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uma alta idéia de generosidade dos homens. O aluno era escravo do mestre; o mestre era pai do aluno.

A ambição de Silvestre — não digo bem — a necessidade de Silvestre era trazer à luz do sol e à contemplação dos homens uma Vênus que ele tinha na cabeça. No prefácio da obra sobre belas-artes que ele comprara ao algibebe lera o rapaz que o cristianismo expulsara os deuses pagãos do céu; Silvestre ignorava o que fossem deuses pagãos, mas alguns retalhos de frases do mencionado livro lhe deram idéias mais ou menos exatas do paganismo. Imaginava ele pintar uma Vênus expulsa do céu, com uma expressão e uma atitude inteiramente novas. O professor, homem de seu tempo, forcejava por arredá-lo de assuntos puramente clássicos; infundia-lhe o espírito do século. A natureza americana, a história moderna, a mesma história pátria, os costumes e as lendas nacionais podiam dar-lhe assunto a um painel superior; Silvestre não abria mão de Vênus. O livro dominava-o; a primeira leitura enfreava-lhe o espírito.

— Percebo, disse-lhe um dia o professor, você tem na cabeça um ideal de beleza, é-lhe preciso transcrever na tela; escolhe Vênus que era a deusa das graças. Vá lá; faça esse quadro; voltará depois aos meus conselhos.

Não é preciso dizer que a Vênus e o escrivão eram inconciliáveis, e que, uma vez metido com tintas não podia Silvestre seguir com a mesma atenção os traslados e as certidões. Assim que o trabalho diminuía, as certidões saíam erradas, e o que mais era, o escrevente gazeava com freqüência o cartório. As coisas chegaram a tal ponto que o escrivão preferia vê-lo ausente. Um dia, porém, demorado um traslado por culpa de Silvestre, não teve o escrivão outro remédio mais que contar tudo ao procurador. Este notara algumas vezes a ausência do filho; mas no dia em que o escrivão lhe contou que as ausências eram multiplicadas e a desatenção do rapaz sem remédio, ficou mais consternado do que se lhe tirassem todas as procurações.

— Maroto! exclamou o pobre pai. Vou dar-lhe uma lição mestra. É a mania dos bonecos! Não cuida em outra coisa.

A lição foi comutada em repreensão graças à intervenção da mãe de Silvestre.

— Hás de ser homem do foro, quer queiras quer não! Perorou José Vargas. O foro é que te há de dar o pão; não hão de ser os panos pintados! Ou trabalharás como eu quero, ou vou meter-te no Arsenal de Guerra. Pelintra! Abusar da confiança de um homem honrado, estragar-lhe os papéis, comprometê-lo quase! Isto suporta-se? Sai! Vai-te embora!

A última palavra era um grito do coração do procurador, em quem o