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"Doida não!" Antes vítima/Outro perfil

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A crítica moralista
 

 

Tem representação no mundo das finanças. E' um tipo masculino de expressão espiritual, linhas fisionómicas de insinuante e suave afectividade. Mas essa expressão tem outros contrastes que revelam uma segunda feição sujeita a alterações de arrebatamento, que chega a ser furor neurasténico no ambiente familiar. Condena implacavelmente a protagonista dêste drama. Não admite para ela outra classificação senão a da loucura consumada. Mas a agravante criminosa que mais ataca, é a que levou uma mulher da alta sociedade à demência de amar um chauffeur.

Invoco os seus principios idealistas inclinados ao socialismo... Reage replicando: «Isso é diferente. Se eu quizer um par de brincos de brilhantes, procuro duas pedras do mesmo quilate para se irmanarem ». E' isso mesmo. Como a verdade triunfa! Um par de brincos ou um par conjugal, carece de semelhança para realizar a harmonia. E é mais que evidente a desharmonia de quilates entre os dois esposos que hoje são adversários, porque nunca foram iguais. Póde haver maior igualdade onde parece existir desigualdade. A selecção das castas não se deve regular pela situação em que se nasce ou se vive. E' uma questão de natureza. A posição a profissão, a revelação de cada sêr, são eventualidades.

Na alma de um pastor póde haver a alma irmã da de uma rainha. E um rei, recamado de honras e pedrarias, pode ser junto dela a algôz do seu destino. O humilde de hoje, pode ser o grande de ámanhã. Fa moral, en nome da qual se condena e se martirisa, não é afinal mais do que uma falsa teia de preconceitos, de mentiras e prejuizos.

Ha só uma moral verdadeira, é a da bondade, medianeira da justiça e da harmonia nos lares junto de esposas e filhos que vivem sacrificados, perpétuando assim a degenerescência das gerações, que é imoral.

Emquanto essa moral pura e ressurgidora não triunfar da imoralidade do egoismo que impera, raros são os homens que teem o direito de condenar a imoralidade dos crimes passionais que a sua psico-neurose-meio-ambiente, alimenta e cultiva a toda a hora.

No entretanto continuo mantendo a mesma estima e espiritual simpatia pelo adversário das minhas teorias, dono de um formoso coração e de um nobre semblante de idealista, apenas atraiçoado pela vibração de nervos doentes e pelas iras que são a bilis contagiosa do epidémico egoismo a que pode chamar-se a árvore de Mal plantada pelo Deus Arhiman, simbolo dêsse mal, em cada lar onde a felicidade e a harmonia sossobram desmoralisando a virtude.

 
 

A que fulminação de criticas se sujeitam portanto as razões aqui expostas!

Vão reviver as leis dos brahmanes que impunham á mulher viuva a pena de ser queimada viva com o cadáver do marido. Exalçar-se-ha o direito bárbaro que permitia atirar o corpo da adúltera ás águas eléctricas do Ganges, ou expô-lo nú nas praças públicas ás vaias e chicotadas da multidão.

Mas é das agonias da dôr e da expiação iniqua que a luz irrompe como arestas de sol dissipando trevas.

Já vai longe a era dos brahmanes. Outra era antes dessa, serviu de farol ás épocas que ressurgem num auspicio de equidade E' a era dos Vedas que divinisaram a mulher mantendo-a no pedestal dum culto reverente para manter firmes e puras as virtudes mais excelsas do seu sexo que converteram o lar num templo de amor.

Toda a inspiração das ideias modernas que rehabilitarão os destinos do sexo maternidade, vem da Índia antiga onde a natureza depositou os germens das civilisações futuras. Concluia a astrologia desse tempo, que todo o planeta é satélite do sol e que a lua é satélite de todo o planeta. O sol era considerado o simbolo do sexo masculino. A lua era emblêma do sexo feminino. Cada qual tem a sua função nos movimentos vitais do Universo. O sol fecunda, mas a lua cria. Se um é alma e luz do diz, o outro é alma e luz da noite. E rebatendo as investigações de hipóteses e cálculos sobre os misteriosos destinos e disposições planetárias da lua, ha quem diga hoje, iluminando-se nas luzes dêsse tempo, que a lua é o verdadeiro Astro da creação. Completando a fecundação solar, ela é na mesma relatividade procreadora o que a mãe é na função da maternidade. A Terra é a filha de ambos. O sol lhe envia o helios gerador; a lua the alimenta as seivas que germinam, dando-lhe o leite dos seus orvalhos, os beijos argênteos do seu luar. E de toda esta relatividade entre a vida de amor cósmico e a vida dos seres humanos, concluiam os Vedas, idolatras da mulher, que ela tinha direito a ser considerada como divinisação pura da luz genésica do amor, a mãe venerada da humanidade, como a lua glorificada pelo culto cosmogónico, das reveladoras fases espiritualistas. E como a lua é a musa da poesia e a lira da inspiração que enternece as almas enamoradas da beleza e do amor; admite-se que a magnética fosforecência, difundida pelas projecções do astro sonhador, contem uma substância fluidica que é o preespirito radioactivo do amor nas suas mais belas expressões de piedade e de ternura, que, sendo mais intensas na alma da mulher, tornarão melhor o mundo pelo altruismo.

