A Carne/XIV
O veneno da cobra, parece, deixara viciado o sangue de Lenita.
Sentia-se ela tomada de acessos súbitos de fraqueza moral, exatamente como nos primeiros tempos de sua vinda para a fazenda.
Deixara de caçar, deixara de ler; extinguira-se-lhe a sede de ciência.
Sentava-se a toda a hora na rede ou em uma cadeira de balanço e imergia em cisma. Comia pouco, quase nada.
Às vezes encostava-se à mesa, debruçava, pegava em um lapis, em uma flor, em um objeto qualquer, e virava-o, revirava-o, batia com elle em rhythmo extranho, durante tempo largo, com os olhos parados, sem expressão na face, como se estivesse a um milhão de leguas das cousas da terra.
Barbosa, por sua parte, tornára-se reservado: a confissão de amor que Lenita lhe fizera acanhava-o a elle.
Insensivelmente deixára-se prender em um laço de que não cogitára, que nem sequer suspeitára. Achava-se em posição escabrosa.
Amava a Lenita doidamente, perdidamente; sabia que era della amado; ouvira-lh’o a ella propria. Que mais? Ou cortar de vez tudo, fazer as malas, embarcar-se para a Europa, ou tornar-se abertamente amante da rapariga. A flirtation sentimental, platonica, naquelle caso, era uma imbecilidade, um cumulo de ridículo.
E Barbosa passava a mór parte do tempo em visitas e jogos pela vizinhança elle que dantes não jogava, que não visitava a ningem.
Andava pelo matto, de espingarda; mas a espingarda era um pretexto; elle não caçava.
Uma tarde, ao descambar do sol, sentou-se cançado à raiz de uma figueira branca, no centro da matta virgem, olhou para cima makhinalmente; viu um enorme quaty mundé, que o espiava da bifurcação de um galho, fazendo-lhe gaifonas com o longo focinho ponteagudo. Como si não bastasse a tentação, ouviu-se um batido de azas forte, volumoso, e um macuco gigantesco veio empuleira na figueira, bem por cima do quaty. Pousou, achatou-se em um galho , sacudiu-se, aconchegou-se, encolheu a cabeça, soltou três pios altos, seguidos, compassados. Barbosa não prestou attenção nem ao quadrupede, nem à ave. A sua espingarda continuou immovel entre os joelhos.
Por diante dos olhos, em uma como visão betitifica, esvoaçava-lhe a imagem de um pé, do pé de Lenita, branco, setinoso, brevissimo, com unhas roseas transparentes, e veias azuladas.
E elle beijára esse pé, mais do que isso, elle o sugára lentamente, por muito tempo, tendo na mão o calcanhar adoravel, redondo, rubro, onde a pressão de seus dedos deixava marcas muito brancas.
Sentia o saibo da pelle fina, velludosa, ameaçada de morte, mas cheia de vida. Seus labios como que tinham memoria, recordavam-se.
E o beijo paternalmente parvo que lhe dera na testa ao confessar-lhe ella o amor que lhe tinha. Ainda lhe hauria o perfume natural dos cabellos, o halito fresco, lacteo, são, como o que vem da boca de um bezerro novo.
Por que não acceitar esse amor que se impunha, que se dava, que se offerecia? Não procurára elle a Lenita, viera ella a seu encontro, conscia da situação, sabendo que elle era casado, que a não poderia nunca desposar legitimamente.
E sem rebuços, com impudencia castissima, fizera uma confissão que as mulheres nunca querem ser as primeiras a fazer. Gracejo não tinha sido, a occasião não era para gracejos.
Que mal adviria ao mundo de que se enlaçassem, de que se possuissem, de que se gosassem um homem e uma mulher que se amavam?
Não se podia casar com Lenita! Que tinha isso? Que é o casamento actual senão uma instituição sociológica, evolutiva como tudo o que diz respeito aos seres vivos, soffrivelmente imoral e muitissimo ridicula? O casamento do futuro não há de ser este contrato draconiano, estupido, que assenta na promessa solemne daquillo exactamente que se não pode fazer. O homem, por isso mesmo que occupa o supremo degrau da escada biologica, é essencialmente versatil, mudavel. Hypothecar um futuro incerto, menos ainda, improvavel, com sciencia de que a hypotheca não tem valor, será tudo quanto quizerem, menos moral. Amor eterno só em poesias piegas. Casamento sem divorcio legal, regularisado, honroso, para ambas as partes, é caldeira de vapor sem valvulas de segurança, arrebenta. Encasaca se, paramenta-se um homem, atavia-se, orna-se de flores symbolicas uma mulher: e lá vão ambos à igreja, em pompa solemne, com grande comitiva: para que? Para annunciar em publico, em presença de quem quizer ver e ouvir, a repiques de sino e som de trompa, que elle quer copular com ella, que ella quer copular com elle, que não ha quem se opponha, que os parentes levam muito a bem... Bonito! E a multidão de badauds, velhos e moços, machos e femeas, de olhos encarquilhados e dentes à mostra em riso alvar, dando-se cotovelladas maldosas, segredando obscenidades! Seria ridiculo, si não fosse chato, sujo.
