40 anos no interior do Brasil/Cavalgada Perigosa

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Cavalgada Perigosa


Os fanáticos haviam ocupado o território entre os estados de Santa Catarina e Paraná. O governo havia mandado tropas e haviam ocorrido lutas. Havia feridos e mortos dos dois lados. Foi então que aconteceu algo muito estranho: Ambas as partes recuaram: as tropas a fim de se preparar melhor para a guerra na selva, os fanáticos por medo das tropas; pelo menos era isso que se acreditava.

Alguns homens voltaram da região das nascentes do rio Timbó, a qual tinham atravessado a cavalo sem encontrar ninguém; só viram casas queimadas e plantações destruídas. Havia diminuído o número dos urubus, que costumavam acompanhar em bandos as lutas no interior do país, para comer os restos de animais abatidos e os corpos de homens moribundos ou já caídos na macega. Os fanáticos denominavam a si mesmos de santos. Tinham o desagradável costume de matar os presos que haviam lutado contra eles. Cumpriam cegamente as ordens de seu messias e das virgens por ele declaradas como consagradas, que tinham visões e decidiam sobre a vida e a morte através de seus sonhos.

Em Porto da União vivia um velho fazendeiro que fugira dos fanáticos e deixara sua fazenda, seu gado e todos os seus pertences nas mãos deles. Ao ouvir que os homens também não haviam encontrado ninguém na proximidade de sua fazenda, decidiu andar a cavalo até lá, para buscar alguns objetos de valor que enterrara perto de sua casa. Montou assim em seu cavalo, conduzindo pela guia uma mula de albarda e iniciou seu passeio de madrugada. Durante seu caminho não topou nem com homens, nem com rastros de homens. À noite chegou em casa, desenterrou os objetos e carregou sua mula.

Mas de repente viu-se cercado por três homens, que se haviam aproximado silenciosamente pelo mato, carregando nas mãos Winchesters prontos para disparar. Agora é preciso saber que aqui no maravilhoso Brasil ainda não se conhece o grito de "Hände hoch!" (mãos ao alto!). As coisas acontecem, portanto, com muito mais calma. Isto é, o homem velho ficou parado e cumprimentou os chegados com um "bon dia, senhores!", mas no caso o gesto amável não foi retribuído. Os homens apenas perguntaram o que ele estava fazendo aí.

"Vim buscar algumas coisas da minha casa, e quero voltar para Porto da União."

"Você dificilmente vai conseguir isso", retorquiram, porque teria que ir com eles. Resignando, o velho se entregou ao inevitável, e, ao invés de dirigir-se ao norte, tomou o rumo sul onde se encontravam os fanáticos. No dia seguinte reuniram-se a um grupo maior de aproximadamente vinte homens que acampavam em barracas a céu aberto. Indicaram-lhe uma barraca pequena para dormir. Cansado, espichou-se no catre e adormeceu.

Durante a noite acordou e espiou ao seu redor. Não havia nenhum sinal de um guarda. Estavam todos dormindo.

Saiu furtivamente da barraca, engatinhando por um pequeno trecho. Depois se ergueu e entrou na trilha do mato na direção por onde tinham chegado. Mas de repente parou e começou a pensar, se realmente era prudente fugir; afinal de contas havia andado a cavalo um dia inteiro com os malditos sujeitos e levaria mais um dia até chegar em Porto da União, e agora teria que encarar todo esse caminho a pé com seus ossos velhos e cansados! Ainda por cima não havia comida em lugar algum. Apoderou-se do velho um tremor ao pensar em que os fanáticos iriam persegui-lo e alcançá-lo. Sentiu uma forte necessidade de sentar-se, e quase caiu de cansaço num velho tronco.

As estrelas brilhavam tão lindas e lá estava ele sentado, abandonado por todo o mundo. Sentia muitas saudades de sua prisão; e, ao chegar a esta conclusão levantou de um salto e voltou correndo com a maior precaução, aproximou-se de bruços ao acampamento, conferiu que todos continuavam em sono profundo e chegou ileso até ao seu catre, onde caiu exausto e dormiu quase a manhã inteira.

