A Carne/XII

Wikisource, a biblioteca livre

O feitor preto viera dizer a Lenita que uma fruiteira na mata em frente estava ajuntando muito pássaro.

A moça mandou que abrisse uma picada desde o carreadouro até à fruiteira, fez limpar a sua espingardinha Galand, carregou duzentos cartuchos e, no dia seguinte, de madrugada, seguida por sua mucama, foi pôr-se à espera.

Não tinha caído muito orvalho, e grande era a cerração.

O caminho coberto por uma camada veludosa de areia fina, amarelenta, embebiase pela neblina espessa que afogava a terra. A selva formava um maciço negro, compacto. Uma ou outra árvore isolada no pasto transparecia por entre o nevoeiro, como um espectro gigantesco.

Sentia-se um frio seco, picante, sadio. De repente Lenita percebeu o que quer que era , retouçando na areia levemente úmida do carninho, a vinte metros de distância.

Sustou o passo, levou a arma à cara e, rápida, quase sem pontada, desfechou.

— Que foi que atirou, D, Lenita? perguntou a mulata.

— Vá ver, que lá está ainda bulindo, volveu a moça, e fazendo gangorrear o cano da arma, meteu-lhe novo cartucho.

Com efeito, um animal qualquer estrebuchava convulso, raspava a areia, atirava-a longe.

A rapariga aproximou-se cheia de receio, retraindo o corpo, estendendo o pescoço.

É candimba! gritou jubilosa, e, baixando-se, apanhou uma soberba lebre que, ferida na cabeça, ainda não acabara de morrer.

Lenita tomou da rapariga a macia alimaria, examinou-a com volupia orgulhosa de caçadora apaixonada e triunfante, afagou-lhe o pelloo sedoso, passou-o de encontro ao rosto; depois meteu-a em uma bolsa de malhas, entregou-a com cuidado à mulata.

Ia clareando o dia; rareava o véo de neblina. O negror indeciso da mata transmutava-se em verdura. Distinguiam-se as moitas festivas das taquáras, os penachos luzidios dos palmitos, as copas opulentas das paineiras, revestidas literalmente de um tapete côr de rosa, pela infloração precoce.

Perfumes agudos de orkhideas fragrantes, refrescados pelas brisas matutinas, deliciavam o olfacto, sem irritar e sem adormentar os nervos.

Ouvia-se o gorjear dos passaros, o zumbir dos insectos que, em hymno festivo, saudavam o despontar do dia.

Lenita e a mucama penetraram na matta: ahi tudo era escuro, tudo era treva. O diminuto orvalho, cahido durante a noite, se condensára nas folhas, e pingava, batendo docemente, surdamente, na camada de folhas seccas que juncava o solo.

Os pulmões hauriam à larga o oxygenio puro, exspirado da vegetação ambiente.

As duas companheiras caminharam pelo largo carreadouro, até que chegaram a uma peroveira alta, de juncto a qual partia a picada, entranhando-se pelo matto, á esquerda. Por ahi enveredaram, seguiram, até que pararam juncto de uma canelleira esguia, em fructificação temporã.

Dominava o silencio, quebrado apenas pelo gottejar manso e raro da orvalhada tenue.

Lenita mandou que a mucama se afastasse um pouco, que se sentasse, que se escondesse juncto de outra arvore qualquer. Olhou para cima.

A folhagem da canelleira recortava-se indecisa no céo obscuro: de subito accentuou-se, amarellou em partes, como si a tivesse borrifado um jacto de ouro liquido; beijára-a o primeiro raio de sol do dia nascente.

Por cima já luz, vida; por baixo ainda escuridade, mysterio.

Uma sombra escura cortou veloz o espaço: era um jacú guassú. Pousou, balançando-se, em um dos galhos baixos. Ao assentar colheu vagaroso as asas que trazia pandas, librou-se ainda nellas, fechou o leque formosissimo da longa cauda, estendeu o pescoço, cauteloso à direita e à esquerda.

Após momentos de observação, trepou pelo galho, marinhou aos pulos por entre a folhagem, sumiu-se, surgiu no pino da copa, mostrando, banhada de sol, a sua barbela rubra.

