40 anos no interior do Brasil/Os Fanáticos

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Os Fanáticos


"O trem não poderá seguir em frente!”, anunciou-me o diretor da estação ferroviária.

"E por que motivo?”

“A Estação São João, que fica a duas paradas, informou que os Fanáticos provavelmente assaltaram Calmon, a parada seguinte”.

“Provavelmente, provavelmente! O que isso quer dizer? Eu preciso saber exatamente o que a estação informou!"!

“Está bem, o diretor da estação de Calmon telegrafou apenas três palavras, e então o aparelho ficou mudo a todas as tentativas de chamadas posteriores."

"Quais eram as palavras? Fale de uma vez!"

"Eu já estava mesmo por dizer; mas o senhor não me deixa terminar de falar."

"Pois então!”

“A estação de Calmon telegrafou para a estação de São João: 'Fanáticos aqui, eu...' E nenhuma palavra a mais".[1]

O pequeno e inquieto diretor da estação calou-se exausto, enquanto eu começa a pensar na situação. Portanto, os Fanáticos! Um fenômeno bem peculiar na vida do povo brasileiro! Muito sangue já foi derramado por causa deles, e muito dinheiro já foi gasto para trazê-los à razão. Segundo a concepção europeia, poderíamos talvez dizer que se trata de uma seita religiosa; mas não é bem assim. O povo brasileiro vai muito à igreja, mas não é religioso em sentido mais profundo; seu sentimento religioso dispara, ele quer ver milagres, milagres todo dia, e literalmente espera por milagreiros, os quais acolhe, facilmente convencido e sem qualquer desconfiança. Além disso, o povo é muito supersticioso, o que bem faz com que velhos mitos ainda assombrem a maioria das mentes e se perpetuem, junto às crenças dos nativos, nos vários costumes. Dessa confusão de reminiscências de antigos cultos surge a peculiar mistura religiosa estranha a nós e que, para "milagreiros", constitui um solo extraordinariamente fértil.

Esses milagreiros, conhecidos como monjes,[2] são, de modo algum, trapaceiros ou pessoas inescrupulosas que encobrem suas pretensões materiais por meio de subterfúgios religiosos, mas sim acreditam eles mesmos em sua missão divina com uma convicção inabalável. Muitas vezes eles sofrem de epilepsia. Têm visões, sonhos premonitórios, nos quais, segundo o que se diz, aparece a Virgem Maria ou São José ou até mesmo o próprio Deus, com o intuito de transmitir-lhes a missão de melhorar o mundo. Eles relatam esses sonhos milagrosos aos parentes e conhecidos, os quais organizam então, como é de costume, uma grande "rezada”, assim chamado o momento de reza, a partir do que tem início geralmente uma pequena comunidade. A notícia do surgimento do novo monje se espalha então com extrema rapidez pelas redondezas e mais além. Não é raro ser o acaso favorável ao milagreiro, logrando curar alguns supostos doentes tocando-os com as mãos; a cura se encontra certamente, em boa parte, também na imaginação do doente, o qual se deixa facilmente sugestionar pela forte personalidade do monje. E então estão consolidados fama e nome do monje. Aí chegam, de todos os cantos, devotos e doentes; a água com a qual o santo lava seus pés é vendida como mezinha e vende bem; os parentes com faro para os negócios tomam posse desse novo mercado e o exploram de todos os modos possíveis. Embusteiros e criminosos procurados juntam-se à multidão, esperando sumir entre a corrente de pessoas, para que então, purificados, por assim dizer, possam estar prontos para novos crimes; eles aterrorizam a região a seu modo, exigindo impostos em nome do "santo", e, quando não há mais o que obter nos arredores, instigam a "comunidade" a se deslocar a fim de converter também as pessoas que vivem mais afastadas dali. O santo é habilmente moldado e influenciado, até que um dia diga que recebeu uma ordem dos céus de converter todo o mundo. Isso serve, na maioria da vezes, como um sinal para a peregrinação da comunidade. A procissão inicia. Quem não concorda em participar é ameaçado com uma pistola sobre o peito.