No dia seguinte perguntou casualmente o que, afinal, ia acontecer com ele. O chefe respondeu secamente: “Por enquanto eu também não sei; mas mandei um mensageiro ao santo que deve voltar daqui a dois dias, e então veremos.”

“Mas o que é que pode acontecer comigo? Afinal de contas, eu não fiz mal a ninguém!”

“Isso não tem importância, pois nós só cumprimos as ordens do santo.”

“E o que é que ele costuma ordenar?”

“Depende do que o anjo lhe diz e aí só tem duas alternativas: Ou você será considerado digno de nos acompanhar e participar na nossa luta, ou o santo ordena que você seja fuzilado em seguida! Mas isso executamos rapidamente, sem que sintas muita dor.”

Dito isso, o chefe deu as costas. O velho sentiu uma forte tontura. Agora gostaria de ter fugido toda a distância que seus velhos pés teriam conseguido andar. Derrotado atirou-se ao seu catre, mas durante a noite não conseguiu encontrar a coragem de realizar sua fuga. Na manhã seguinte trouxeram um touro para ser abatido; o animal estava furioso e, portanto, foi segurado por dois laços. Havia pouca gente no acampamento. Lentamente e em silêncio o chefe aproximou-se com o facão para desferir-lhe o golpe mortal; sua vítima, porém, constantemente mudou de posição, e quando finalmente decidiu esfaqueá-la, falhou em partir a aorta, fazendo o animal agonizante pular para a frente, berrando e atirando ao chão as pessoas que seguravam os laços. Num instante atravessou a praça deserta e desapareceu no mato, arrastando os laços atrás de si.

Segundos depois todos os homens estavam correndo atrás dele, e de repente o velho se viu sozinho no acampamento. Olhou em volta, controlando todas as barracas. Não havia nenhum movimento. Mas espera aí - que cabeça era essa lá na beira do mato? Será que é um homem? “Não”, exclamou feliz da vida, “é uma mula!”

A mula estava de cabresto. Com o maior cuidado aproximou-se, agarrou o cabresto, deu uma última olhada ao acampamento, atou a ponta do cabresto na mandíbula da mula, subiu e, batendo o animal nos lados com os calcanhares mandou-o galopar pelo caminho pelo qual tinha chegado. No próximo cruzamento entrou primeiro na trilha principal, deixando vestígios bem visíveis; mas depois, aproveitando de uma parte rochosa do caminho, desceu e conduziu a mula pelo mato a uma trilha lateral. Orientando-se pelo sol, prosseguiu morro acima, morro abaixo, sem intervalo e sem sela, no duro lombo da mula, durante treze léguas[1]. Parou apenas para tomarem água e aguçar ao máximo os ouvidos a fim de distinguir sinais de perseguidores. Mas só se ouvia o canto das cigarras e os gritos graves e abafados dos bugios. Continuou sem parar; e quando por fim apareceu uma zona povoada onde estava seguro e se viu em frente de uma casa hospitaleira, o velho desceu da mula exausto. Pessoas prestativas carregaram-no para dentro. Tomou um pouco de leite, espichou-se numa cama e dormiu o sono do cansaço.

Muitas horas depois, quando acordou e conseguiu relatar sua aventura, perguntei-lhe: “O sr. me diga uma coisa: Como agüentou andar treze léguas nessa mula dura e sem sela?” Olhou-me pensativo e disse: “Pois é, não sei bem como aguentei! Provavelmente todos os meus sentidos estavam unidos nos ouvidos em alerta a possíveis perseguidores; e por isso nem notei minhas pobres nádegas. Creio que nos próximos quinze dias não vou poder sentar.”

 

  1. Equivale a 68 quilômetros. (NdT)

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