A Alma do Lázaro/II/XIV
Do profundo da minha angústia clamei ao Senhor, Ele me ouviu, e enviou à terra um anjo para ungir-me da sua fé.
Santa cousa é a inocência!... Será que a alma pura e ignorante deste mundo está mais impressa do seio do Criador, e mais próxima de seu berço? Quem pode saber, e quem dizer, se o que chamam razão, não é enfermidade do espirito preso à terra?
Naquela tarde aziaga, que me se parou de Luiza, tomou-me o desespero e levou-me sem tino por essas ruas além. Vaguei, como animal, perdido do dono, e que todos enxotam. A mim, enxotavam-me de mim mesmo ânsias de acabar com tanto penar. Tinha horror à vida.
Ouço alarido: e logo vejo, a correr espavorida pelo caminho, a gente que passava. Ser de mim que fugiam, foi o que primeiro cuidei; mas vinham de meu lado, e nem me viam. Voltando-me conheci qual a causa era do alvoroço. Um cão espritado que ia duma para outra banda, mordendo quem encontrava.
Bem claro percebi, quanto já não era deste mundo, pois daquilo fugia ele, que eu andava a procurar. Fui-me direito ao animal. Mas até o sabujo me tem asco. Parou bem junto de mim; roçou por mim e foi perto morder um pobre velho, a quem tardo levavam as pernas trôpegas dos anos.
Cheguei-me a ele, de quem já todos com medo se arredavam; e carregando-o nos braços, levei-o para a tenda do ferreiro mais próximo, onde lhe queimei a ferida com ferro em brasa. Mal se aplacou a dor, e soube o velho quem eu era, repeliu-me de si como uma causa vil, e foi-se, sem voltar o rosto.
Quanto horror lhe causei!