A população, cuja região é atingida pela marcha, precisa entregar todo seu rebanho e suas provisões, a fim de alimentar os iluminados, e, voluntaria ou involuntariamente, se junta à comunidade, a qual cresce em efeito bola-de-neve até que finalmente o governo envia forças policiais em sua direção. Mas o que pode a polícia brasileira na mata! Os Fanáticos geralmente a colocam a correr ou a massacram até o último homem. Devido à sobrevivência aos perigos em comum, a comunidade fica cada vez mais unida, a primeira vitória é considerada um sinal vindo dos céus e os motiva a cometer novos feitos. Então o governo envia o exército, mas, como é típico, com pouco contingente; por isso que demora anos até que muitas dessas revoltas sejam dissolvidas.

É diante dessa bola-de-neve crescente que nos encontrávamos então. O diretor da estação, que não havia saído do lugar, olhava-me interrogativo, os passageiros empurravam-se sobre a estreita plataforma da estação e tornavam-se impacientes.

"Por que o trem não seguirá adiante? Por que sempre tanta demora?"

"Meus senhores, os Fanáticos ..."

“Ah, os Fanáticos!" gritava um homem gordo do Rio de Janeiro que gesticulava mostrando sua mão adornada de joias. "É tudo só conversa-mole da ferroviária, que novamente tenta fugir às suas obrigações. Mas eu paguei pelo meu bilhete e pela cabine e eu mesmo vou telegrafar ao ministro dos transportes, o qual é um grande amigo meu."

Eu nem me dignei a lhe lançar qualquer olhar, mas sim acenei para o diretor da estação para que fôssemos até a sala do telégrafo.

"Entre em contato com a Estação São João!", ordenei ao telegrafista.

A estação respondeu.

"Você não recebeu mais nenhum sinal de Calmon?"

"Não, nenhuma palavra."

"E sabe de alguma novidade?"

"Do lado de onde fica Calmon dá para ver que há fogo, pode-se perceber bem a luz na noite escura; os Fanáticos possivelmente ameaçaram colocar fogo nos depósitos de madeira da Brazil Lumber Company. Fala-se de quatro milhões de pés quadrados."

“Algo mais?"

"Não, só isso."

Eu ordenei então ao telegrafista que me colocasse em contato com a Estação Central em Curitiba. Após pedir para falar com o diretor geral, comuniquei-lhe rapidamente sobre a desagradável situação e perguntei de que modo eu deveria proceder. A notícia o surpreendeu, ele não encontrou imediatamente uma solução e solicitava que eu, por minha vez, desse alguma opinião. Eu então propus que deixássemos um trem de serviço ir antes do trem de passageiros, em um intervalo de vinte minutos deste, de modo que os passageiros só partiriam quando recebessem a mensagem de que não havia perigo pela frente. Eu mesmo me ofereci para integrar a tripulação do trem de reconhecimento.

"De acordo", soou o telégrafo em resposta, e eu prontamente organizei o trem de serviço, o qual em pouco tempo estava preparado. Alguns homens foram voluntários para a viagem, sobretudo um tanto perigosa, em direção ao incerto, eram dois estadunidenses, dois alemães, um polonês e um brasileiro com descendência francesa. Nós estávamos sim todos com nossos revólveres de costume, mas, no restante, sem armas.

O trem partiu. Era uma noite escura. No momento em que a visão se acostumou à escuridão da noite, tornou-se possível diferenciar os contornos do céu das copas melancólicas dos pinheiros (araucaria brasiliensis), as quais davam uma forma típica à floresta da serra. Pela sinuosidade íngreme e interminável ziguezagueava o trem acima, o fino véu da neblina noturna envolvia os desfiladeiros, e o maquinar e o tinir do trem tragavam o flauteado dos pássaros noturnos, o qual às vezes se impunha. Fantasmagoricamente e quase que sem fazer barulho, os pássaros, amedrontados, lançavam-se até bem perto do trem, para, então, desviando-se pela direita em uma acrobacia angulosa, mergulharem novamente na escuridão. O grande farol na ponta da locomotiva bruxuleava devido às centenas de mariposas que o cercavam.

