue se contenta.
Sou eu da raça dos tyrannos nossos
P’ra matar ou roubar pobres crianças? »

Ao descahir do sol d’aquelle dia
Anhelantes os dous emfim chegaram
Ao cimo do elevado promontorio,
Que inda hoje Cairuçú se denomina.
Alli em frente ao mar, n’um sitio agreste,
Onde talvez ninguem antes pisára,
Dêo Aimbire á igaçaba novo asylo,
E ao corpo de seu pai descanço eterno.
Depois os dous Tamoyos murmurando
Um cantico funereo, p’ra o jazigo
Grossa pedra arrastando o sigillaram.
Então o terno filho alçando a fronte,
E os braços para o céo: « Oh tu (impreca),
Oh tu a quem os raios obedecem,
E que pelo trovão aos homens fallas,
Ou te chames Tupan, ou Deos te chamem,

Escuta minha voz, cumpre meus votos:
Si jamais algum perfido estrangeiro
Nesta pedra tocar, fulmina o impio
Co’um prompto raio teu, e a pó reduze-o. »

O dever filial assim cumprido,
Ao campo seu regressam satisfeitos.

Entretanto Iguassú, fiel amante,
Quasi esposa de Aimbire, amargurada
Soffria esse viver do captiveiro
Longe do que era seu, do qu’ella amava.
Mas Jagoanharo a vira; e doce esp’rança
Fagueira como o zephyro da tarde
Após calmoso dia, embebecendo-a,
Lhe antepunha correndo o pai, o amante,
O irmão, a taba toda p’ra salval-a.
Nos devaneios seus de dar-se a morte,
Constante aspiração do peito afflicto,
Essa doce esperança a vigorava

P’ra viver e luctar, nobre esquivando
Do seu torpe raptor a impudicicia.
A força do brutal Francisco Dias 1
Ella oppunha essa força sobre-humana,
Que ao feminil recato o céo inspira.

Com ella muitas outras jovens Indias
Raptadas tinham sido pelo bando
Que Dias caudilhára; e na partilha
P’ra si este a tomára por mais bella,
Que por isso á excursão movêra os outros,
Companheiros no crime, máos como elle.

Oh misera Iguassú, deixa que eu cale
As repetidas luctas que tiveste,
Teu egregio valor, tua constancia:
Sim, tudo calarei, para furtar-me
Ao pejo de narrar os crueis tratos,
E os lascivos ataques desse infame,
Que para escrava impura te queria,

Sem respeitar a tua tenra idade.
Não se deleita a Musa que me inspira
Com scenas que ao pudor as faces coram.

Grande rumor causára em São-Vicente
O caso de Iguassú e Jagoanharo,
E a noticia fatal que dera a Anchieta
O chefe Guayaná, de que os Tamoyos,
Pelo impavido Aimbire commandados,
A villa em copia ingente ameaçavam.

Foi ter Anchieta co’o soberbo Dias,
E com brandas palavras descreveo-lhe
O castigo a que a villa estava exposta
Por causa do viver licencioso
Dos que andavam os Indios provocando
Com rapinas e mortes; e rogou-lhe
Que para remover maiores damnos
Lhe entregasse Iguassú; que elle queria
Os Indios desarmar restituindo-a

Aos seus, que irados vinham libertal-a.
Que elle désse esse exemplo de virtude,
A fim que os mais colonos o imitassem,
Libertando os selvagens captivados,
E de uma vez cessando de ir caçal-os.

Porém o Dias, qu’entre os seus consocios
Das prégações dos padres murmurava,
E contra elles movia surda intriga,
Aproveitando o ensejo, respondeo-lhe:
« Padre, és tu Portuguez, ou és selvagem?
Que andas tu contra nós sempre bradando,
Sempre a favor de uns animaes sem alma?
Desconfio de tanta santidade.
Queres á custa nossa, e em nosso damno,
Conquistar o amor desses selvagens,
Só para ás vossas leis tel-os sujeitos?!
Não tendes vós tambem Indios escravos?
Dai-lhes embora o nome que quizerdes,
Que escravos são os que p’ra vós trabalham.
Padre, vai-te com Deos prégar aos bosques.