Lenita, pallida de emoção, com o seio a arfar, com os nervos frouxos, sentindo dobrarem-se-lhes as pernas, olhava, contemplava extatica a ave elegantissima.

Fazendo um exforço de vontade, aperrou a arma, ergueu-a lentamente, mollemente, pol-a em mira.

Não desfechou, não teve animo: retirou-a da cara, e poz-se de novo a contemplar o alector.

De repente seus olhos brilharam em um como relampago negro, contrairam-se-lhe as feições, seus dentes brancos morderam o lábio rubro, e, fria, resoluta, ella encarou pela segunda vez a espingarda, fez pontaria, puxou o gatilho, o tiro partiu.

O jacú, fulminado, revirou, despencou, veiu bater no chão com um som baço, abafado.

Saltando como um felino, Lenita empolgou-o tremula de felicidade e prazer; ergueu-o à altura do rosto, soprou-lhe as pennas salmilhadas do peito, queria vêr-lhe os ferimentos. Com volupia indicivel sentia humedecerem-se-lhe os dedos no sangue tepido que escorria.

A arma ainda estava descarregada, quando ouviu-se um vôo forte, sacudido, estalado.

Lenita levantou o olhar.

No mesmo galho, de onde derrubára o jacá, uma pomba legitima fazia brilhar ao sol em reflexos furtacores o seu collo gracioso.

Lenita abriu ligeiro a espingarda, carregou-a, levou-a á cara, fez fogo, e a nova vitima cahiu ferida, pererecando em desespero, nas vascas da agonia.

A mucama, com os olhos brilhantes, com as feições expandidas pelo enthusiasmo, acudiu a metter na bolsa os passaros mortos.

— Uma pomba e um jacú, d. Lenita! exclamou cheia de jubilo.

— Silencio!

No galho fatal um tucano acabava de pousar: virava e revirava, para um e para outro lado, o seu grande bico esponjoso. Era uma maravilha o effeito de suas pennas dorsaes a contrastarem negras com o alaranjado soberbo da gorja, com o vermelho vivo do peito: ao vê-lo ostentando ao sol ardente do tropico os esplendores dos seus matizes, dir-se-ia um ente phantastico, uma flor animada, viva, que viera voando de uma região desconhecida, que se fixára naquella arvore.

Um tiro certeiro de Lenita fel-o tombar, e depois a outro, mais outro e a araçarys, e a pavôs, e a aves de bico redondo — uma carnificina, uma devastação.

Eram quase dez horas: o sol ia em alto, derramando torrentes de luz, enlanguecendo, a beijos de fogo, as folhas largas do cahetê, as folhas cordiformes da periparoba. No céo muito azul esgarçavam-se nuvens muito brancas, e nesse festival de cores alegres punha uma nota negra um corvo solitário, perdido na amplidão.

Fazia calor.

—São horas, já passa até de horas de almoçar, disse Lenita. Vamo-nos embora, amanhã voltaremos.

—Que caçadão, d. Lenita. Dezenove pássaros grandes e uma lebre. Não perdeu um tiro.

—Eu nunca perco tiro, respondeu a moça com fatuidade.

—Então é como eu, disse uma voz por traz de ambas, tambem não perco tiro.

Era Barbosa.

A espingarda cahiu das mãos de Lenita: com o coração relaxado, incapaz de injectar sangue nas arterias, descorada, quasi sem vêr, ella teve de encostar-se ao tronco liso da canelleira, para não tombar desamparada.

—Que é isto, minha senhora; que é isto, Lenita, acudiu Barbosa, segurando-a sollicito.

— Tive um tal susto... murmurou a moça mal recobrada.

— Perdoe-me, fui imprudente. O desejo que tinha de vel-a, o prazer de causar-lhe uma surpresa... perdoe-me, sim?

E tomou-lhe as mãos frias que apertou nas suas.

— Perdoar-lhe ? Si lhe agradeço tanto o ter-me antecipado um pouco o gosto de vel-o. Como poude chegar a esta hora? O trem só passa pela estação da villa ás 3 horas da tarde?

— E’ que vim a cavallo, para ganhar algumas horas. Caminhei a noute toda. Quando cheguei a Jundiahy, hontem, já não alcancei o trem. Tinha de estar lá, à espera, até agora: não tive paciencia.