 
 

Assentou nestas bases profundas a moral dos Vedas que fez da mulher uma apoteóse do amor. Essa moral foi suplantada por uma reacção desmoralisadora dos códigos brahmanicos.

Os Vedas criam um mundo de lirismo e magia nas divindades mitológicas. Pan e Tebo consagram na ninfa Eco, a mágica dos espaços celestiais que abre as portas do Olimpo às Deusas, às Musas, às Ninfas para matizar o mundo de graça e iluminá-lo de Amor, de espiritualismo e poesia que sublimaria a vida ao sôpro de preclaras virtudes contidas no culto do « Eterno Feminino». Mas veem os segundos reformadores e precipitam a inversão dessa encantadora religião coroada de astros e de mirtos, embalada de harmonias de arte e perfumada de ideais canduras. Baixa o espiritual e sobe o material. Abrem-se os serralhos e os harens. A orgia invade os próprios templos. O culto sagrado da mulher-mãe, simbolo de puras e sublimes virtudes, substitue-se peio culto profano e pagão da cortezã. Ás clamides sagradas da pureza, sucede a embriaguez de lascivias indecorosas. Depois de envelhecida nos harens e desprezada nos serralhos, a mulher é atirada á beira das estradas, vendendo o corpo misero e avariado. Ei-la prostitituida para abrir os lupanares. E o homem, perdido no inferno da lubricidade, cria necessidades de poligamia e excitantes de voluptuosidade contre-nature, que serão a decadência das gerações futuras chegando ao auge nas orgias afrodisiacas da Roma dos Césares e de Nero, que sepultaram a civilisação da Grécia forte, heroica e vitoriosa.

Eis em resumo a história da decadência dos povos com a sua decomposição de libertinagem, de avariose moral e fisica, os seus dramas de adultério que teem origem na direito de poligamia de pais que geraram filhas sensuais; com as suas inversões sexuais que invertem o caracter e a natureza especial de cada sexo, reduzindo-os a uma amalgama de psicologia e de fisiologia que é um labirinto de táras patológicas.

Daqui se conclue que o nivel da moralidade pública baixou desde que se rebaixou a dignidade da mulher e se oprimiu como serva do homem, sujeita aos mais duros maus tratos que plantaram a imoralidade nos lares.

 
 

A ética humana, para ser verdadeira, ha-de partir da educação do homem e da mulher.

Ambos estão fóra do seu lugar, com raras exceções. E fóra do seu lugar estão os desordenados movimentos do maquinismo social.

Revoluções, dôr e imoralidade são o pão quotidiano de uma humanidade que lata desesperadamente para encontrar a felicidade, afastando-se cada vez mais da misteriosa floresta onde permanece mergulhada em sonhos, « A bela Dormente do Bosque », que é mister acordar para criar alma nova[1].

 

E' realmente nas concepções altissimas da familia que as sociedades progridem. Mas não da familia unida por aparentes laços de harmonia, que acabam por quebrar á falta de solidez cimentada no amor reciproco.

 
 

Diz o artigo publicado no Janeiro do dia 14 de Maio, na apreciação do estado mental da doente discutida:

« Os domínios intelectuais foram relativamente poupados, por isso que não existe delirio, nem sensivel deficit da atenção, da memória, da preceção, ou da associação das ideias apenas afectadas por obcessões descritas; mas os domínios da afectividade, foram invadidos por um subito processo de inversão, que leva a doente a odiar os que mais estima. »

Existe realmente o facto dessa inversão?

Póde ser. Mas se existe, não será uma consequência de outra anterior inversão afectiva que causava as manifestações de rispidez e secura de que era frequentemente vitima a acusada de hoje?

Foram os domínios da afectividade invadidos por outros afectos fóra dos laços conjugais?