Não dou-te a India; si eu a quiz, cacei-a.
Deixa-me em paz. » E assim dizendo, foi-se.

A tão ímpia resposta o brando Anchieta,
A quem só forças dava a caridade,
Levando as mãos aos olhos, e enxugando
As lagrimas que a flux lhe borbulhavam,
N’um suspiro exclamou: « Ah pobres homens!
Sempre a Deos e á razão cegos e avessos!
E a quem sempre a verdade escandalisa! »

Livre fez Deos o homem; razão deo-lhe
Que o bem do mal distingue; leis sagradas,
Innatas e protótypas gravou-lhe
No coração, porque guias lhe sejam
Na pratica do bem, do justo e santo,
Porque lhe aplaquem das paixões a furia:
E si contra essas leis o homem pecca,
Aos olhos da razão elle é culpado,
Responsavel a Deos: e o crime é do homem,

Porque Deos o fez livre. Oh liberdade!
Comtigo o mal e o bem, a essencia humana!
Sem ti do bruto a essencia, o fatalismo!

Era grande o temor em São-Vicente,
E em seu capitão-mór Pedro Collaço,
Que essas guerreiras tribos colligadas
Como a enchente a colonia aniquilassem.
E os dous servos de Deos, mais corajosos
Que os escravos do inferno e do egoismo,
Pelas praças prégando se esforçavam
Para inspirar ideias de justiça
Aos colonos, affeitos ao vil trato
De caçar e matar os pobres Indios.

Apostolos de Christo, austero Anchieta,
E tu, Nobrega, em vão, em vão bradavas:
« Iguaes os homens são; e christãos devem
Abraçar seus irmãos, do erro salval-os,
Guial-os ao Senhor, morrer por elles,

E não matal-os como fazem lobos.
Vós aos Indios chamais brutos sem alma,
E assim credes poder escravisal-os.
Mas o que desses brutos vos distingue?
Que exemplos vós lhes dais que os edifiquem?
Quando alguns dentre vós té mesmo, oh crime!
A comer carne humana os aconselham!… 2
Tremei, oh Lusos, da justiça eterna.
Deos não nos enviou do antigo mundo,
Estrada abrindo em não trilhados mares
Á esta ignota plaga, p’ra flagello
Destes míseros homens. Não, oh Lusos!
Nossa missão é outra. A luz da Europa,
Não seus erros, aqui mostrar devemos.
Esta é a terra santa e hospitaleira,
Onde á sombra da Cruz a liberdade
Deve co’os homens repartir justiça.
A Cruz ergamos, sim, a Cruz de Christo,
Signal de redempção; a Cruz que outr’ora
No Capitolio alçada salvou Roma,
Como a arca santa, que salvou das aguas
A antiga geração. Da Cruz em torno

Estas gentes de Deos a luz recebam,
Como em outra éra os barbaros do Norte
A seus pés cahir viram do erro a venda.
Amor, fé, esperança e caridade,
Eis do Cordeiro as armas invenciveis!
Christo com ellas conquistou o mundo;
Nós com ellas os Indios venceremos,
E não com ferro e fogo. Ouvi, oh Lusos,
As palavras do céo, não as do inferno. »

Assim bradavam, mas em balde, os padres,
Santificando as maximas sublimes
Co’o firme exemplo de uma vida pura;
E a caridade e a fé os roboravam.
Não só desertos da Thebaida viram
Milagres de constancia; o justo Anchieta
E o venerando Nobrega aqui deram
De virtudes christãas exemplo novo.
Eram d’aquelles que paixões terrenas
Co’o manto de Jesus não encobriam.