— Não escreveu, não deu parte de que vinha...

— Eu não esperava terminar os negocios antehontem, como terminei. Os homens estavam teimosos, tinham-se encastellado na sua proposta. De repente, quando eu menos esperava, mudaram de accordo, cederam, acceitaram as minhas condições, e ficou tudo acabado.

— Satisfatoriamente?

— O mais satisfatoriamente que era possível esperar.

— Meus parabens sinceros.

— Obrigado. Mas que mortandade, que São Bartholomeu! Arrazou a passarada. Caspite! Araçarys, tucanos, pombas, sabiacys, um jacú e um serelepe... não, não é serelepe, um candimba, uma lebre, e grande! Sim senhora! E’ uma Diana.

E com ares de amador enthusiasta examinava as peças de caça.

— Diga-me, perguntou-lhe a moça, como se chamam estes passaros verdes, de bico redondo?

— Chamam-se sabiacys.

— No Brasil os psittacidios serão representados sómente por arás e papagaios?

— Em S. Paulo, pelo menos, são.

— Quantas especies temos de papagaios?

— Ao certo, que eu saiba, seis: tuins, periquitos, cuiús, sabiacys, que são estes, baitacas e papagaios propriamente ditos.

— E de arás?

— Quatro: tirivas, araguarys, maracanãs e araras.

— Ao todo, dez?

— Que eu conheço; no sertão pode haver mais.

— Lá ia eu com a minha marotte scientifica! Basta, basta de ornithologia. Deve ter chegado cançadissimo e morto de fome.

— Cansado, não; com algum apetite, sim.

— Pois vamos, vamos almoçar.

— Confesso que almoçarei com prazer.

E seguiram.

Era imensa a alegria de Lenita, a gratidão mesmo em que se achava para com Barbosa por tel-a vindo surprehender na matta, por não tel-a esperado em casa. Sentia-se lisonjeada em seu orgulho de mulher. E mais, Barbosa esquecera ou fingira esquecer os justos, mas injustificaveis arrufos da vespera da partida. Amava e adquirira a convicção de que era correspondida.

No percurso da picada que mundo, que infinidade de pequenos gosos! aqui um tronco podre, deitado, a transpôr; alli, um ramo espinhoso a evitar; uma ladeira ingreme, escorregadia a subir. Barbosa, nessas dificuldades, ajudava-a, tomava-lhe a espingarda, davalhe a mão. Ela deixava-o fazer, acceitava-lhe o auxilio, não porque se sentisse fraca, porque precisasse; mas para dar-lhe a elle o papel de forte, de protetor. Achava uma delicia inefavel em ser mulher para que Barbosa fosse homem. A voz mascula, doce, de Barbosa acariciava-lhe o ouvido, acalentava-lhe o cerebro, envolvia-a em uma como athmosfera de harmonia e amor.

Insensivelmente, sem darem fé da distancia chegaram à casa.

Esperava-os na porta o coronel.

— Com que então não foi difícil encontrar a Lenita, gritou ele.

E atentando na caça: Deixa ver isso, rapariga! Ih! que razoura! No matto não ficou passaro! Esta menina! Olhe, você devia ter nascido homem... e quem sabe se você não é mesmo homem?

Lenita córou até ás orelhas.

O coronel não se deu por achado da inconveniencia.

— Vamos, vamos almoçar, que Manduca deve estar a tinir: fez a loucura de caminhar a cavalo a noite toda. Vamos!

O almoço correu bem, mas terminou desagradavelmente. Quando estavam tomando café com leite, terminação obrigatoria do Almoço rural paulista, entrou na sala uma preta velha, assustada.

— Acuda, sinhô! disse ,Maria Bugra está morrendo!

— Onde está ella? que é que tem? perguntou surpreso o coronel.

— O que ella tem eu não sei. Está ahi na sala de fóra, eu a mandei trazer para ahi.

O coronel levantou-se, sahiu a vêr, afflicto, tropego. Barbosa e Lenita seguiram-no.

Na sala de entrada, sobre uma marqueza forrada de couro, encostando-se a um travesseiro de marroquim que fora encarnado, estava uma preta fula ainda moça.