Assim bramíamos no incerto adentro. Passamos por duas estações. Tudo na mais perfeita ordem. Mas, ao chegarmos em São João, já logo na entrada nos deparamos com uma gritaria infernal, e, assim que o trem parou e eu desembarquei, fui subitamente rodeado por uma chusma aos berros, a qual de todos os modos bramava e vociferava que o trem não poderia seguir de jeito nenhum, e sim que as mulheres e as crianças deveriam ser levadas para Porto da União. Todos homens estavam armados com espingardas Winchester e quase que sem exceção completamente bêbados. Um deles colocou a boca do cano da arma sobre meu peito e coaxava que atiraria em mim ali mesmo, caso eu não pusesse o trem à disposição imediatamente. Decidido, rapidamente arremessei o cano da espingarda para o lado e gritei em meio à horda ondulante que flamejava: "Mas o que é que vocês querem? Estão todos bêbados? Não há pelo menos um entre vocês que ainda esteja lúcido?"

Aí um velho fazendeiro de barba branca avançou dizendo: "Senhor Roberto, eu estou sim totalmente sóbrio”.

"Ah", disse eu aliviado, "é bom que pelo menos um de vocês ainda preserve o juízo. Mas agora calem a boca por um minuto e me deixem explicar uma coisa! Este trem aqui vai seguir adiante de qualquer modo; pois eu vou com ele buscar as mulheres e crianças que estão nas Casas de Turmas (moradias dos trabalhadores da ferrovia que ficam ao longo da via, a uma distância de oito quilômetros) e esperam por socorro. Mas depois deste trem vem propriamente o trem de passageiros, que estará à disposição e com ele vocês poderão levar as mulheres e crianças caso o perigo se torne maior devido aos Fanáticos."

As pessoas ouviram em silêncio por um momento; mas então clamaram: "Pelo amor de Deus, você não pode seguir em frente, você estará indo em direção à morte certa! Abra seus olhos! Lá está Calmon! Não vê o brilho do fogo? Ou você pensa que o sol está nascendo agora, no meio da noite?"

"Eu estou cumprindo o meu dever", respondi em tom propositalmente seco, "que é buscar as mulheres e crianças. Quem de vocês tiver coragem pode vir junto. Não custa nada ajudar!"

Todos ficaram quietos observando; apenas o velho voltou a falar depois de uma pausa e suplicava: "Senhor Roberto, o senhor vai morrer, certamente morrerá se prosseguir!"

Eu não tinha nem tempo nem vontade para continuar prestando atenção a suas palavras de medo, e entrei então decidido na sala do diretor da estação.

"Boa noute! Nada de novo?"

“Nem um sinal de Calmon. Mas, de Nova Galícia, o diretor da estação está perguntando se o trem de passageiros pode seguir até aqui."

"Bom, ele pode vir!"

O telégrafo continuava em operação enquanto eu novamente saía da plataforma. O trem estava pronto para partir. Umas últimas palavras receosas "Passa bem, volta ileso!", e então partimos, sem saber o que nos esperava nos próximos minutos.

Eu ordenei ao maquinista que parasse em cada Casa de Turma; além disso, proibi que o apito da locomotiva fosse acionado, para que permanecêssemos o máximo de tempo possível sem chamar a atenção. Essas Casas de Turmas não são paradas de trem no sentido que damos, mas são sim grupos de pequenas e simples casas de madeira nas quais moram uma turma de cinco a dez trabalhadores com um capataz. Cada turma deve zelar por uma distância de sete a dez quilômetros de trilho. Pois todas estações ficam quinze a trinta e cinco quilômetros distantes umas das outras, de modo que é realmente impossível deixar que a ferrovia seja cuidada pelos trabalhadores das estações.

Era mais ou menos meia-noite quando paramos na primeira dessas Casas. As pessoas, que estavam sem saber de nada, vieram completamente transtornadas de seus cômodos. Foi-lhes dito que se preparassem para que as mulheres e crianças embarcassem no trem quando ele voltasse. O mesmo se repetiu em todas as Casas.

A paisagem havia se alterado nesse meio-tempo. Nós estávamos na serra, cerca de quinhentos metros de altitude acima de Porto União. O terreno ondeado se espraiava por ambos os lados da estrada de ferro. As escuras silhuetas das florestas de pinheiros recuavam distantes. Em contraste, pudemos perceber com uma precisão crescente o brilho do fogo de Calmon queimando, embora estivéssemos no mínimo quinze quilômetros distantes de lá. Devagar seguíamos adiante. Depois de percorrido aproximadamente um terço do trajeto, o calor já se fazia sentir claramente no lado do trem virado para o local que queimava. Na última Casa, a qual ficava na floresta e distante pouco mais de cinco quilômetros do fogaréu, encontramos um trabalhador polonês que nos disse ter testemunhado o ataque dos Fanáticos. Eu, evidentemente, pedi-lhe que narrasse o acontecimento.

