A Alma do Lázaro/II/XV

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Tornei às Cinco Pontas para ver a casa da menina da Ave-Maria, e ouvi-la cantar a sua oração de todas as noites.

Era lusco-fusco; e não me animei a aproximar da praia com receio de que vendo-me, reconhecesse o miserável que sou e de quem todos fogem.

Os outros, já não estranho. Tão habituado estou à crueldade do mundo; mas ela?... não quero ser-lhe um objeto de repulsão. Ignore para sempre que existo, e possa eu de longe, em silêncio, contemplá-la, como a estrela do céu a que dirige sua prece.

Quando ela acabou de cantar, sentou-se no terrado, junto de uma roseira de Alexandria que estava coberta de flores, e ficou olhando o mar, onde com a ardentia se esfacelavam as vagas em chuva de pedrarias cintilantes.

Tinha de todo caído a noite; e já fazia bastante escuro, para que me pudesse aproximar sem receio. Avistou ela meu vulto, pois senti que seus olhos se fitavam nele; e não sei o que foi de mim, que não me lembrei mais onde estava, nem se vivia ainda neste vale de lágrimas.

Do que só me recordo é de encontrar-me, em tornando a mim, posto de joelhos, a soluçar um pranto em que parecia ir-se toda a minha alma. Quanto tempo estive assim, não o poderia dizer, nem o como isso sucedeu, tão alheio fiquei deste mundo e de suas misérias.

Deitei a medo os olhos para o terrado. Uma sombra alva perpassava entre as moitas do terrado. Era ela que recolhia-se vagarosamente.

Será possível, mãe, que eu ame neste mundo outra criatura com as abundâncias do coração e a santidade com que sempre te estremeci?...