40 anos no interior do Brasil/Fanáticos em São João

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Fanáticos em São João


“Fanáticos em São João!”, berrou meu ajudante, abrindo com violência o meu escritório e permanecendo parado na porta com o gorro ainda na cabeça, a enorme boca de mulato escancarada, os braços estendidos e os dedos das mãos esticados.

“Você não quer ter a bondade de fechar a porta e tirar esse gorro?”

“Sim, mas os fanáticos...”

E então um movimento autoritário para a porta fez com que ele a fechasse e tirasse o gorro, mas daí começou a tagarelar que agora os fanáticos estariam falando sério e teriam enviado uma declaração dizendo que fuzilariam todos os soldados, tomariam a cidade de Porto, onde nos encontrávamos, converteriam todos nós à sua crença e quem não se deixasse converter também seria fuzilado.

Eu disse-lhe que “nós da ferrovia” não precisaríamos temer nada por enquanto e quando chegasse o momento deixaríamos nos converter por uns oito dias, até os fanáticos serem expulsos.

“Mas seu Roberto! O senhor não sabe que cada um que foi convertido é posto na linha de frente quando o tiroteio começa. Para que eles possam ver se a conversão ainda permanece!”

Este era, com certeza, um desagradável meio de provar a autenticidade da fé! Mas eu zombei do meu auxiliar, pois por enquanto os fanáticos ainda faziam uma propaganda pacífica da sua religião maluca. Mas parecia que a coisa tinha tomado uma cara totalmente diferente agora, até porque quando o capitão Matos Costa entrou na minha sala, ele pode confirmar o relato do meu ajudante, ainda que de uma forma um pouco diferente. E também pediu que eu preparasse um trem-extra dentro de duas horas para que fosse a São João ver quais boatos eram realmente verdadeiros. É que hoje de manhã, quando ainda estava na cama, recebeu uma carta com uma ortografia horrível, na qual o frei José Maria[1] o comunicava que já era hora de se converter ou deixar a cidade imediatamente; pois a Virgem Maria o ordenou a agir e restabelecer a fé pura. O próprio Matos Costa não acreditava que as coisas estivessem tão ruins, mesmo assim viajaria para São João com seu escasso pessoal (apenas cinquenta soldados armados) para conversar com os fanáticos. Eu o adverti que nunca devemos subestimar o inimigo e que os sujeitos, como eu ficara sabendo, estavam armados com Winchesters e Mausers que haviam sido fornecidas pelo partido monarquista. Ele riu com desprezo e contou que já havia sido informado que os fanáticos queriam atacar; visto que fora sozinho ao acampamento, surgindo de repente no meio deles e, após conversarem educadamente, o deixaram partir sem machucá-lo. Então falamos sobre a montagem do trem e me ofereci como veterano para assegurar-lhe que de certa forma o trem protegeria os soldados abrigados dos tiroteios: só que isso levaria pouco mais de duas horas, motivo pelo qual ele recusou minha proposta. Então convidou a mim e ao meu colega, o engenheiro Gräml, para acompanhá-los na viagem, e concordamos desde que não chegassem ordens oficiais que não nos permitissem deixar a cidade. Isso era 1914 e nossos ânimos estavam tão instigados pelos feitos dos nossos irmãos heróis da Alemanha na longínqua Europa que também gostaríamos de empreender algo arriscado para manifestar nossa coragem alemã, já que não nos era possível ir à Europa, porque os navios de guerra britânicos bloqueavam o oceano. Daí eu telegrafei imediatamente para o diretor da ferrovia e pedi permissão para acompanhar o trem, contudo ele me respondeu que isso seria impossível, pois cinco trens com soldados de Ponta Grossa já estavam prontos para partir, e eu, como chefe de operações, não poderia me afastar de Porto. Mas Gräml poderia ir. Então eu dei rapidamente a ordem para o referido trem-extra, e depois fomos juntos para a estação vermos os soldados do capitão Matos Costa que deveriam acompanhar a viagem. Minha Nossa! Que aparência tinham aqueles homens! Os uniformes, antes cor caqui, agora imundos e rasgados, muitos descalços, mas as espingardas Mauser em bom estado. O capitão quis manter a má impressão que o seu esquadrão nos causou, pois se queixou amargamente de seus superiores que o haviam enviado há meio ano aqui para a selva e, apesar de suas frequentes reclamações, não lhe remetiam o material bélico necessário. O próprio pessoal, aliás, por mais magro que estivesse, parecia forte e tenaz e aparentava estar tão despreocupado e alegre como se estivesse indo fazer um divertido passeio.