“Ah, Panje,[3] eu não posso dizer muito, já que fugi o mais rápido que pude."

"Mas você deve ter visto alguma coisa! Onde está o diretor da estação?"

“Ele está morto, Panje, e o inspetor também. Eram uns cinquenta homens que chegaram correndo e berrando 'Viva José Maria!' ou 'Viva Monarquia!'; eles mataram todos a tiros.”

“Sim, mas todos não; você ainda está vivo!”

“Sim, mas eu fugi depressa; os outros ficaram por lá, e aí eu vi o diretor da estação morrer próximo à floresta e o zelador morrer em sua casa, e então os Fanáticos incendiaram as provisões de madeira.”

“Mas então como você conseguiu ver tudo isso se foi embora rapidamente?”

“Ah, Panje, mas acontece que eu voltei sorrateiramente depois quando já estava pegando fogo. Saltitavam ao redor da pilha de tábuas em chamas como se fossem demônios negros.”

“Vocês não querem voltar no trem levando mulheres e crianças?”

“Ah, não, Panje! Eles não fazem mesmo nada contra nós. Eles já estiveram aqui mais vezes e compraram víveres. Nós acreditamos que a intenção deles seja mesmo destruir a provisão de madeira da Lumber Company.”

“Certo, vocês façam o que quiserem!”

Então eu fui ter com os meus companheiros, os quais consultei sobre qual decisão dever-se-ia tomar. Nós acordamos que as mulheres e crianças deveriam embarcar nos vagões, enquanto avançaríamos com a locomotiva. Devagar e quase sem fazer barulho, a máquina deslizava pelos trilhos em direção à escuridão misteriosa da floresta. Ninguém falava uma palavra, mas cada um empunhava seu revólver e se preparava para usá-lo. Eu esvaziei a caixa de balas, que comprei em Porto Único, no meu bolso da jaqueta.

Depois de algum tempo, entramos em uma clareira, a qual distava agora apenas dois quilômetros de Calmon, e aqui víamos o fogo ardente diante de nós. Os feixes de chamas atingiam o alto do céu, e a fumaça negra subia como um enorme fogo sacrificial. A cena era de uma beleza tão horripilante e era tão sublime, que pareceu impressionar até mesmo o maquinista. Pois ele desacelerou com a alavanca do vapor, de modo que a máquina parou depois de pouco tempo. Calados, observávamos o mar de fogo, do qual nos parecia impossível nos aproximarmos e cujo ardor parecia querer nos repelir dali. Um instante depois, o brasileiro disse, com a voz marcada pelo nervosismo:

“Nós vamos mesmo entrar neste inferno?”

“Claro que vou entrar!”, gritou o estadunidense exaltado, o qual era o gerente da serraria. “Eu tenho que ver o que ainda pode ser salvo!”

“A morte está lá à nossa espera!”, exclamou o brasileiro.

“Que Calmon está queimando, isso nós podemos ver”, disse o polonês.

“Mas o que pretendemos nós cinco, estando mal armados, contra os Fanáticos, os quais, em todo caso, já estão à espreita do trem de passageiros a fim de atacá-lo? E o que nós vamos fazer para combater o fogo?”

Para dar um fim à conversa-mole, propus que fizéssemos uma votação, o que acabou sendo consenso. O estadunidense foi o único que era a favor de seguir em frente; todos os outros foram contra.

“Portanto, voltemos!”, ordenei, e vagarosamente nos voltávamos de novo em direção à escuridão da floresta.

A coragem é uma coisa estranha. Refletindo racionalmente, seria considerado de fato loucura ir até Calmon, onde com toda certeza éramos esperados pelos incendiários assassinos. Mas nós não teríamos chegado a essa reflexão não fosse a parada automática do maquinista e não fosse a pergunta do brasileiro sobre o que deveríamos fazer. Teríamos ido em direção à morte certa, como pudemos ficar sabendo mais tarde.

