A Carne/XI

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Havia muitos dias que Barbosa partira, e apenas tinha escrito uma carta ao coronel, sobre negócios, na qual lhe dava esperanças de salvar trinta por cento do material comprometido.

A princípio Lenita mandava o moleque à vila todos os dias buscar o correio. Muito antes da hora de ele voltar, já ela estava à porta a espiá-lo. Quando no alto do morro despontava o seu vulto, vestido de algodão branco, sacudido pelo chouto de um burrinho ruço velho, , a pôr uma mancha de alvadia e movediça no amarelo baço do caminho, ela corria à porteira da cerca, a encontrá-lo.

Tomava com mão febril o surrãozinho de sola em que vinha a correspondência, abria-o, e, como só caíssem jornais, perguntava nervosa, trêmula, afagando ainda um resto de infundada esperança:

—E as cartas, onde estão as cartas?

É indescritível o seu desapontamento, a sua cólera mesmo ao ouvir a resposta do moleque, voz lenta, doce, meio cantada, indiferente:

—Carta não tem.

Aborreceu-se, não o mandou mais à vila buscar o correio, e, quando ele, de si próprio, lhe ia entregar os jornais, dizia ela com mau modo:

—Ponha lá em cima da mesa.

Um dia, a destacar-se no emaranhamento de letra miúda de um maço de Jornal do Comércio, viu ela uma carta volumosa, empanturrada. O sangue refluiu-lhe todo ao coração quando reconheceu a letra de Barbosa no subscrito liso, do papel diplomata:


Ilma. Exma. Sra.


D. Helena Matoso.
Vila de ***

Província de S. Paulo.

Arrancou-a violentamente da mão do moleque, deixando cair por terra os jornais, que não curou de erguer: acolheu-se ao seu quarto, apenando-a de encontro ao seio.

Fechou a porta por dentro, à chave; semicerrou as janelas, deixando apenas interstício por onde entrasse a luz necessária. Não queria ser vista, não queria que ninguém a pudesse incomodar.

A tremer, com as mãos tactas, despedaçou o envelope, impacientemente, brutalmente quase.

A carta constava de muitas folhas de papel paquete, pelure d’oignon, cobertas de letra cursiva em todas as laudas, tudo numerado muito em ordem.

Lenita leu:


« Santos, 22 de janeiro de 1887.

« Minha prezada companheira de estudos.


Aqui estou, pela primeira vez em minha vida, no porto de mar de nossa província, em Santos, terra cálida, úmida , sufocante, preferida por Martim Afonso aos feiticeiros arredores da baía de Guanabara. Os reverendos Kidder e Fletcher, no livro que publicaram sobre o Brasil, deram-se a perros para descobrirem a razão da preferência e... ficaram em jejum. O mesmo me acontece. Com efeito, por que teria Martim Afonso preferido isto ao Rio de Janeiro? Tudo levava a crer que era o contrário que se devia dar. Que rasgo de intuição genial, que vista interna miraculosa teria revelado ao colonizador português a superioridade imensa desta zona vicentina em que há terra roxa, em que há um clima sem rival para a lavoura, sobre a orla limítrofe, de terra vermelha, árida, sequiosa ? E o caso é que sem razão aparente, sem dados aceitáveis, houve a preferência, e quê, essa preferência criou a primeira província do Brasil, e quiçá o primeiro dos pequenos estados livres do mundo.

Eu me vejo em apuros, mas é para dizer o que vem a ser esta nesga do litoral em relação à climatologia; é para achar-lhe um termo de comparação.

Falam no Senegal: o Senegal é mais quente, valha a verdade, mas não é tão abafado. Lá respira-se fogo, mas respira-se. Aqui não se respira nem fogo, nem coisa nenhuma. O ar é pesado, oleoso; parece que lhe falta algum elemento, isso quando não há o vento célebre que os noroeste: quando sopra, reina esse semoum africano, esse vendaval-peçonha, Santos é miniatura do inferno: Imagine-se um tufão dentro de um forno.

Os dias são horríveis: se há chuva, o que é raro, o sol queima, esbraseia a terra, a ponto de se poderem fritar ovos sobre as pedras das calçadas. Mas ainda há coisa mais horrível do que dias, são as noites. A atmosfera queda-se, morre. Olha-se para as flâmulas dos navios, imóveis; para as franças das árvores, imóveis; para os leques das palmeiras imóveis. A gente a asfixiar no irrespirável e morto parece-se com os mamouths que se encontram inteiros nos gelos da Sibéria, ou com esses insetos mumificados, há milhares de anos, na transparência dourada do âmbar amarelo. É uma situação aflita; desespera, tira a coragem, dá vontade de chorar, lembra os horrores da Treva de Byron.

A vida aqui é uma negação da fisiologia, é um verdadeiro milagre: não há hematose perfeita, as digestões são laboriosíssimas, sua-se como no segundo grau da tísica pulmonar, como na convalescença de febres intermitentes. Eu, se fosse condenado a degredo em Santos, já não digo por toda a vida, mas por um ano ou dois, suicidava-me.