Estertorava com a face tumefata, com os tendões do pescoço retezados; os olhos protrahiam-se das orbitas; as pupillas enormemente dilatadas tinham feito desapparecer os limbos do iris. Das commissuras dos labios contrahidos e deformados escorriam fios de baba, viscosos, resistentes, translucidos.

O coronel abeirou-se da enferma, tomou-lhe o pulso.

— Veja isto, Manduca, que pensa você?

Barbosa approximou-se por sua vez, procurou sentir o calor da preta na pelle do rosto, encostando-lhe o dorso da mão, achou-a fria; tacteou-lhe o pulso, encontrou-o debil, espaçadissimo; belliscou-a , ella não pareceu dar acordo disso.

— Como principiou esta molestia? perguntou elle á preta que tinha ido dar parte.

— Eh! sinhô moço! Maria estava no paiol, debulhando milho, muito socegada. De repente entrou a queixar de anciedade, levantou, andou vira-virando, entrou a gritar, a fallar as cousas á tôa. Batia com a cabeça, escumava, queria morder gente, parecia mesmo que estava louca. Depois perdeu o sentido, cahiu, ficou assim como está. Eu mandei trazer para aqui, fui chamar sinhô.

— Sim! Faz muito tempo?

— Não, sinhô moço, foi agora mesmo.

— Comeu ella ou bebeu alguma cousa?

— Ella almoçou, há de fazer duas horas.

— Não bebeu nada?

— Bebeu café, uma meia tijella.

— Donde veiu o café?

— Veio da senzalla de pai Joaquim.

— Joaquim Cambinda?

— Sim, sinhô moço.

Barbosa foi ao seu quarto e, após breve demora, voltou com um frasquinho, meio de um liquido claro como agua. Pediu uma colher; trouxeram-lh’a. Chamou a enferma, juncto do ouvido:

— Maria!

A negra não respondeu.

— Maria! repetiu ele em voz mais alta.

A preta tentou sahir do estado soporoso em que se achava, procurou levantar a cabeça, não conseguiu; deixou-a recahir pesadamente no travesseiro, proferindo uns sons inconnexos, semi-inarticulados. De sob as suas roupas exhalava-se um cheiro fetido de materias fecaes.

Barbosa, vendo que nada poderia obter, que a vontade estava alli aniquilada, passou o frasquinho ao coronel.

— Vou abri-lhe a bocca com a colher; vossa mercê despejará dentro o conteudo deste vidro.

— Todo?

— Todo; é uma dose forte de emetico; convem fazel-a vomitar.

Introduziu com algum custo o cabo da colher entre as arcadas dentarias da doente, e, fazendo delle uma alavanca, descerrou-lhe os queixos.

— Agora, meu pae!

O coronel vazou dentro da bocca, entreaberta á força, o liquido todo do vidrinho.

— Engula! gritou Barbosa.

A negra fez um exforço, deu um safanão violento, a colher saltou longe, e o liquido, revessado, caiu sobre a marqueza, correu para o assoalho. A deglutição era impossivel.

— Não será bom mandar chamar o doutor Guimarães?

— Inutil, meu pae; nada ha a fazer neste caso.

— Assim mesmo...

— O doutor Guimarães só poderia estar aqui á noite, e dentro de uma hora a preta já terá morrido.

— Manduca, olhe...

— Sei o que isto é, meu pai; não ha mesmo nada a fazer.

O coronel voltou triste para a sala de jantar; Lenita e Barbosa voltaram com elle.

Sentaram-se juncto de uma uma janella abatidos: a molestia da preta lançára-os em um desanimo profundo, em uma appreensão de vagas ameaças, de perigos desconhecidos.

Entreolhavam-se, não ousando arriscar um dito, uma palavra.

E todavia essa reserva pesava-lhes, era-lhes incomportavel o silencio.

Quebrou-o Barbosa.

— Meu pae, a Maria Bugra morre, e sabe vossa mercê de que morre ella?

— Tenho medo de o saber.

— Vejo que me comprehendeu. Morre do que têm morrido varios escravos aqui na fazenda, morre envenenada.

— È bem possivel.