O trem estava pronto: a locomotiva, um vagão de carga, três de passageiros e um vagão especial da direção da ferrovia, o qual possuía uma grande plataforma de observação aberta. Perguntei novamente ao capitão se ele não queria por pelo menos a locomotiva atrás do trem, para que pudesse retornar rapidamente em caso de fracasso da expedição, pois o grande limpa-trilhos ou saca-bois, o qual se encontra na frente da locomotiva, arrastaria dormentes e pedras que fossem colocados pelos fanáticos nos trilhos. Mas ele zombou de mim e pediu que fizesse tudo como ele havia pedido. Os soldados subiram nos vagões e Matos Costa se sentou no vagão especial com o meu amigo Gräml e dois americanos que queriam observar as coisas. Eu ainda argumentei com o capitão que em todo o caso poderia tratar de enviar um segundo trem em meia-hora com um médico e equipamentos de primeiros-socorros.

O trem partiu e se arrastou serra acima em sinuosas curvas, em trinta quilômetros foram quinhentos metros de subida. Uma neblina esparsa se prendia como véu nas copas das árvores, que olhavam para frente de cima dos profundos vales. Os soldados estavam cantando, um deles puxou um violãozinho e dedilhava melodias monótonas cujos refrões os camaradas acompanhavam cantando pra dentro. Alcançou-se a primeira estação, ninguém à vista, já que eu, dias atrás, havia retirado todo o pessoal. A locomotiva foi abastecida com água tanto quanto possível, pois não se sabia se mais acima as caixas d’água não estariam vazias. Então seguiram. Depois de uma hora alcançaram o topo e lá se estendia um campo ondulante que, ao longe, divisava com a sombria floresta de araucárias, enquanto que, mais próximos dos trilhos, espessos arbustos quebravam a uniformidade do campo. A cantoria do pessoal cessou, o capitão e Gräml inspecionavam o campo enquanto os americanos calmamente preparavam uma larga cartucheira para seus enormes revólveres Colt. A locomotiva deslizava num ritmo lento; não havia ninguém mais por perto; e mesmo o gado parecia desaparecer naquela superfície gramada. Mas de repente um grito cortou o silêncio, e em uma picada a uns cem metros um homem galopava gritando e chamando. Com o estrépito do trem não se podia entender muito bem o que ele dizia, mas o homem continuava acenando como se quisesse que o trem parasse e retornasse. O maquinista o conhecia e disse ao capitão que ele era um fazendeiro, e que seria bom ouvi-lo, pois acreditava ter ouvido: “fanáticos em São João!”, e seus movimentos de advertência indicavam que teria algo importante a dizer. O capitão riu ironicamente e disse que não deixaria seu pessoal se inquietar com as bobagens desses ingênuos “bichos do mato”. Gräml calou-se. Ele participara da guerra dos Bôeres contra os ingleses e conhecia a tática da guerrilha, mas não quis manifestar nenhuma objeção, ainda mais que os americanos concordaram com o capitão.

