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vida por si, e que, se tivesse juízo, brevemente podia ver o fruto do seu trabalho. Silvestre dispôs-se a seguir pontualmente os conselhos de seu pai e foi para o cartório. Ali deram-lhe papéis a copiar, autos a coser, serviço em que ele, posto lhe repugnasse, empregava o melhor da atenção que Deus lhe dera. Mas, como tinha muita vez os olhos no ar e o pensamento alhures, errava laudas e laudas, copiava-as de novo, com dispêndio do papel e da paciência do escrivão. O fiel do cartório tomou-lhe ojeriza; ele caricaturou o fiel, e este pequeno incidente ia cortando a fortuna forense de Silvestre. Passou, e com ele iam passando os dias, com grande enfado do pobre menino, que perdia a esperança das vantagens prometidas pelo pai.

Um dia, passando Silvestre pela Academia das Belas-Artes, viu-a aberta; entrou, pediu para ver alguns quadros. A simplicidade do pedido desviou a idéia de qualquer objeção. Demais, a comoção do pequeno era visível; era por força comoção de artista. Quando ele de lá saiu, duas horas depois, tinha o olhar alucinado, o pulso febril, o passo trêmulo. A vista das salas e dos alunos fascinava-o, revolvia-o todo. Vira com os olhos os quadros da Academia; com o espírito viu-o uma infinidade de obras-primas, e sobre todas elas uma que ele trazia em si, inédita, virgem, à espera de ver o sol, de a saudarem os séculos. Essa obra-prima não era a caricatura do fiel do cartório, menos ainda os traslados do escrivão. Silvestre vagou longo tempo pelas ruas da cidade. Quando cansou, refletiu no que lhe cumpria fazer para substituir a pena pelo pincel; e concluiu que era pedi-lo ao pai. Assim disposto, dirigiu-se para casa onde entrou alegre como nunca o vira a família. Entrou; foi ter com o livro misterioso, abriu-o e contemplou com a alma toda. Era uma história da pintura, entremeada de gravuras representando painéis célebres. As mulheres nuas que tanto irritaram o procurador eram umas Vênus e Bacantes, ali inseridas entre as Virgens de Correggio e Rafael. Silvestre fartou-se de contemplar as obras e releu a história de alguns pintores. A ambição não lhe falava na alma; ele não perguntava se o futuro lhe daria as palmas do Dominiquino e Rembrandt. Não; o que lhe pulava dentro era um painel que ele devia fazer, uma idéia, um sentimento, alguma coisa sublime que tinha necessidade de traduzir na tela e legar à imortalidade.

Nesse mesmo dia, Silvestre pediu à mãe que o tirassem do cartório e o mandassem para a Academia. A mãe sorriu tristemente do pedido do filho; mas descarregou a consciência de mãe transmitindo-o a seu marido. O procurador vivera até ali na ignorância do que podia valer a pintura,