A Carne/XV
— Que lindo está o dia, exclamou o coronel, chegando à porta que dizia para o terreiro. — Um tempo firme, sim senhor! Jacynto!
— Sinhô! acudiu um preto velho.
— Para onde foi a gente hoje?
— Foi a cortar arroz, sim, sinhô.
— Onde está Manduca?
— Sinhô moço mandou ensilhar o rozilho, e foi para a banda da villa, sim sinhô.
O coronel respirou à larga o ar fresco, puro, da manhã resplendente. Dormirara toda a noite, não tivera dores, estava bem disposto. Queria expandir-se, queria conversar.
— Logo hoje que estou sequioso por uma prosa é que me foge o Manduca, é que se deixa ficar na cama a Lenita! Forte coisa! Vou fazer uma extravagância, vou dar uma volta pelo cafezal.
E mandou arrear uma egua velha, muito mansa, andadeira, uma rede, dizia elle. Sahiu, foi visitar o cafezal, coisa que fazia raramente, uma ou outra vez por anno.
Quando voltou era quase meio dia. Perguntou por Barbosa, não tinha vindo; por Lenita, ainda estava deitada. Veiu com fome, mandou pôr a mesa; emquanto esperava foi ao quarto de Lenita, bateu à porta.
— Que é isto? perguntou. Temos macacôa? — Macacoa, não; sonno; respondeu a moça.
— Ainda estava dormindo?
— Acordei com o seu batido.
— Olhe, levante-se, venha-me fazer companhia. O Manduca não sei para onde foi. Eu ainda não almocei, e não quero almoçar só sozinho.
— Já vou.
— Pois fico esperando; venha logo, que estou com o estomago a dar horas.
A cabo de meia hora Lenita appareceu. Estava palida, macillenta: tinha as palpebras vermelhas, os olhos batidos, grandes olheiras. Veiu embrulhada em uma pelliça. De quando em quando estremecia com um calafrio. Sentou-se à mesa meio de lado, alquebrada, languida.
— Melhor cara traga o dia de amanhã! Gritou o coronel ao vel-a. Parece que passou a noute no cemitério. Que é que teve?
— Uma ligeira indisposição.
— Hum! Já eu estava vendo isso mesmo hontem à noute. Ai moças, moças! Isto enquanto não casam... Que há de querer um mingauzinho de cará?
— Não, obrigada.
— Olhe estas hervas...
— Obrigada.
— Um pedaço de fiambre?
— Fiambre... quero, mas pouco, sim?
O coronel serviu-lhe uma naca larga, rósea, marmoreada de veios de gordura branca.
Lenita polvilhou-a de sal moido, comeu com apetite.
— Está gostando de salgados, hein?! Eu quando digo... Mais uma naquinha, sim?
Lenita acceitou, mandou buscar ginger-ale, bebeu um copo cheio.
Conversou com o coronel por cerca de duas horas.
Ao cair da tarde sentiu-se fraca, tomada de invencivel soneira. Recolheu-se, dormiu. Levantou-se ao escurecer. Quando ia sahindo do quarto, deu com Barbosa que, de pé junto de um consólo, fingia examinar uma estatueta.
— Boa tarde, Lenita, disse elle com voz tremula, timido, desapontado.
A moça não respondeu: com um arranco nervoso tomou-lhe a cabeça entre as mãos, curvou-a, beijou-a sofregamente, exquisitamente, no alto, afundando, sumindo o rosto nos cabellos curtos, levemente crespos.
— Lenita, segredou em voz sumida, tênue como sopro, é perigoso, podem vel-a, podem encontrl-a; Eu virei aqui, ao seu, é melhor.
— Aqui dorme a rapariga.
— Facil é afastal-a sob qualquer pretexto. Deixe as portas cerradas.
Foram para a sala de jantar.
O coronel já tinha feito accender o lampeão; estava de pé, juncto da mesa, lendo a correspondencia que minutos antes tinha chegado da villa.
— Olhe, Lenita, disse, ahi estão os seus jornaes, e tambem uma carta. Leia, leia logo a carta; é cousa que lhe interessa.
— Sim! como sabe?
— A letra do sobrescripto é mesma desta que eu recebi. Leia.
— Que será? interrogou-se a moça, rasgando o envoltorio com gesto fatigado, abhorrida. Desdobrou a folha de papel, leu sem manifestar sentimento algum, com absoluta indifferença. Depois passou-a aberta ao coronel.
— Ora! exclamou, arrastando a voz, com fastio.
— Então? Perguntou o coronel.
— Leia, está aí.
— Pois não é do Dr. Mendes Maia?
— É.
— E que lhe diz você?
— Eu digo... digo... não digo coisa nenhuma.
— Já se deixa ver que quer cala...
— Nem sempre consente. O Dr. Mendes Maia perdeu o seu tempo, a sua rhetorica, o seu papel, a sua tinta e o seu sello. Eu não me caso com elle.
— É um pedido de casamento? perguntou Barbosa, anciado.
— Em forma.
— E quem é esse Dr. Mendes Maia?
— Esse Dr. Mendes Maia é um bacharel em direito, nortista; fez seu quatriênio, e está na corte, à espera de um juizado de direito aqui na provincia.
— E donde o conhece D. Lenita?
— De Campinas. Estivemos junctos em um baile, no Club Semanal, há de haver três annos. Dançou comigo, fez-me a côrte por duas horas, e agora pede-me em casamento.
— Meu pae tambem o conhece?
— Conheço: elle andou viajando por estas bandas com um primo que queria comprar sítio de café. Veiu-me recommendado de São Paulo, e até pousou aqui, uma noute.
— Que especie de homem é?
— É um bacharel em direito como a maioria dos bachareis em direito. Parece-me boa pessoa. Homem, sou franco, para mim tem um defeito capital, é nortista . No mais, não há que dizer. Lenita, que hei de eu responder ao homem?
— Boa pergunta! Responda que eu não me quero casar que agradeço muito a honra da proposta, e cousas e tal, uma tabua cortez.
— Não valerá a pena pensar um pouco antes de decidir a cousa assim de talho, sem remedio?
— Não há que pensar, não quero.
— Olhe que o rapaz, segundo me diz o meu velho amigo Cruz Chaves, nesta outra carta que recebi, tem todos os requisitos para um bom córte de noivo: é inteligente, honesto, morigerado, trabalhador, econômico, bom católico, e muitas cousas mais. Fez o seu quatriennio como promotor e juiz municipal, está à espera de um juizado de direito, como você mesmo disse, e ha de obtel-o, porque dá-se com o Cotegipe e é muito protegido pelo Mac Dowel. E tem seus cobres.
— O partido tenta, tenta, mas eu é que me não deixo prender.
— Olhe que isto não vai a matar, não é sangria desatada, pense primeiro, responda depois.
— Não há que pensar.
— Esta mocidade! Para que tomar decisões de afogadilho, quando há tempo para refletir, para pesar todos os prós e todos os contras?
— A resposta agora, ou daqui a um anno há de ser a mesma: não quero.
— Menina, ninguém deve dizer « deste pão não comerei ».
— E nem tão pouco «desta água não beberei ». Sabido, mas eu não quero mesmo.
— Bom, bom; não quer, não quer! Amanhã lá segue a recusa: que se aguente o Dr. Mendes Maia.