E o trem seguiu. Os arbustos se impeliam cada vez mais sobre a linha do trem. Gräml avisou ao capitão que eles se encontravam perto do quilômetro 315 e estavam a menos de três quilômetros de São João. O capitão o fitou: Será que ele havia lido em seus olhos que já era tempo de obedecer às mais costumeiras precauções militares? Quem sabe! Imediatamente ele deu o sinal para a parada do trem. Um rápido comando e os soldados desceram e formaram uma linha de tiro à direita; diante deles havia um brejo do qual algumas aves aquáticas levantaram gritando, de resto não se ouvia mais nada. Gräml correu até a frente e saltou para a locomotiva, enquanto o capitão tranquilamente parado junto ao trem observava seu pessoal. Os americanos estavam na plataforma de observação do último vagão, quando um deles descobriu vultos furtivos passando silenciosamente pelos arbustos e disparou seu enorme Colt. Assim que o tiro retumbou uma saraivada do arbusto no outro lado do brejo cortou o silêncio. Dois soldados caíram e se contorceram agonizantes no chão. O capitão esperou tranquilamente o ataque inimigo parar, sem soltar seu pequeno cachimbo da boca. Os soldados deitaram no chão e começaram a atirar no inimigo invisível que estava escondido atrás dos arbustos. Os americanos saltaram do trem e fugiram pelos trilhos. O capitão assobiou e gritou para os soldados atirarem mais devagar, pois cada um possuía apenas cinquenta balas; porém só alguns seguiram as ordens, os outros continuaram atirando sem parar, enquanto os fanáticos, todos trilheiros e caçadores, concentraram o fogo na locomotiva. O maquinista saiu do seu posto e protegendo a cabeça com as mãos saltou no meio do carvão no tênder; o foguista, um mulato de aparência selvagem, pulou para a alavanca de controle e a posicionou em marcha ré e lentamente o trem começou a regressar. Gräml colocou seu revólver na testa dele e o obrigou a fazer o trem voltar à linha de tiro. Um dos técnicos ferroviários que se encontrava na máquina levou um tiro na perna e não poderia ficar ali, pois os soldados-enfermeiros estavam em um vagão com seus parcos materiais de primeiros-socorros. Gräml entregou seu revólver ao outro técnico que estava com eles e recomendou-o a matar o foguista caso ele tentasse se aproximar novamente da alavanca de vapor. Então colocou o ferido nas costas e o carregou-o sob fogo inimigo até onde estavam os soldados. Em seguida virou-se para retornar à locomotiva quando o trem pôs-se em movimento com um solavanco, de forma que ele instintivamente pulou no degrau do vagão, enquanto o trem regressava numa velocidade cada vez maior, deixando o capitão e seu pessoal abandonados a própria sorte. Gräml saltou de vagão em vagão até a máquina, mas no tênder o maquinista meio enlouquecido sorria ironicamente para ele e apontando-lhe o revólver dizia que não deixaria ninguém ir até a máquina e que não queria morrer. Gräml não conseguiu avistar o técnico, que teria sido expulso da locomotiva, como constatou mais tarde. Quando já haviam voltado uns dez quilômetros, Gräml conseguiu subir no tênder e de lá para a máquina, de onde o foguista saltou e correu sobre a passarela lateral ao lado da caldeira para a parte da frente da locomotiva. O maquinista deteve a máquina, todos saltaram, enquanto isso o foguista fugiu para a floresta, perseguido por alguns tiros. O maquinista tentou levar água novamente para a caldeira com o injetor, mas em vão, não estava funcionando. Então olhou ao redor da caldeira e viu que um tiro dos fanáticos havia furado o cano de conduta. Ele mostrou atônito a Gräml. E este o mirou sombriamente e disse: “pois então se alegre seu cachorro, porque agora não podemos voltar pra lá!”, e realmente seria uma loucura voltar lá, pois em pouco tempo não haveria mais água suficiente na caldeira, o fogo derreteria a chapa de chumbo colocada devido ao risco de explosão e o resto da água poderia apagar o fogo, enquanto que nós podíamos deslizar sem ele serra abaixo. Portanto o fogo não foi reabastecido e o trem desceu usando o seu próprio peso até a estação Nova Galícia. Lá estava o trem reserva e Gräml botou aquela máquina no seu trem e foi a todo o vapor morro acima.

Avidamente os olhos dos poucos soldados buscavam em cada árvore, em cada arbusto, de onde poderia repentinamente iniciar o ataque inimigo, mas um silêncio mortal reinava na mata fechada. Somente urubus circulavam a alturas vertiginosas. De repente um grito estridente atravessou o silêncio. Um soldado apareceu e fez sinais nervosos. O trem parou. O homem estava esgotado e contou em palavras entrecortadas que o capitão, quando o trem partiu, retirou-se com seus homens ordenadamente, depois que um quarto da sua tropa já estava morta ou ferida, mas aí eles receberam também ataques pelos flancos; então ele percebeu que seus homens já não tinham quase nada de munição, assim deu o sinal de retirada urgente e isso imediatamente resultou em uma fuga selvagem. O próprio capitão foi atingido no pulmão e seus dois suboficiais também foram feridos, mas teriam combatido até o fim, sendo vencidos pelo maior número de inimigos. Ele mesmo fugira, mas conseguiu indicar aproximadamente o local da última batalha; contudo não valia a pena ir até lá, pois era bem sabido que os fanáticos não faziam prisioneiros e todos os feridos eram imediatamente assassinados. Gräml deixou o homem entrar e cautelosamente recolocou o trem em movimento. Depois de mais ou menos um quilômetro o soldado lhe fez um gesto para parar; e com as espingardas preparadas, os poucos soldados foram a uma clareira onde ocorreu a última batalha. Lá estava o capitão e a alguns passos dele os dois suboficiais. O capitão pressionava seu quepe contra o peito e a expressão em seu rosto parecia tranquila, enquanto as caras dos suboficiais estavam desfiguradas. As armas tinham sumido, com certeza os fanáticos as haviam levado. Não tinham tempo a perder, a qualquer momento poderia surgir dos arbustos as figuras terríveis dos inimigos. Portanto os cadáveres foram pegos e levados ao trem, que ficou parado por quinze minutos. Ainda soou horrivelmente a sirene da locomotiva no silêncio fúnebre da floresta para chamar algum disperso, mas ninguém apareceu - os fanáticos fizeram o trabalho completo. Então o trem regressou com cuidado, porque com os oito soldados que ainda não estavam feridos não se poderia revidar um ataque severo e também não havia caixas d'águas por perto onde a locomotiva pudesse reabastecer seu reservatório. Quando o trem chegou à estação Nova Galícia, um funcionário informou que nesse meio-tempo a comunicação telegráfica fora restabelecida e foram transmitidas a Porto as tristes notícias sobre a expedição malsucedida, e logo em seguida o trem foi posto em movimento levando junto à locomotiva apagada.