É que lhes faltou a ternura e o culto a que tem direito uma mulher inteligente e sensivel. Dai o vácuo que foi cavando na alma o sulco de outras emoções. Daí o desconsolo que a minava quando, prodigalisando carinhos, era correspondida com a réplica agreste do « Não me maces », a que se refere o livro « Doida Não! » a páginas 5.

E porque ha de um homem qualquer ter sempre razão quando deixa de dar á mulher a ternura que é o combustível do amor, e se ela a recebe de outra alma, póde exercer impunemente sobre ela uma cruel vingança com direitos de algoz? Esse direito já passou à história.

 
 

Tudo o ideal da mulher delicada e terna, é o amor que faz a felicidade e a alegria do ser amado. Emquanto que, no homem, o ideal do amor, na maioria, com raras exceções, é gozar, possuir e substituir o amor que morre no tédio pelo amor que renasce fora do lar na caprichosa variedade das sensações capitosas da poligamia, que será nas filhas uma tara de adultério.

 
 

Mundo em que as mulheres sofram servidão, é mundo sem possivel renovação. Mães oprimidas só podem produzir gerações de opressores. Pais despóticos, egoistas e libertinos, só reproduzirão raças de déspotas, de sensuais e de ambiciosos.

Eis aqui o mal da raça, o mal da família, o mal do mundo.

 
 

Não é preciso ir álêm deste caso para certificar da soma de sofrimentos que a si mesmo prepara todo o homem que não se esforça por educar a sua fórma de ser conjugal para realisar uma harmonia de vida intima educando, estudando, e amando carinhosamente a esposa.

Bem sei que ha muitos casos em que os homens são vitimas de certos temperamentos de mulheres que estão fóra do seu sexo.

Existe em tais casos uma inversão do caracter especial de cada sexo, como de resto existirá sempre emquanto as condições procreadoras e a degradação sexual fôrem o que são hoje, pondo todos os elementos de reprodução fóra do seu lugar. Bem sei tambem que o sexo feminino esta tristemente desvirtuado pelo impudor de uma garridice tão excentrica como indecorosa, que é hoje o culto mais fútil de tantas mulheres.

E vai sossobrando o culto da mulher bela, forte, virtuosa, que tamanha idolatria mereceu aos antigos povos asiáticos e gregos. Mas é por isso mesmo que é preciso fixar a atenção no que a mulher foi, no que é, e no que ha-de ser, para a restituir ao seu sexo, às suas funções fóra de uma falsa civilisação que a preverte fisica e moralmente, obrigando-a a sair do lar, onde deve ser a semi-Deusa que, encarna a divinisação do Amor, e é Ara santa de todas as virtudes.

 
 

Fóra destes principios vai-se ao encontro da infelicidade. E foi o que aconteceu neste episódio de amores trágicos e o que com outras variantes acontece em muitos lares, com caracter de escândalo público, ou em mistério de dôres anónimas e desenlaces de separação de loucura ou de morte, que se atribúem a outras causas para salvar conveniências artificiais, sem noção da responsabilidade social que o factor representa.

E é por tudo isto que o nome e a vida ilustre do snr. Dr. Alfredo da Cunha e de sua ex-consorte andam sofrendo, envolvidos em fundos desgostos. E' por esses erros de concepção que a sua vida intima vem á discussão pública sujeita a comentários que molestam o amor próprio.

E entram em jogo os piores sentimentos de cóleras, rancôres côres e vinganças, pondo em cheque sentimentos elevados que existem no coração de uma mulher boa e na alma de um poeta, onde por certo a emoção deve sofrer, fazendo sangrar de dôr o coração e o brio pessoal.

Tudo isso é sofrimento que derrota, esmaga, infelicita, desviando do caminho da felicidade e da vitória que os homens buscam alcançar no seu esfôrço constante de triunfo que os torne poderosos, célebres e livres.

 
 

Em conclusão.

Tudo quanto é negativo, atrai o mal que é negativa.

Tudo o que é positivo atrai o bem que é positivo.

O egoismo é uma negação. Logo repele a felicidade.

O altruismo é uma verdade positiva. Logo atrai a felicidade.

Se neste caso o temperamento egoista houvera cedido á natureza altruista; se, rendido o coração do homem ás ternas solicitações da mulher, lhe houvera compreendido as necessidades de alma, intensa e vibrante, teria cultivado em si mesmo toda a gama aperfeiçoadora e genuina dos afectos delicados, tão necessários á felicidade humana como raiz pura e viçosa em que se embevem as seivas da bondade para produzir os frutos bemditos e uma Paz doméstica e mundial.