— Não é possível, é certo. Lembra-se da morte do Carlos, da do Chico Carreiro, da do Antonio Mulato, da Maria Bahiana?

— Perfeitamente!

— Não apresentaram elles os mesmos symptomas que apresentou e está apresentando agora a Maria Bugra?

— Homem, com effeito! Apresentaram.

— Excitação violenta mas passageira, delirio, depois paralysia quase completa, face tumida, conjunctivas injectadas, olhos saltados, dilatação de pupillas, deglutição impossivel, queda de pulso, esfriamento geral, incontinencia de urina e de fezes?

— Exato.

— Pois tudo isso, estou convencido, é consequencia da ingestão de um veneno terrivel, infelizmente muito comum entre nós, a atropina.

— Muito comum entre nós, a atropina?!

— Sim senhor.

— Pois a atropina não se tira da belladona?

Tambem se tira da belladona.

— E onde encontrar a belladona? No Brazil só poderá haver belladona em algum horto botanico.

— Meu pae não conhece aquillo que alli está? E Barbosa apontou para um vasto tracto de terreno, coberto de plantas baixas, escuras, de folhas repicadas, de flores brancas, em forma de trombeta.

— Conheço, respondeu o coronel, é figueira do inferno, mamoninho bravo, um veneno terrivel, dizem. Mas você fallou em atropina.

— Scientificamente a figueira do inferno chama-se datura stramonium; extrai-se della um alcaloide venenosíssimo, a que se chama daturina: Ladenburg, porém, e Schmidt verificaram nestes ultimos tempos que a daturina é pura e simplesmente a atropina, a mesma letal atropina que se obtem da belladona.

— E a sua convicção é...

— Que Maria Bugra morre envenenada por uma decocção fortissima de sementes de datura, e, consequentemente, por atropina.

— E tem suspeita de quem tenha sido o propinador do veneno?

— Não tenho suspeita, tenho certeza.

— Quem pensa que foi?

— Joaquim Cambinda.

A esta acusação precisa, formal, convicta, o coronel baixou a cabeça. Pensava. Barbosa tinha razão. Perdera a fazenda varios escravos mortos todos de uma molestia esquisita, que apresentava invariavelmente o mesmo cortejo de symptomas. E isso começára depois de que viera Joaquim Cambinda. Esse preto, tinha-o elle recebido com outros em herança de uma thia, já velho, incapaz de trabalhar. Nunca exigira delle serviço; dera-lhe até para morar, a pedido seu, um paiol largado, independente, no fundo do terreiro. Tempos havia, morrera na fazenda um feitor branco: a viuva, lembrava-lhe bem, tinha feito um berreiro enorme, infernal, dissera que o marido sucumbira a cousa feita, accusára terminantemente a Joaquim Cambinda. Não dera elle, coronel, importancia á accusação, e essa accusação ressurgia, feita agora por seu filho, homem inteligente, ilustrado, muito sisudo.

— Em que se estriba você para inculpar o negro velho? perguntou após minutos de meditação.

— Em muita coisa. Primeiro, os factos, os envenenamentos indiscutiveis, e que só começaram de dez annos a esta parte, depois que Joaquim Cambinda veio para a fazenda: eu cá não estava, mas por informações acho-me ao corrente de tudo. Em segundo lugar a fama de mestre feiticeiro que tem ele em todo o municipio: várias pessoas de criterio têm-me interrogado a esse respeito. Depois, surpreendi-o eu mesmo, outro dia, a seccar cabeças de cobra, raizes de cicuta e de guiné, sementes de datura. E mais... ele tinha seus aggravos de Maria Bugra...

E Barbosa acentuou estas palavras, olhando para Lenita.

— E’ verdade, sei, até já tive de tomar providencias por causa disso. Mas são presumpções apenas...

— Que, reunidas, fazem convicção.

— Precisamos de tirar isto a limpo.

— E’ o meu modo de entender: não podemos deixar correr à revelia uma coisa de tanta gravidade.

Realizaram-se as previsões de Barbosa: o estado soporoso de Maria Bugra passou para coma, e o coma para morte.

A’ tarde, ao escurecer, depois da revista, o coronel mandou chamar Joaquim Cambinda.