Mas, que peixes! que esplêndidos mariscos! As pescadas amarelas, uma delícia! as garoupas divinas! Comi em França ostra de Cancale, de Merennes, de Ostende; comi a ostra rosácea do Mediterrâneo, a ostra lamelosa da Córsega: nada disso se pode comparar à ostra de Santos. Tenra, delicada, saborosíssima, ela apresenta essa coloração verde, esbatida, tão apreciada pelos finos gourmets: Moquim Tandon, Valenciennes, Bory de St. Vicent, Gaillon, Priestiey, Berthelot inventaram mil teorias cerebrinas para explica-la, e todavia ela é apenas um sintoma de moléstia, é devida a um estado mórbido, a uma anasarca de molusco.

Tão detestável é a terra, o clima em Santos, quanto apreciável é o peixe, quão superior é o homem: maus fatores a darem produtos excelentes, verdade paradoxal, mas verdade irrecusável, absoluta.

O povo santista é polido, afável, obsequioso, franco: a riqueza que lhe proporciona o comércio de sua cidade fá-lo generoso, até pródigo. E tem nervo, tem brio: é o único povo que eu julgo capaz de uma revolução nesta pacata província. Não há muito em uma questão de abastecimento de água ele deu mostras de si...

Gosto, gosto imenso, em Santos, tanto do peixe como do homem.

Um pouco de estudo agora, para não perder-se o costume, para voltarmos a nossa marotte, à nossa telha.

A costa do Brasil, como muito bem faz observar o conde de Lahure em sua obra sobre este país, oferece desde a ilha do Maranhão até Santa Catarina uma singularidade notável: é debruada em toda a sua extensão por dois fundos altos, por dois arrecifes, que a bordam, que lhe constituem um como molhe natural, que a garantem da impetuosidade elas ondas, continuamente agitadas no Atlântico sul-americano.

Um desses arrecifes, o que está mais chegado à costa, é uma como cinta de rochas que envolve o litoral. Em lugares rasga-se até o fundo do mar; em lugares ergue-se, mas não lhe chega à superfície, em lugares está de nível como ela; em lugares alteia-se sobre ela até grande elevação.

São os recorres dessa penedia que formam todas as embocaduras, todas as baías, todos os portos, todas as abras da costa brasileira.

O segundo aparcelamento, como que uma barbacã, do primeiro, está em distância de oito a quarenta quilômetros da costa, em profundeza irregular, quase sempre fraca.

Os pontos descobertos constituem ilhas, algumas elevadíssimas: as Queimadas, os Alcatrazes, o Monte de Trigo são saliências do contraforte externo; a ilha do Enguá-Guaçu ou de Santos, a do Guaíbe ou de Santo Amaro, a da Moela, a encantadora ilhota das Palmas, são os picos do arrecife interno.

E que serão esses parcéis, essas duas cintas de rochas, senão o aparecimento, as primeiras prostrações, ainda marinhas, da Serra do Mar, chamada aqui Serra do Cubatão, Serra de Paranapiacaba. A cordilheira vem dos abismos do oceano, surde, emerge, levanta-se abrupta, fecha o horizonte com seus visos alterosos, que lá se enxergam ao fundo, cobertos de nuvens, a entestar com o céu, como barbaçãs, como muralhas de um castelo titânico.

Meditemos um pouco; reconstrua o raciocínio o que o homem não pode ver no espaço breve de sua vida curta.

O mar outrora banhava a raiz da serra, e os ventos do largo, encanados pelas bocainas, suscitavam maretas temerosas na planície onde hoje corre, arfando, a locomotiva.

As aluviões, os enxurros da cordilheira, grossos de terra, rolando seixos enormes, em luta com a força das marés que se encrespavam em macaréus, foram depositando sedimentos, detritos, em torno dos cúcleos penhascosos do Guaíbe e do Monserrate. No volver de milhares de séculos o fundo alteou-se, emergiu as ondas, constituiu as vastas planuras do sopé da serrania. Vasas moles ao princípio, lamarões, brejos marinhos, essas planícies foram-se cobrindo de mangues verdes, de siruvas e, depois, de outras vegetações mais alentadas: formaram terrenos sólidos, cortados de muitos esteiros.

A planície santista, bem como toda a planície da costa brasílica, é uma conquista da cordilheira.

E essa conquista continua ainda, continuará indefinidamente, de dia, de noite, a todas as horas, a todos os momentos; lenta, imperceptível mas intérmina, incessante; não há tréguas na luta entre a terra e o mar.

As margens dos esteiros, chamados aqui rios, aproximam-se cada vez mais, o fundo sobre. Pelo canal da Bertioga passou, à larga, a frota de Martim Afonso, passava até há bem pouco tempo o vapor costeiro Itambé: hoje o pequeno rebocador Porchat passa com dificuldade, vira com perigo, por vezes encalha.

Em Santos, junto da cidade, não existe mar no sentido rigoroso do termo: existe um estuário de água salobra, que tende a diminuir, que se vai fazendo raso todos os dias. E não há obviar-lhe. O famoso e protelado cais, caso se construísse, seria um pano quente: melhoraria o porto por uns pares de anos, afinal ficaria inutilizado. O fundo vai ganhando, há de ganhar de uma vez; o passado aponta o futuro. Debalde o oceano refluído, repulsado, concentra as forças sobre outro ponto e ataca S. Vicente. Ganhou uma aparência de vitória, é verdade: sobre a antiga povoação de Martim Afonso, ameaça a moderna: mas lá está o inimigo, a montanha, para detê-lo, para sustá-lo, para repeli-lo, com avalanches de pedras, com médão de lodo.