Quando o trem chegou em Porto, a cidadezinha estava um rebuliço. Foram preparados caixões para as vítimas e o sacerdote solenemente abençoava os restos mortais dos corajosos que haviam dado suas vidas no cumprimento do dever. Eu falei com o médico, Dr. Scylla, que havia sido um dos melhores amigos do falecido e que já havia sido companheiro dele em outras batalhas. Ele disse que a moral dos soldados remanescentes estava terrível, pois uma amargura sem igual havia tomado lugar e ansiavam por desforra. Gräml e eu ficamos na estação e olhamos apreensivos para o quartel próximo, de onde ressoavam queixas e bramidos abafados. Os soldados organizaram o pelotão na praça ao lado da estação, onde os corpos dos mortos ainda estavam nos ataúdes; então um soldado saltou em cima de um montinho e fez um discurso ardoroso no qual ele proclamava os méritos dos mortos, mas começou a falar dos inimigos e exigia desforra de uma maneira terrível, e agora indicou com ênfase selvagem em direção a prisão próxima, onde alguns fanáticos ainda estavam presos, de repente rompeu uma gritaria que nem parecia mais humana. Então um grito: “Armas, armas!” - e num instante os soldados romperam de volta ao quartel, retornando em seguida a praça, cada um com uma arma qualquer na mão. Alguns poucos tinham espingardas, outros meramente baionetas brilhantes em punho e agora a multidão se encaminhava à prisão debaixo de uma gritaria ensurdecedora. O médico militar havia ficado ao meu lado, de repente ele arrancou e gritou: “Salvarei os prisioneiros!”, e vi sua forma insinuante desaparecer na multidão. Agora os primeiros já haviam atingido a prisão e impetuosamente ansiavam por sua abertura. Os soldados-policiais fugiram horrorizados. Machadas estalavam com estrondo contra o portão. Uma viga utilizada contra ele, que logo se abriu de todo. A multidão invadiu rapidamente. O Dr. Scylla igualmente alcançou a prisão, infiltrara-se pela porta dos fundos que os policiais fugitivos haviam deixado aberta. Nesse ponto a revolta enfureceu-se de forma mais selvagem. Com pressa ele abriu seu caminho em direção à cela dos prisioneiros. Cada soldado queria ser o primeiro a saciar a sede de sangue empurrando uns aos outros, duas espingardas surgiram prontas para atirar, quando subitamente em frente às grades, apareceu o tão conhecido uniforme do jovem médico que destemidamente mostrou o peito ao alvo das espingardas, “vocês são homens? São brasileiros? Ou serão bestas? Primeiro uma bala no meu peito e só depois nos prisioneiros! A vida de um prisioneiro inimigo é sagrada!”, por dois segundos a multidão fitou o valente e então lentamente se retirou; e minutos depois o lugar estava vazio.

 

  1. Refere-se ao Monge José Maria, naquele momento já falecido mas lembrado pelos rebeldes em suas ameaças, visto que parte deles acreditava em sua ressurreição. José Maria morreu em 22 de outubro de 1912, no combate do Irani, que deu início ao conflito do Contestado. (NdH)

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