O medonho negro veio arrastando os pés, escorando-se em um bordão, a rojar pelo solo a imunda coberta parda, de que sempre usava.

Chegou, entrou na ante-sala, largou o bordão a um canto.

O cadaver de Maria Bugra ahi estava, sobre a marqueza, no meio da quadra, inteiriçado, coberto por um lençol fino que lhe desenhava as formas duras, angulosas. Quatro velas de cera allumiavam-no lugubremente, casando os seus clarões aos últimos clarões do dia.

Por entre o cheiro acre de vinagre ferrado e o cheiro enjoativo da alfazema queimada, percebia-se um cheiro fetido, um fortum de carne podre, de decomposição cadaverica.

Joaquim Cambinda entrou, olhou com indifferença para a defunta, dirigiu-se ao coronel que, juncto com Barbosa, ahi o esperava.

— Vá sãos cristo, sinhô. Sinhô mandou chamar negro velho, negro velho está aqui, disse na sua algaravia barbara, horripilante, impossivel de reproduzir.

— Sabe quem está alli morta, Joaquim?

— Sei, é Maria Bugra.

— De que morreu, não sabe?

— De suas molestias della.

— Que molestias?

— Eu não sei, eu não sou doutor.

— Então você não sabe, não é doutor? Não sabe tambem de que morreu a Maria Bahiana, o Antonio, o Carlos, o Chico Carreiro?

— Como quer sinhô que eu saiba?

— Se você não confessar tudo o que tem feito, aqui, direitinho mando-o acabar a bacalhau, sô feiticeiro do diabo!

— Ah! Sinhô! Feiticeiro, negro velho, que não tarda a ir dar contas a Deus do feijão que ele comeu!

— Deixe-se de histórias, de mamparras, vamos! Com que matou você a Maria Bugra?

— Não matei com coisa nenhuma, sinhô. Como hei de eu confessar uma coisa que eu não fiz?

— Se fez ou se não fez é o que vamos já saber. Pedro, João, venham cá, agarrem-me este patife.

À porta a negrada acotovelava-se curiosa estendendo uns o pescoço por sobre os ombros dos outros.

Os dois pretos chamados abriram caminho, empurrando os companheiros, entraram na ante-sala.

— Segurem-me este tratante, conduzam -n-o á casa do tronco. Eu já lá vou. Levem o bacalhau e uma salmoura forte.

— Que é que sinhô vai fazer comigo? inquiriu rapido Joaquim Cambinda.

— Você vai vêr.

— Sinhô, Joaquim Cambinda nunca apanhou de bacalhau...

— Vai apanhar agora; será então a primeira vez.

Operou-se uma revolução medonha em Joaquim Cambinda. Atirou ele para longe de si a coberta esfarrapada, endireitou o busto derreado, ergueu a cabeça, cerrou os punhos e encarou o coronel. Scintillavam-lhe os olhos, os beiços arregaçados deixavam vêr os dentes.

— Ah! você quer saber, eu digo: fui eu mesmo que matei Maria Bugra.

— E por que a matou você?

— Porque ella comia o meu dinheiro, e me enganava com a crioulada nova.

— E os outros, o Carlos, a Maria Bahiana, o Chico Carreiro, Antonio Mulato?

— Fui eu mesmo que matei a todos.

— E porque?

— Maria Bhaiana pelo mesmo motivo que me fez matar Maria Bugra. Os outros para fazer mal a sinhô.

— Para me fazer mal? Porque? Pois você não é o mesmo que forro? Exijo eu algum serviço de você? Não lhe dou moradia, roupa, comida? Por que me quer mal?

— Já que principiei a fallar, irei até o fim. Sinhô é bom para mim, é verdade, mas sinhô é branco, e obrigação de preto é fazer mal a branco sempre que pode.

— Matar-me cinco escravos!

— Cinco! Só crioulinhos mandei eu embora dezesete. Negro grande, nem se falla: Manuel Pedreiro, Thomaz, Simeão, Liberato, Gervasio, Chico Carapina, José Grande, José Pequeno, Quiteria, Jacyntha, Margarida, de que é que morreram? Fui eu que matei todos.