E há exemplos disso, recentes na história geográfica do velho mundo: Luiz ix de França embarcou-se em Aigues-Mortes, para as Cruzadas, duas vezes, uma em 1248; outra em 1269; Aigues-Mortes demora atualmente a seis quilômetros do mar. A cidade de Adria sobre o canal Bianco, derivativo do Pó, está hoje a trinta quilômetros do Adriático; pois era banhada por ele, foi ela até que lhe deu o nome.

Em tais condições não admira o noroeste, não admira o calor de Santos.

O vento largo, o vento de sudeste encana-se por entre as cordilheiras de Santo Amaro e do Monserrate, revoluteia pela planície, vai à cordilheira e de lá, repelido, reboja, volta, mas não volta só. Vem misturado, confundido com o vento quente do interior, com o vento aquecido nas terras roxas do oeste, aquecido no vasto platêau de Piratininga. É o famoso, o temido, o execrado noroeste.

Ora ajunte-se o calor químico, o calor desenvolvido pela fermentação de incalculáveis massas de detritos orgânicos, em uma planície vastíssima rodeada, quase fechada por montanhas; tome-se em consideração que esse calor só é absorvido em parte mínima pelos paredões da cordilheira, que é refletido, convergido por eles sobre Santos; atenda-se a que a vizinhança do mar tende sempre a elevar a temperatura da atmosfera, e cessará a admiração de que seja isto aqui o quinto cúmulo térmico do globo, de que em assuntos da calidez só preste obediência a Abissínia, a Calcutá, a Jamaica e ao Senegal.

É curiosa Santos como cidade, tem cor sua, inteiramente sua.

As casas são quase todas construídas de alvenaria, com soleira e portas de granito lavrado.

O ar, salitroso pelas emanações marinhas, ataca, rói, carcome a pedra. Não há ver aí superfícies lisas. tudo é áspero, caraquento, semidecomposto.

Sobre grande parte dos telhados viceja uma vegetação aérea, forte, vivaz, gloriosa.

Vista do mar, do estuário, a cidade é negra: black town lhe chamam os ingleses.

Os enormes vapores transatlânticos alemães, os esquisitos e bojudos carregadores austríacos, as feias barcas inglesas e americanas de costado branco, os mil transportes de todas as nações, entram pela ria, encostam-se à praia, varam quase em terra, afundam as quilhas no lado negro, constelado de cascas de ostras, de ossos, de cacos de louça, de garrafas, de latas, de ferros velhos, dessas mil imundícies que constituem como que os excrementos de uma povoação. Comunicam com a terra por pranchões lisos, ou canelados a tabicas.

Pelas ruas vai e vem, encontra-se, esbarra-se um enxame de gente de todas as classes e de todas as cores, conduzindo notas de consignação, contas comerciais, cheques bancários, maços de cédulas do tesouro, latinhas chatas com amostras de mercadorias. Enormes carroções articulados, de quatro rodas, tirados por muares possantes, transportam da estação do caminho de ferro para os armazéns, e deles para as pontes, para o embarcadouro, os sacos de loura aniagem, empanturrados, regurgitando de café. Homens de força bruta, portugueses em sua maioria, baldeiam-nos para bordo, sobre a cabeça, de um a um, ou mesmo dois, em passo acelerado, ao som, por vezes, de uma cantiga ritmada, monótona, excitativa de movimento como um toque de corneta.

Nos armazéns, vastos cimentados, manobrando pás polidas, gastas pelo uso, batem o café, fazem pilhas, cantando também.

E não deixam de ter cena elegância bárbara, com um saco vazio, sobre a cabeça, à laia de capelhar, moda árabe, talvez reminiscência inconsciente atávica.

Na praia, a poucos metros da água, um como mercado pantopolista: sobre mesas sólidas, de mármore, estendem-se alinhadas, com reflexos de aço, de prata, de ouro, os peixes admiráveis do lagamar e do alto — as tainhas gordas, de focinho rombo; os paratis que são diminutivos delas; as corvinas corcovadas, pardas; os galos espalmados, magros; os pargos de dentes e de beiços redondos, carnudos; as pescadas do alto, fulvas, enormes; os linguados, vesgos, delicados; as solhas, linguados gigantescos, macias, chatas; as garoupas, de cor de ferrugem, de olhos esbugalhados, atarracadas, escondendo sob formas brutas, um mundo de delícias gastronômicas; as pescadinhas brancas, argênteas, com um fio de ouro verde a sulcar-lhes os flancos os bugres lisos, visguentos, feios; os camarões, brancos, arroxados, com longas barbas, em rodas, sobre tampas de vime; os caranguejos, pelados, morosos, batendo uns nos outros a couraça sonora; os siris azulados...