Sem contratempo algum, atingimos a última Casa de Turma, acoplamos a locomotiva diante dos vagões e fizemos o trajeto de volta, silenciosamente. Em todos ainda estava viva a agitação da importante decisão, e nós estávamos todos alegres de ter escapado a esse perigo sem que por isso tivéssemos de censurar de alguma maneira nossa coragem viril. Trouxemos todas as mulheres e crianças das Casas de Turmas a bordo. As pessoas, agitadas, faziam uma algazarra que se supunha ser a de um navio de emigrantes. Nisso já eram quatro horas da manhã. Em São João, onde todos dormiam o mais profundo sono, o diretor da estação me perguntou se poderia ir junto já que o telegrafista ficaria. Eu neguei, porém, ao bravo que viesse junto, uma vez que, em situações perigosas, cada homem pertence ao seu posto. Nós encontramos, em Porto União, o trem de passageiros, o qual já havia retornado muitas horas antes.

Nós estávamos mesmo muito exaustos devido às agitações anímicas passadas e tínhamos necessidade de descanso. Mas não dava para pensar em dormir. Pois agora era preciso se ocupar com ordens e telegramas. Os Fanáticos nos enviaram, em seu modo costumeiro, uma mensagem, fixando-a a uma vara quebrada e enfiando-a na terra entre os trilhos da ferrovia entre as estações. O conteúdo desse bilhete dizia mais ou menos o seguinte:

"Nós, José Maria, enviados pela graça da Santa Virgem e do São Sebastião a fim de melhorar o mundo e reinstituir a monarquia, avisamos para as pessoas da ferrovia que devem abandoná-la imediatamente; pois, em dois dias, depois que destruirmos São João, iremos em direção a Porto União, o qual também será aniquilado. José Maria."

Eu entrei na hora em contato com São João para saber se estava tudo tranquilo, a que recebi um sim como resposta. Era por volta das onze horas da manhã. Às treze horas, porém, o telégrafo insistia em não responder, e não era mais possível obter uma resposta. Assim, os Fanáticos cumpriram o prometido em relação à destruição de São João, e nós podíamos, portanto, esperar que viessem até nós em Porto União em dois dias! E então teve início um trabalho febril a fim de colocar a cidadezinha em posição defensiva. Recebemos um contingente de cinquenta soldados da vizinhança, e também os civis se armaram. Quem podia de alguma forma ia embora nos trens, de modo que a ferrovia se tornava um lucrativo negócio junto aos desagradáveis acontecimentos.

Passaram-se dois dias sem que se pudesse ver qualquer Fanático. Porém de repente surgiu o diretor da estação de Calmon como se tivesse voltado da morte! Nós não acreditávamos no que víamos, e já havia o rumor de que se tratava de um milagre. Sujo, sangrando e sem quepe, com os olhos fundos, vinha cambaleante e jogou-se na cadeira colocada para ele. Recebeu logo todos refrescos imagináveis, de modo que pôde recuperar as forças depois de algum tempo e já se encontrava em condições de relatar o que ocorrera.

“O que aconteceu em São João?”, perguntei.

“São João queimada, telegrafista morto, diretor da estação ferido!”, exclamou ele.

“Mas o que são dos nossos nas Casas de Turma?”

“Em torno de vinte mortos; o resto fugiu para a floresta.”

“E como você chegou até aqui?”

“Em Calmon, tiro no braço, a noite na floresta, a pé até São João... Lá já estavam os Fanáticos, tiro com bala de Mauser através do pulmão, a pé pela floresta até Galícia, então com o vagonete da ferrovia até aqui.”

“E do que viveu nesses três dias?”

“De raízes e frutinhas silvestres.”

“Qual é, mais ou menos, o número de Fanáticos?”

“Segundo a senhora Schiena, cujo marido eles mataram diante de seus olhos, são 194.”

“A senhora Schiena está aqui?”