Ergueu-se grande sussurro de entre o grupo de negros. Ouviam-se gritos, imprecações.

— Agora também você está mentindo: José Pequeno morreu picado de cobra.

— Qual cobra! A cobra que o picou não tinha veneno. Elle morreu, mas foi da beberagem que eu lhe dei para o curar.

— Mas todos esses pobre diabos eram pretos como você. Para que os matou?

— Para sinhô ficar pobre: eu queria ver sinhô se servir por suas mãos.

— E a mim nunca pretendeu você matar?

— Matar, não: fazer penar só.

— Então sempre me queria fazer alguma cousa?

— Queria fazer! Eu fiz mesmo.

— Fez? Que é que me fez você?

— Esse seu rheumatismo, sinhô, então que é? Entrevamento de sinhá velha donde vem?

E o negro deu uma gargalhada feroz.

O coronel ficou aterrado.

— Levem, levem daqui esta serpente! gritou Barbosa. Metam-n-o no tronco, não quero mais vel-o. Vai para a villa amanhã.

Os negros apoderaram-se de Joaquim Cambinda, que não offereceu resistencia, rodearam-n-o, levaram-n-o a empurrões para o meio do terreiro.

— Então foi você que matou meu pai! dizia um.

— Minha mãe! bradava outro.

— Meus tres filhinhos tão bonitos, que entraram a inchar de repente, na cabeça e na barriga, a amarellar e que morreram com as perninhas finas como pernas de rã! lamuriou uma negra e, tomando do chão um caco de telha, bateu com elle na cara do feiticeiro.

Foi como que um signal.

Os negros todos achegaram-se a Joaquim Cambinda, uns davam-lhe punhadas, outros escarravam-lhe, outros atiravam-lhe areia nos olhos.

— Peste do diabo! Coisa ruim!

— Feiticeiro do inferno!

— Enforque-se já este demonio!

— O melhor é queimar!

— Que se queime! Que se queime!

E numa confusão horrorosa foram arrastando o desgraçado.

Ao pé do paiol estava um montão de sapé secco, e junto delle uma mesa velha de carro, com uma roda só, desconjuntada, meio podre.

Em um momento amarraram o misero sobre essa mesa de carro, apesar da resistencia louca que ele então procurou fazer, a pontapés, a coices, a dentadas.

Trouxeram sapé, aos feixes, encheram com ele o vão que ficava por baixo da mesa.

— Kerosene! gritou uma voz, tragam kerosene!

Um moleque correu ao engenho, e de lá voltou com uma lata quasi cheia.

Um preto tomou-lh’a, subiu à mesa do carro, começou a despejar petroleo sobre Joaquim Cambinda: o líquido corria em fio farto, claro, transparente, com reflexos azulados, resaltava do peito pilloso do negro, da sua calva lustrosa, embebia-se-lhe nas roupas immundas, misturado, confundindo com o suor que manava em camarinhas. Os olhos do miseravel revolviam-se sangrentos, seus dentes rangiam, ele bufava.

— Phosphoros! Phosphoros! Quem tem phosphoros? perguntou o preto, depois que esvaziou a lata, e que fez desapparecer Joaquim Cambinda sob um montão de sapé.

— Eu! acudiu a negra que dera principio ao motim, e extende-lhe uma caixa de phosphoros.

O preto saltou abaixo, tomou-a, abaixou-se, riscou um phosphoro, protegeu-lhe a chamma com a mão em fórma de concha, encostou-o ao sapé, junto do chão.

Ergueu-se uma fumarada espessa, azul-claro por cima, côr de ferrugem por baixo; a chamma scintillou em compridas linguas gulosas, lambeu, rodeou a mesa do carro, chegou ao sapé de cima e ao corpo do negro. As roupas deste, embebidas em petroleo, fizeram uma como explosão, inflammaram-se repentinamente. Elle soltou um mugido rouco, sufocado, retorceu-se phrenetico...

Tudo desappareceu num turbilhão crepitante de fogo e de fumo.

As faulas voavam longe, e o vento carregava a distancias enormes as moinhas carbonizadas.

Sentia-se um cheiro acre, nauseabundo de chamusco, de gorduras fritas, de carnes sapecadas.