Em torno a casa, sob os beirais do telhado, sob toldos de pano, ao ar aberto, pilhas de laranjas, de ananases, de melancias, de goiabas, de cocos, de cachos de bananas, mil espécies de frutas em uma abundância fastidiosa, desanimadora, com um cheiro enjoativo de madureza passada; grãos, legumes, hortaliças, raízes, ervas de tempero, tomates, pimentas; quadrúpedes e aves, domésticas e selvagens, leitões, quatis, perus, tucanos; conchas, caramujos, esteiras, cordas, quinquilharias, uma babel, um bric-à-brac infernal.

Às três horas começa de cessar o movimento: a população emigra para São Vicente e para a Barra. À tarde a cidade está silenciosa, deserta, morta. Há todos os dias uma transição crua, brusca, da agitação para o marasmo, que dá tristeza.

Eu subi ao Monserrate.

É uma eminência de cento e sessenta e cinco metros, quase a prumo, coroada por uma igrejinha branca, o que se pode imaginar de mais pitoresco, de mais singelamente grandioso, de mais encantador.

Sobe-se por um caminho acidentado.

O que se vai desenrolando aos olhos durante a ascensão é simplesmente maravilhoso. A planície estende-se ao longe, nivelada pela natureza, coberta de uma alcatifa de mangue; a cidade, em quarteirões regulares, paralelogramáticos, ocupa o sopé do morro, betada de ruas de calçamento pardo, manchado aqui e ali por maciço verde de árvores, por uma palmeira esguia; ao fundo, de um e outro lado a serra do continente; fronteiras as colinas abruptadas de Santo Amaro. O ancoradouro, o pego do Canehu e outros largos do estuário semelham chapas de aço polido, com as quais põem notas de vários tons os pontões desgraciosos, os navios que estão sobre ferro. As canoas, os escaleres resvalam como insetos ligeiros; uma outra vela pica de branco a escuridade metálica da superfície da água, e o sol ilumina tudo com sua luz dourada muito suave.

Os esteiros embebem-se pela verdura fofa dos mangais, um deles, muito sinuoso, afunda-se visível por espaço longo, fraldeia a colina cônica chamada Monte Cabrão, some-se, reaparece muito longe, refletindo a luz do sol, torna a sumir-se. É o canal histórico da Bertioga.

À direita uma imensidade azul que parece vir do infinito, que dir-se-ia um desdobramento do horizonte, avança arfando, em estos chega, beija a praia, morre em uma ourela de espuma alva, móvel, murmurosa... Salve, oceano, alma pater, laboratório da vida terráquea, povoador do planeta!

Ah! Lenita! imagine: o oceano — a força, o ataque; a terra — a firmeza, a resistência; o ar — hematose, a vida; o sol — o calor, a luz, a fecundação, tudo em porfia de prodigalidades, a construir, a ornar um cenário vasto de struggle for life, de luta pela existência, no qual se debatem, se fogem, se perseguem, se matam, se devoram todos os seres da criação, o zoófito, o molusco, o entomazoário, o vertebrado!

Aqui, nestas alturas, sob a imensidade do céu, a dominar a imensidade das águas é que sente-se grande, é que sente-se orgulhoso o antropóide falante que arranca a esponja do abismo, que paralisa a força incalculável do cetáceo , que fulmina a andorinha perdida na amplidão, que avassala o oceano, que escraviza o raio, que rasga os véus do espaço, que desvenda os mistérios do infinito!

Oh! eu a queria, aqui, junto de mim; eu queria ler-lhe a fixidez concentrada do olhar, no descoramento de face a profundeza da impressão que em espírito como o seu produz uma cena como esta!

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Paulo minora canamus; agora terre à terre.

Esta carta vai um pouco de arrepio com as leis da cronologia; eu inverti a sucessão dos fatos, comecei pelo fim, falei de Santos, e calei a viagem.

Faço amende honorable, vou reparar a falta.

Até a capital nada havia para mim de novo: conheço de há muito todos os caminhos de ferro, todas as estradas de rodagem que a ligam ao interior da província; estudei bem e até com interesse porque dela sou acionista, a estrada de Ferro Leste, impropriamente chamada Estrada do Norte.

Da capital a Santos foi que rolei em pleno desconhecido, foi que se me deparou assunto novo de estudo.

Os campos famosos de Piratininga constituem um platêau que coleia suave, em outeiros mansos, emoldurado à direita pelos cabeços longínquos da Serra do Cubatão, à esquerda pelos visos azulados da Cantareira, pelos picos verdoengos do Jaraguá.

De leste a oeste, um pouco ao norte da cidade, rola o Tietê profundo, negro, taciturno, formando um vale extensíssimo, muito largo.

A conformação atual desse vale, a turfa pantanosa que o constitui em grande parte, o alagamento anual que nele se opera, tudo atesta que ele foi em tempo um lago enorme, sinuoso, semeado de ilhas, um mar de água doce, que ia talvez até Mogi das Cruzes.

A serra da Cantareira e a vertente norte da serra do Cubatão deram batalha aluvial ao mediterrâneo doce, venceram-no, entupiram-no: o vale do Tietê é a conquista. As correntes de águas perenes conglobaram-se, aunaram-se, cavaram leitos, formaram os rios que hoje retalham a planície.

Vi de relance o casarão que se está fazendo para comemorar independência, ou melhor, para comemorar... por que não dizê-lo ? para comemorar o desarranjo funcional que levou o Senhor D. Pedro de Bragança e apear-se ali, às quatro horas da tarde do dia 7 de setembro de 1822.