“Sim, com seus três filhos.”[4]

Para poupar o coitado, não o interroguei adiante, mas sim deixei-o aos cuidados do médico. Então levantei-me a procurar a senhora Schiena. Ela era uma italiana determinada que, com o seu marido, tivera uma pequena loja e um restaurante em São João. Assim que me viu, levantou, lamentosa, as mãos e clamou: “Maria santíssima! Senhor Roberto, que desgraça!” E, sendo interrompida pelo constante soluçar, narrava o desenrolar dos fatos:

“Há dois dias por volta do meio-dia, os Fanáticos se esconderam no mato alto e avançaram sorrateiramente até estarem a uns trinta metros da Estação São João, onde evidentemente não havia ninguém no posto de vigia. Eles atacaram a estação fazendo uma gritaria ensurdecedora “Viva José Maria!”. O grupo de defesa que havia ficou tão surpreso e perplexo, que de modo algum lutou, apenas foram dados alguns disparos; os Fanáticos empunharam imediatamente seus pesados facões e entraram dando golpes sem piedade. Nisso morreu mais ou menos metade das pessoas, enquanto que o resto conseguiu escapar. Todos que foram capturados também foram mortos. Meu infeliz marido estava entre eles. Eu me lancei aos pés do chefe e supliquei-lhe que poupasse meu marido, o pai de três crianças ainda pequenas. Ele disse que também tinha pena, mas que teria que cumprir os desígnios do santo de que toda criatura do sexo masculino acima de quatorze anos deveria ser exterminada. Um sinal… e meu homem, de joelhos, foi assassinado diante de mim e das crianças. Fui obrigada então a preparar café da manhã para os chefes e a confeccionar fitas brancas para os chapéus dos Fanáticos, eram duzentas fitas. Porém, depois de distribuí-las, ainda restaram seis, de modo que deveriam ser, portanto, cento e noventa e quatro homens. Depois que o bando selvagem ficou satisfeito, consegui fugir com meus filhos para a floresta, pela qual eu pude chegar até aqui depois de uma marcha terrível.”

O que eu deveria dizer como consolo àquela desafortunada mulher? Nessas situações, lindas palavras não têm efeito algum. Além do mais, nenhum minuto podia ser desperdiçado. Profundamente abalado, eu a abandonei para conduzir os preparativos para a recepção daqueles monstros. Não seria mesmo possível contar com o sentimento e a misericórdia daquelas pessoas desumanas: então teria que ser assim - matar sem dó nem piedade.

Entretanto… eles nunca chegaram e nunca soubemos por que motivo. Talvez a consciência os tenha despertado para a razão. Mas do ocorrido pode-se concluir que mesmo pessoas pacíficas, como são os brasileiros, podem se transformar em bestas, se o fanatismo desmedido desbanca a civilização e compromete o verdadeiro homem.

 

  1. Os ataques às estações de Calmon e São João da Estrada de Ferro São Paulo - Rio Grande (EFSPRG) ocorreram entre os dias 05 e 06 de setembro de 1914. Análise detalhada dos mesmas encontra-se em ESPIG, Márcia Janete. Personagens do Contestado: os turmeiros da Estrada de Ferro São Paulo - Rio Grande (1908-1915). Pelotas: Editora Universitária/UFPel, 2011. p. 234-251. (NdH)
  2. Refere-se às figuras conhecidas na região como "monges” e que tiveram papel importante na deflagração da Guerra do Contestado. O termo monge, nesse caso, não se refere a uma formação religiosa tradicional, mas a uma espécie de título destinado a homens “santos”, curandeiros ou bons conselheiros. Farta bibliografia estuda o fenômeno dos monges João Maria que percorreram a região. Vide MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). Campinas: Ed. da Unicamp, 2004. p. 163-198. O monge que mais diretamente se relacionou ao conflito do Contestado foi o monge José Maria, que Helling refere mais adiante. Em sua visão, tais figuras seriam a porta de entrada para as práticas religiosas que denomina “fanáticas”, que por sua vez levariam ao banditismo. O próprio termo “fanático” carrega um peso negativo e preconceituoso, de tal forma que os estudos atuais sobre o assunto evitam seu uso. (NdH)
  3. Forma de tratamento de origem eslava, correspondente a senhor. (NdT)
  4. O assassinato do comerciante Luís Schena chamou bastante atenção na época. Dono de um hotel e uma casa comercial na estação São João, segundo relatos foi morto a facão na frente da esposa e filhos. Grafado nas fontes de diferentes maneiras, o formato “Schena” foi utilizado por uma filha em uma entrevista, muitos anos após o ocorrido. (NdH)

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