 
 

É em vista da importância destes problemas, que com tal caso se prendem, que eu me propuz estudá-lo a fundo, dentro da minha modesta capacidade de psicóloga. Qual o meu fim ao provar que não existe razão nem lei natural que torne toda a responsabilidade de um delito á mulher que prevaricou por delitos de responsabilidade comum? E' fazer ver à consciência da sociedade que os seus códigos devem assentar noutras leis de equivalência, para que as leis possam equilibrar o fiel da moralidade pública.

Os laços conjugais, não são grilheta de um sexo, á custa das regalias de outro sexo.

A família é a síntese do amor quando o amor a sustem e a perfuma como uma grande e mimosa flor aberta a todas as auras da virtude, rociada de orvalhos celestes que são consolo e repouso, afecto e harmonia, beleza e bondade.

E', emfim, o pedestal do progresso quando inspirado numa alta visão espiritual, como nos poemas cosmagónicos da ultra-espiritualissima familia Egipcia inspirados nas revelações de Zaroastro, e a cujo sôpro creador se formou o espirito colectivo de um povo idealista embevido nos resplendores da arte e da natureza, embalado em ritmos de música, de poesia, de amor e de beleza, ao som cadente das maviosas citaras, sob ondas de incensos perfumados e celebrando maravilhas de estatuária cinzelada em mármores pantélicos, ou hexámetros sublimes burilados em odes imortais.

 
 

Tambem nos salões de S. Vicente se celebrou a arte, pura na poesia e na música. Mas êsses festins não consagravam na apoteose da arte a apoteose do amor conjugal, porque eram precedidos, muitas vezes, de prelúdios de lágrimas vertidas pela maguada sensibilidade de uma esposa[2].

 

E' muito diferente justificar um facto para não degradar um sexo, para defender princípios que são a segurança fundamental da moral verdadeira, ou aceitar êsse facto como principio e base de uma moral de amor livre.

Penso que a forma de organisação mais moral das sociedades, é a harmoniosa organisação da familia. Mas não nas condções em que hoje está constituida. Conheço milhares de mulheres que são verdadeiras escravas como esposas, como irmãs, como mães e como filhas.

E tenho três netinhas que são a luz dos meus olhos e o alento do meu dilacerado coração. A moral da virtude que tanto almejava pôr em prática para lhes formar um caracter, um coração e um entendimento robusto num corpo vigoroso e belo, está demasiadamente comprovada e bem sinceramente revelada num livrinho a que dei p título «Corações Infantis». Que o destino seja o padroeiro dessa aspiração para que a vida estremecida de êsses três pequeninos e angélicos amores não seja a continuação do «Calvário da Mulber» que a avó tem sofrido para cultivar no mundo ideias de justiça. E que jámais a condura das suas alminhas seja envolvida em tragédias que deprimem a dignidade das mulheres e dos homens, expondo-as a opróbios, amarguras e tormentos infinitos.

Haverá, porém, quem diga que ensinei as mulheres a apaixonarem-se pelos serviçais, defendendo a paixão e a pessoa de um chauffeur?

Haverá quem diga que eu exalto a familia e defendo o adultério, ou o admito na desigualdade de gerarquias em que se deu o drama que o público vem comentando?

Não defendo pessoas nem paixões. Defendo sentimentos e princípios.

Ora, fixando os olhos nos tormentos e inclemências porque estão passando os dois protagonistas principais do drama, com certeza as mulheres, taradas pelas consequências da poligamia, da educação ou do meio ambiente, terão no caso uma tremenda lição.

E depois, nem todos os chauffeurs estão no caso dêste, nem todas as mulheres são esta especial organisação. Assim como nem toda a flora são rosas, nem todos os minerais são diamantes.

Tambem de vez em quando se desprendem da órbita celeste os metéores que servem de estudo aos astrólogos. E assim, no girar dos destinos humanos, há creaturas que já trouxeram igualmente da orbe planetária o seu karma ligado à existência presente e futura.

Essa lei resiste a todos os decretos humanos com uma força que escapa á vontade dos sêres, e que põe na boca de uma mulher enérgica estas expressões: — « Não há manicómios, não há cadeias, não há leis, não há homens que nos separem; porque, quanto mais imaginam fazê-lo, mais nos aproximam.

« Quando dois entes sofrem um pelo outro o que nós temos sofrido, apenas a morte tem esse poder, e para isso é necessário, ainda que para álêm da morte nada exista[3] ». Assim creio que restará apenas aos homens o direito de desejar que o destino absolva ou castigue as vitimas da própria fragilidade.

  1. Do livro « Se queres Viver Desperta e Luta »
  2. Página 167 do livro «Doida Não!».
  3. Pagina 234 do livro « Doida Não! »