Não há ver nestas paragens a flora maravilhosa das nossas zonas do oeste, os perovões, as batalhas enormes, os jequitibás de cinco metros de diâmetro: a vegetação arborescente é enfezada, baixa, quase anã. Não é basta, contínua: forma reboleiras, restingas, capões, ilhas de verdura, no amarelado pardo do campestre interminável.

Esta região é considerada estéril, maninha: nada mais injusto. Verdade é que não vinga aqui o cafeeiro, que a cana é somenos a de Capivari e mesmo a de Santos, que o algodoeiro não se pode comparar com o de Sorocaba; mas, por Deus! nem só café, açúcar e algodão é riqueza.

A vinha medra de modo assombroso: com uma cultura inteligente, com uma poda antecipada, poderia ela produzir em princípios de dezembro, evitando as chuvas de janeiro que lhe águam os bagos, que lhes deturpam os racimos. Em São Caetano, em terras outrora baldias, de que ninguém fazia caso, há vinhedos formosíssimos plantados por italianos. A vista alegra-se com a simetria das parreiras, o coração rejubila com a idéia de uma prosperidade imensa, geral, em futuro não remoto, por todos os ângulos de nosso... de nossa província eu ia escrevendo estado.

As hortaliças são enormes: um dia destes vi eu uma couve vinda de São Paulo que era um monstro de desenvolvimento: tinha folhas de cinquenta centímetros de diâmetro menor; media-lhe o caule muito mais de dois metros.

E por que não há de se cuidar do trigo? os antigos cuidaram com sucesso: em São em São Paulo comeu-se muito pão de trigo da terra. Ninguém ignora o que a agricultura científica tem feito das landes infecundas da Gasconha. Pois os campos de Piratininga não admitem confronto com as landes da Gasconha: são-lhes infinitamente sublimados.

E a indústria pastoril? Que riqueza imensa a se oferecer espontânea!

De São Bernardo em diante a planície muda de aspecto. Os capões, as restingas vão-se convertendo em um matagal basto, contínuo, verde-negro. Aqui e ali, no dorso de uma colina, no cabeço de um outeiro, rubro, semelhante a uma escoriação, serpeia o leito de um caminho. Na chã que se vai gradualmente alteando destacam-se as gramíneas, moitas de plantas baixas, de folhas escuras, de flores roxas, muito grandes.

De um e de outro lado do trem perpassam , fogem sombras compactas, fortes: são os primeiros topes da serra. Em vários lugares desnuda-se o granito lavado pelo enxurro, arrebatado pelas brocas do mineiro, esfacelado pela marreta do britador.

Em todas as árvores vêem-se parasitas, de flores escarlates, de folhas lustrosas.

A máquina, arfando, em carreira vertiginosa, arrastando o tender, arrastando a longa cauda de carros, triunfante, rumorosa, sobe, galga, vence, domina, salva o declive áspero, rola em terreno plano. O ar torna-se mais fino, mais úmido, a luz mais viva, mais mordente.

À esquerda, rápidas, como que levantadas, emergidas subitamente, alteiam-se montanhas, visos, picos, paredões, agruras, despedaçamentos de cordilheira.

À direita, em anfiteatro pelo dorso escalavrado de uma eminência, casebres miseráveis; sobre o rechano uma igrejinha rústica, desgraciosa, malfeita, com três janelas, com dois simulacros de torres, a picar de branco o azul do céu e o escuro da mata.

É o alto da serra.

Em frente, a alguns decâmetros, abre-se, rasga-se um vão, uma clareira enorme, por onde se enxerga um horizonte remotíssimo, um acinzentamento confuso de serras e céu, que assombra, que amesquinha a imaginação.

Começam aí os planos inclinados por onde, sob a ação das máquinas fixas, sobe e desce a vida social da São Paulo moderna, os carros de passageiros e os vagões de mercadorias.

Ao ganhar-se o declive, ao começar-se a descida, a cena torna-se grandiosa, imponente.

De um lado, peno, ao alcance quase da mão, alturas imensuráveis, talhadas a pique, cobertas de liquens, de musgos, tapando, furtando o céu à vista; pelos grotões desses fraguedos rolam cascatas sussurrantes, alvas, espumosas, já esfuziando em filetes, já encanando-se em jorros, já espadanando em toalhas.

Do outro lado, ao longe, a amplidão, a serra, em toda a sua magnitude selvática.

Às montanhas que entestam com o céu sotopõem-se montanhas que vão também assentar sobre montanhas. Em paredões aprumados umas, arredondadas em cabeços outras, em pirâmides regularíssimas ainda outras, elas abatem, acabrunham o espírito com a enormidade de sua massa. Dir-se-ia que foi aqui a escalada dos céus pelos gigantes, que se feriu nestas paragens a pugna tremenda em que os filhos do céu sufocaram a golpes terríveis, de toda a sorte de armas, a tiros de raios, a arremesso de montanhas inteiras, a revolta tremenda dos filhos da terra.

Pelo sopé dessas moles imanes, corre um vale profundíssimo, a que vão ter roladores medonhos, algares vertiginosos, precipícios assassinos.

