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Maria Isabel


Romance original por Maria Peregrina de Sousa

Dedicado á memoria de minha irmã

(De pag. 272)

XXXIII.

― Caminhei quasi toda a noite. Devo estar desfigurado. Não quero apparecer á minha pupila antes de descançar. Nunca lhe fallei d'amor rasgadamente, hei de fazêl-o agora. Trouxeste para o meu quarto interino roupas e objectos precisos para a minha toilete?

― Trouxe todas as cousas, senhor barão.

― Caminhemos a trote.

Chegaram á quinta. Damião desmontou-se e ia bater ao portão; mas estava já aberto. Isto desagradou-lhe, mas não o assustou ainda. Entraram.

Um barulho e gritos confusos vinham do lado da cosinha, e a uma janella estava Ermelinda embrulhada n'um chaile e toda desgrenhada.

― Não sei o que ha, disse ella, estou a tremer? Ou andam ladrões em casa, ou o diabo.

― O diabo és tu! ― murmurou Damião entrando na cosinha. O motim era á porta que dava para a quinta. O criado abriu-a. Precipitaram-se para dentro Antonio, José e Miquelina. Esta bradou assodada:

― Quem fechou esta porta? Tenham juizo! Que barulho! Está alli o snr. barão nosso amo. A porta havia de ser Gabriel que a fechou.

― Pois não fostes!... disse José, Gabriel anda a sachar nos campos.

― Pra queira Deus ou o diabo, exclamou o lacaio fazendo-se escarlate de cólera, que deixasseis escapar a fidalguinha!

― Não tenha mêdo! replicou Miquelina avivando o lume. Está fechada e trago comigo a chave. Mas são horas de almoçar e...

― Deixa isso, (com mil demonios) e vai vêr se a fidalguinha está lá e o que faz.

― Dorme ou chora... mas eu vou, Antonio, faze lume.

Ella subiu e disse:

― Vê?... a porta está fechada como a deixei quando sahi.

Abriu e entrou.

― Que é isto? ― exclamou José apanhando do chão alguma coisa.

― E' um cachimbo como trazia o demonio do marujo que hontem me perseguiu.

― Está entre a lenha um lenço, disse Antonio, e parece ter estado aqui gente agachada!

― Dormiu então o bebado cá dentro! Arrenego-te purqui-sujo! O homem tem mandinga! Procure bem, senhor Antonio, não esteja mettido n'algum canto.

Damião estava de braços cruzados no meio da cosinha. Tinha impetos de estrangular José e Antonio e de bater em si. Estivera alli um homem que o fez levantar de noite, e elle, que trazia uma pistola, não o matou.

― E foi antão o tal borracho, replicou Antonio que nos fechou a porta para roubar alguma coisa e pôr-se ao fresco, sem que lhe podessemos ser bôs.

― Se não roubasse a rapariga, pensava Damião, tudo o mais pouco se me dá.

Miquelina assomava á porta.

― Então? bradou elle, está lá?

― A porta do quarto está arrombada, e a fidalguinha desappareceu.

― Fugiu?! Desgraçados, que tão mal cumpriste as minhas ordens!.. ― e elle correu a mão pela testa. Tinha uma vertigem.

― A cavallo!.. ― gritou da porta do pateo Amaral com voz fote.

Damião reanimou-se e correu para seu amo, e partiram ambos a meio trote, para examinar para todos os lados, não lhes ficasse a fugitiva para traz.

― Agora, senhora Marculininha, disse Antonio, não temos que guardar pelos modos.

― Por ora ao menos não. Vamos tractar de arranjar o almoço para nós, e para a fidalga velha, que está lá em cima com tanta fome como má cara. Parece uma furia. Disse-lhe que anediasse o topête em quanto eu vinha arranjar o almoço.