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A esperança
305

 

Clotilde


Romance original

Por

Ephigenia do Carvalhal Sousa Telles

I

(De pag. 298)

Era um homem de 60 annos d'idade, pouco mais ou menos; baixo, gordo, olhos pequenos e penetrantes (que elle trazia escondidos debaixo d'uns occulos verdes) e labios grossos, quasi sempre entre-abertos por um estudado sorriso d'amabilidade.

Seu caracter egoista, e avarento tornava-o pouco digno da estima das pessoas de probidade.

Sendo o parente mais proximo de Clotilde, foi nomeado seu tutor. Elle aceitou com gosto este encargo, porque a administração dos bens da sua pupila podia, em parte satisfazer a sua desmarcada ambição.

Clotilde tinha 14 annos, quando perdeu seus paes; tinha um genio altivo, e caprichoso, e o snr. Cunha entendeu que o melhor meio de conseguir tudo o que quizesse era mostrar-se condescendente com a vontade da sua pupila.

Ella desejou viver na casa em que viveram seus pais, e pediu a seu tio para virem habitar na Salgueirosa, ao que elle annuiu.

Clotilde passava os dias instruindo-se: levantava-se muito cedo, e em quanto a familia dormia, ella lia nas obras mais suas prediletas, e assim se entretinha até ao almoço; depois descia para o jardim, na cultura da qual ella achava distracçao; no fim d'algumas horas colhia um ramalhete, e voltava para o seu quarto aonde se assentava ou em frente do seu cavalete de pintura, ou junto da sua harpa de que desprendia suavissimas melodias, ou se debruçaba sobre o vestidor, aonde com mão ligeira bordava, ora uma paisagem, ora um ramo de flores, ora scenas pastoris, tudo fructo dos seus habeis pinceis.

Ao pôr do sol, largava o trabalho, e acompanhada da velha Rosa encaminhava os seus passos ou para o cemiterio da aldeia, ou para alguma cabana aonde eram precisas consolação e esmola, que ella prodigalisava com compassiva mão.

O snr. Anselmo, occupado com a administração da caza nunca acompanhava a sua sobrinha n'estas caritativas pisadas; e fóra as horas da comida poucas vezes se viam.

Como iamos dizendo, o snr. Anselmo appareceu no gabinete da menina quando a velha lhe estava dizendo que havia em caza novidade. Clotilde fitou em seu tio um olhar curioso, e alli disse-lhe:

Eu venho despedir-me de ti, minha filha, por que vou a caza do marquez de Santa Eulalia, recebi hoje uma carta do filho do barão do Franco em que me diz que o seu companheiro Paulino de Sousa está em perigo de vida, e rogava-me o partecipasse ao pai do pobre moço. Vou por tanto dar hoje esta triste nova ao bom marquez; e venho saber se tu queres alguma cousa para a sua interessante filha.

O velho fallava, mas Clotilde já não o ouvia! uma pallidez mortal tinha substituido o colorido de suas faces, e os olhos immoveis e secos deixavam conhecer uma d'essas crises moraes em que nem nos é dado o allivio das lagrimas. O snr. Cunha reparou então no transtorno das feições de sua sobrinha; a esta fraquearam-lhe as pernas, e cahiu sem sentidos em um sofá.

O velho afflicto chamou pela velha Rosa, que no mesmo momento appareceu.

― Veja como está a menina! acaso já lhe deu isto alguma vez?

Primeiro anno ― 1865
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