Uma vegetação abeberada de umidade, cerrada, basta, emaranhada, inextricável, cobre, afoga o dorso da serrania. Não há ver aqui os picos escalvados das cordilheiras do velho mundo: tudo está coberto por um tapete anegrado, fosco: de longe parece relva, ao perto são árvores desconformes.

Nesse verdejar sombrio a canaleira de folhas avermelhadas põe notas alegres, claras: o ipê florescido pica-o de amarelo cru. As palmeiras, em uma abundância monstruosa, incrível, obscena acentuam na massa confusa o desenho saliente de suas copas estreladas.

Ao longe, na crista cerúlea, indistinta, do mais elevado contra-forte, um floco longo de neblina branqueja muito vivo, como o véu de uma uranide colossal, roto, esgarçado na doce violência de um debate amoroso.

Perto, a tiro de pedra, árvores esbeltas ostentam, no mesmo galho, flores brancas e flores roxas, de pétalas carnudas, cetinosas. A embaúva de folhagem escura e rebentos vermelhos ergue ousada o seu tronco esguio, branquicento.

Os raios do sol acendem, na fronde das árvores vizinhas, cintilações multicores, atiram sobre as cascatas punhados de diamantes: ao longe absorvem-se, não têm reflexão.

Ao findar-se o quarto plano inclinado , primeiro a contar do alto, antolha-se o viaduto da Grota Funda, a vitória do atrevimento sobre a enormidade, do ferro sobre o vazio, da célula cerebral sobre a natureza bruta.

Imagine, Lenita, um algar vasto; mais do que um algar vasto, uma barroca enorme; mais do que uma barroca enorme, um abismo pavoroso, atravessado de parte a parte por uma ponte, que parece aérea, apoiada em colunas altíssimas, tão esguias, tão finas, que, vistas em distância, semelham arames.

Ao contemplar-se do meio da ponte essa vacuidade assombrosa, os ouvidos zunem, a cabeça atordoa-se, a vertigem chega, vem a nostalgia do aniquilamento, o antegosto do nirvana, o delírio das alturas e faz-se mister ao homem uma concentração suprema da vontade para fugir ao suicídio inconsciente.

À medida que se desce a natureza muda; o ar toma-se espesso, pesado, quente, carrega-se de emanações salitrados; começa de aparecer a vegetação do litoral, alastram-se pelas encostas vastíssimos bananais.

Uma prostração de rocha faz um cotovelo no plano inclinado da raiz da serra: ao dobrar-se esse cotovelo, dá-se uma matação de cena em peça mágica. A paisagem abre-se, rasga-se de vez. Por entre contrafortes, por entre alturas de serrania, que se erguem de um e de outro lado, como bastidores titânicos, alonga-se a perder de vista uma planície extensa, chata, lisa, nivelada, pardacenta. De dois outeiros à direita que, simétricos, redondos, suaves, emparelhados, lembram os seios de uma virgem, parte uma linha horizontal, muito escura, muito tersa; é o mar, é o oceano , cuja vista dá nome a serra - Paranapiacaba.

Um como sulco estira-se pela planície, comando aqui e ali superfícies espelhantes de água sossegada: por esse sulco vai e vem enorme, acaçapada, com um desconforme gliptodonte, uma coisa chata, que desliza rápida, vomitando fumo: o sulco é a linha férrea; o gleptodonte, a locomotiva.

Embaixo, no começo da planície, divisa-se um amontoamento de vagões que semelha um bando de hipopótamos adormecidos ao sol.

Quando o homem pára e contempla das alturas o escalejar da serrania, o vale cortado de algares, a planície, o litoral, a linha do mar a confundir-se com o céu; quando atenta nas forças enormes que entram em jogo no âmago e na crosta da terra, na água que a banha , no ar que a comprime, na luz que a ilumina, na vida que a rói; quando por generalização alarga o quadro e considera o planeta inteiro; quando dele passa para os planetas irmãos, para o sol, centro do sistema; quando conclui, por indução irrecusável, que esse sol, esse centro é por sua vez lua, satélite humilde de um astro monstruosamente imane, afogado na vastidão, desconhecido, incognoscível para todo o sempre; quando pensa que ainda esse astro gravita em torno de um outro que gravita em torno de um outro; quando reflete em que tudo isso é uma cena minúscula do drama da vida universal, e que o teatro espantosamente incompreensível dessa evolução intérmina é uma nesguinha insignificante da imensidade do espaço, o homem sente-se mesquinho, sente-se pó, sente-se átomo, e, vencido, esmagado pelo infinito, só se compraz na idéia do não ser, na idéia do aniquilamento.

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A estrada de ferro inglesa de Santos a Jundiaí é um monumento grandioso da indústria moderna.

De Santos a São Paulo percorre ela uma distância de 76 quilômetros.

Todas as obras de arte dos terrenos planos são admiravelmente acabadas, são perfeitas.

Até à raiz da serra a distância é de 21 quilômetros: há três pontes, uma das quais notabilíssima, sobre um braço de mar chamado Casqueiro. Mede ela 152 metros, tem dez vãos iguais, assenta sobre pegões robustíssimos.

Da raiz da serra até o rechano do alto, contam-se oito quilômetros. A altura é de 793 metros, o que dá um declive quase exato de dez por cento.

Como se calcam esses desfiladeiros, essas agruras vertiginosas?

De modo simples.

Divide-se a subida da serra em quatro planos uniformes de dois quilômetros cada um. Para uma tração, empregou-se um sistema adotado em algumas minas de carvão da Inglaterra. Máquinas fixas de grande força recolhem e soltam um cabo fortíssimo, feito de fios de aço retorcidos. Presos às duas pontas desse cabo giram dois trens: um sobe, outro desce. A agulha de um odômetro indica com exatidão matemática o lugar do plano em que se acha o trem, indica o momento de encontro de ambos eles. Um brake de força extraordinária permite suspender-se a marcha quase instantaneamente, e um aparelho elétrico põe os trens em comunicação imediata com as respectivas máquinas fixas. O cabo, resfriado ao sair por um filete de água, corre sobre roldanas que se revolvem veniginosas, com um ruído monótono, metálico, por vezes forte, por vezes muito suave.

O serviço é regular e tão bem feito, que em grandes extensões há um único jogo de trilhos a servir tanto para a subida como para a descida. Funciona a linha há mais de vinte e um anos e ainda não se deu um só desastre. Pasmoso, não?

Em cada uma das quatro estações de máquinas fixas há cinco geradores de vapor, três dos quais sempre em atividade. As grandes rodas estriadas que engolem e soltam o cabo, as bielas de ferro polido que as movem, os mancais de bronze, os excêntricos em que o ferro rola sobre bronze com atrito doce, tudo está limpo, luzente, azeitado, funcionando como um organismo são. Chaminés enormes, que se enxergam de longe, feitas de cantaria lavrada em rústico, atiram aos ares balcões de fumo, enovelados, densos.

Os desbarrancamentos são remendados a alvenaria; todas as águas perenes, todas as torrentes pluviais estão dirigidas, encanadas, por calhas de pedra, de tijolos, de juntas tomadas, por bicames de madeira. Há encanamentos subterrâneos feitos em granitos, gradeados de ferro, que fazem lembrar os calabouços dos solares feudais.

Na serra de Santos a obra do homem está de harmonia com a terra em que assenta; a pujança previdente da arte mostra-se digna da magnitude ameaçadora da natureza.

O viaduto da Grota Funda é simplesmente uma maravilha. Mede em todo o comprimento 715 pés ingleses, mais ou menos 215 metros. Tem 10 vãos de 66 pés e um de 45 entre duas cabeceiras de cantaria; assenta sobre colunatas de ferro engradadas (treillages) e sobre um pegão do lado de cima. A mais elevada colunata, contando a base, tem 185 pés, 56 a 57 metros. A inclinação é a inclinação geral, dez por cento ou pouquíssimo menos. Começou-se esta obra assombrosa em 2 de julho de 1863; em março de 1865 assentaram-se-lhe as primeiras peças de ferro; em 2 de novembro do mesmo ano atravessou-a o primeiro trem, 2 de novembro, dia de defuntos, os ingleses não são supersticiosos.

Uma empresa hors ligne, esta companhia de estrada de ferro. O resultado foi além da mais exagerada expectativa otimista . O governo geral garantiu cinco por cento sobre o capital empregado na construção, e o provincial dois. De há muito, porém, que a companhia prescindiu de garantia, e que distribui dividendos fabulosos.

Ganham, ganham muito dinheiro, ganham riquezas de Creso os ingleses, e merecem-nas. O progresso assombroso de São Paulo; a iniciativa industrial do paulista moderno; a rede de vias férreas que leva a vida, o comércio, a civilização a Botucatu, a São Manuel, ao Jaú, ao Jaguára, tudo se deve à Saint Paul Rail Road, à Estrada de ferro de Santos a Jundiaí.

Rule, Britannia! Hurrah for the English! já que o nosso governo não presta para nada.

Vai longa esta carta: preciso é pôr-lhe termo.

Estirei-me, porque escrevendo-lhe afigura-se-me tê-la ao meu lado, e eu desejei prolongar o mais possível a figuração...

Estou velho, e todo o velho é mais ou menos autoritário e pedante. Ora a Lenita pôs-se no vezo de condescender com o pendor da idade, escutou-me, deu-me atenção, puxou-me pela língua... Aguente-se, pois, com a caceteação, com a seca para falar classicamente; a culpa é sua.

Não sinto saudade da nossa convivência, de nossas palestras aí no sítio: a expressão saudade tem poesia demais e realismo de menos. O que há é necessidade, é fome, é sede da companhia de quem me compreenda, de quem me faça pensar... da sua companhia.

Imagine que eu levo todo o santo dia e parte da noite a falar só em café, mas em café sob o ponto de vista comercial, em embarques, em saques, em descontos... E ai de mim, se o não fizer: aqui quem se afasta deste tema, quem não discute comércio de café, passa por idiota.

Uma explicação necessária, antes de terminar. Fui minucioso, talvez demais, em descrever a serra, os planos inclinados, as obras de arte da companhia inglesa. Como diabo, fiz eu tanta observação, onde fui apanhar tantos dados? Em uma descida rápida, vertiginosa, em uma descida pelo trem? Não era possível. Uma inspiração, uma comunicação espírita? Nada disso. Confesso com modéstia que são humanos os meios de informação de que disponho: a ciência infusa foi privilégio dos apóstolos, de Santo Tomás, de Ventura de Raulica, e ainda hoje o é do abade Moigno e do imperador do Brasil. A mim me não armarão processo esses santos personagens por empecer-lhes no direito. Nem mesmo me posso gabar de uma simples sugestão mental, de um reles ensinamento hipnótico. Pairo em regiões menos elevadas, aprendo o que sei de modo mais grosseiro. Um dia destes, nada tendo aqui a fazer, fui ao alto da serra e de lá vim a pé, vendo, observando, estudando. Aí está como foi.

Fico anelando pelo dia que julgo próximo de ir dar-lhe um hands-shake forte, enérgico, à inglesa.

Manuel Barbosa...

Lenita leu a carta com impaciência: os detalhes, os dados exatos, as apreciações científicas de Barbosa sobre Santos, sobre a serra irritavam-na: passou por aquilo tudo rapidamente, nervosamente, sem aprofundar, como quem percorre um catálogo. Procurava o que houvesse de íntimo sobre a sua pessoa, qualquer coisa que revelasse, que atraiçoasse o estado afetivo do espírito de Barbosa.

Demorou-se muito na leitura dos trechos finais: teve um prazer vivíssimo, indizível ao ler que Barbosa a supunha, a figurava ao lado de si, e que se prazia nessa figuração. Repetiu as frases silabificando, quase deletreando, com o olho esquerdo fechado, com a atenção concentrada. Gostou imenso da maneira brusca por que terminava a carta.

O semidelíquio erótico que tivera no quarto de Barbosa fora a confirmação de uma suspeita: reconhecera que amava a esse homem, loucamente, perdidamente.

Ante a brutalidade do fato, ao pungir gozoso e acerbo da revelação da carne, revoltara-se com orgulho, esquivara-se em último assomo de resistência, evitara a Barbosa na véspera da partida.

A insônia da noite, o vácuo enorme que a ausência de Barbosa lhe produzira em volta, a necessidade fatal em que se reconhecera de tê-lo junto de si para viver, desejo dele que a mordia, o ganho de causa que levava esse afeto novo sobre o amor profundo que votara ao pai, a Lopes Matoso; que tudo isso a convencera de que não podia recalcitrar, de que a resistência lhe era impossível.

Com a resolução rápida dos espíritos decididos, aceitara o jugo, submetera-se à paixão, confessara-se vencida.

Era o mais difícil.

Em curvar-se, de si própria é que ela tinha vergonha, uma vez cônscia de estar curvada, pouco lhe fazia que o mundo inteiro a visse nessa posição.

Amando, mas sem estar de todo vencida, lutaria, defender-se-ia até à morte contra o que desejava, isso em uma alcova, em um recinto vedado a todos os olhos; entregue, derrotada perante o seu foro íntimo, avaliava em nada o escândalo, desprezava a opinião, era capaz de submeter-se ao vencedor em público, no meio de uma praça, como as prostitutas de Hyde-Park.

Amava a Barbosa confessara-o a si própria: era capaz de lho dizer a ele, era capaz de o proclamar à face do mundo.

E indignava-se, achava-o tímido, queria que ele a adivinhasse, que lhe retribuísse o amor, que sentisse por ela o que ela sentia por ele, que se confessasse por sua vez subjugado, cativo. Amar ela, Lenita, a um homem, e não ver esse homem a seus pés rendido, aniquilado, absorvido?! Impossível.

Releu a carta, mas releu com atenção, meditadamente estudando. As apreciações originais de Barbosa, o seu modo profundamente individual de ver as coisas, o entusiasmo comunicativo a que se entregava por vezes, tudo isso reproduzia-o, aviventava-o no escrito, ao ponto de que a Lenita parecia-lhe tê-lo junto a si, ouvir-lhe a voz, sentir-lhe o hálito.

As teorias sobre a formação da planície santista e sobre o enchimento do vale do Tietê fizeram-na pensar, recordar-se. Tinha estado uma vez em São Vicente, a banhos: conhecia Santos, conhecia a Serra. Os fatos que Barbosa consignava eram exatos, as explicações que deles oferecia eram plausíveis.

Lenita admirava-lhe cada vez mais a flexibilidade do talento, que a tudo se abalançava, que para tudo tinha criterium, que de tudo decidia com justeza.

A admiração pelas faculdades intelectuais elevadíssimas de Barbosa envolvia-se mansamente, naturalmente, para uma admiração pelas suas formas, para um desejo de seu físico, que a dementava a ela, que a punha fora de si.

Compreendia então perfeitamente a história bíblica da mulher de Putifar. A vista segura que o escravo hebreu José revelara ter das coisas, a sua alta capacidade administrativa, a sua intransigência, a sua energia, a sua modéstia, prendera a atenção da formosa egípcia; mirando-lhe as formas franzinas, esbeltas de efebo, deixara-se cativar e, ardente, franca, provocara-o, agarrara-o.

E Lenita entusiasmava-se por essa mulher tão estigmatizada em todos os tempos, e todavia tão adoravelmente carnal, tão humana, tão verdadeira: compreendia-a, justificava-a, revia-se nela.