O amor é filho da necessidade tyranica, fatal, que tem todo o organismo de se reproduzir, de pagar a divida do antepassado segundo a formula brahmanica . A palavra amor é um euphemismo para abrandar um pouco a verdade ferina da palavra cio. Physiologicamente, verdadeiramente, amor e cio vêm a ser uma cousa só. O inicio primordial do amor está, como dizem os biologos, na affinidade eletiva de duas cellulas differentemente, ou melhor, de duas cellulas differentemente electrizadas. A complexidade assombrosa do organismo humano converte essa affinidade primitiva, que deveria ter sempre como resultado uma criança, em uma batalha de nervos que, contrariada ou mal dirigida, produz a khólera de Akhilles, os desmandos de Messalina, os extases de Santa Thereza. Não ha recalcitrar contra o amor, força é ceder. À natureza não se resiste, e o amor é a natureza. Os antigos tiveram uma intuição clara da verdade quando symbolizaram em uma deusa fomosissima e implacavelmente vingativa, na Venus Aphrodite, o laço que prende os seres, a alma que lhes dá vida.
Lenita se lhe offerecia, pois bem, elle seria o amante de Lenita.
E Barbosa ergueu-se robustecido, forte, como quem acaba de tomar uma resolução definitiva; caminhou apressadamente para casa.
Quando chegou era quasi noite, já estava escuro.
Entrou no seu quarto, largou a espingarda e a patrona, riscou phosphoros, accendeu uma vela, lavou as mãos.
Sahiu.
No corredor, ao chegar á ante-sala, deu com alguém: era Lenita.
— Oh ! exclamou elle.
As mãos de ambos como que se procuravam no escuro: encontraram-se, entrelaçaram-se.
Barbosa puxou Lenita para si, quiz beijal-a na bocca, não teve animo, beijou-a ainda na testa.
Lenita abandonava-se, entregava-se, mollemente, sem resistencia.
No corredor tudo eram trevas: Barbosa não via a chamma negra da volupia que torvelinhava nos olhos da moça; não lhe via a pallidez das faces, o rubor dos labios, a arfarem tumidos, mendigando beijos; não lhe via o quebramento langue de pescoço.
A resolução tomada fraqueou, cedeu: sentiu-se Barbosa sem coragem, sem desejos, sem virilidade mesmo. Batia-lhe o coração a estos desordenados, como o de um seminarista que pela vez primeira se acha a sós com uma mulher da vida.
De repente, afastou Lenita de si com gesto brusco, fugiu desatinado.
Ouviu-se um soluço triste, dorido, que vinha das trevas do corredor.
A ceia dessa noute correu cheia de constrangimento: nem Barbosa olhava para Lenita, nem Lenita para Barbosa. Comiam, ou antes, fingiam comer em silencio.
— Esta menina precisa de tomar remedios, disse o coronel, reparando no abatimento, no apetite quase nullo de Lenita. Depois da tal historia da cobra deixou de ser o que era. Se tivesse usado da vegetalina, o caso seria outro.
Veiu o chá: quando acabaram de tomal-o, Barbosa levantou-se, deu boa noute ao pae, despediu-se de Lenita em voz sumida, soturna, cerimoniatica; chamou-lhe minha senhora.
Recolheu-se.
Lenita ainda conversou por algum tempo com o coronel. Seguia, fingia seguir bem o assumpto, fazendo observações, multiplicando perguntas, affectando muito interesse. De repente deixava escapar uma exclamação forte, descabida, deslocada, que nada tinha com o que estava tractando. Cahia em si, procurava homologar o que dissera, atrapalhava-se, confundia-se. Dava extremeções subitos, como quem recebe inesperadamente uma alfinetada. Córava, empallidecia, tinha na voz um timbre exquisisto.
— Menina, sabe você de uma cousa, disse o coronel, vá se accomodar: você não está boa. Si eu não tivesse visto que você quasi nada comeu, diria que a ceia lhe tinha feito mal. Ande, vá se deitar, procure dormir.
Lenita obtemperou sem replicar.
Foi para o seu quarto.
Um banho morno, em que se demorou, não serviu para acalmar-lhe os nervos muito pelo contrario. Arripiava-se ao perpassar da esponja, ao sentir as suas proprias mãos; a agua tepida irritava-a como se fosse um contacto humano extranho.
Sahiu, enxugou-se em uma toalha felpuda, grande, vestiu uma camiza branca de cambraia finissima, deitou-se por sobre as cobertas, de costas, bem extendida, com as mãos entrançadas por baixo da cabeça, com uma perna por cima da outra.
A cambraia molle, semitransparente, desenhava-lhe as fórmas esculpturais do busto, do ventre, das coxas, e toda essa alvura de pelle e de tela sobresahia, realçada pelo vermelho escuro do damasco da colcha. O tempo passava.
Do quarto de Lenita ouvia-se bater compassado, lento, o pendulo do velho relogio francez da antesala.
Deu dez horas, deu onze, deu meia-noite. Cada pancada do badalo na campainha soava muito distinta, muito, vibrante.
Lenita mudava de posição, revolvia-se na cama, não dormia não podia adormecer.
Uma obsessão mordente subia-lhe da peripheria do corpo, comprimia-lhe o coração, atordoava-lhe o cerebro.
Sentia picadas na pelle, tinha calafrios, zuniam-lhe os ouvidos.
Sugando-lhe as feridas feitas pelos aguilhões da cobra, Barbosa retirára um veneno, mas deixára outro. Lenita nunca mais cessára de sentir a sucção morna, demorada, forte, dos labios de Barbosa em torno às picadas, no peito do pé. A sensação extranha, deliciosa, incompatavel que produzira essa sucção perdurava, vivia; mais ainda, multiplicava-se, alastrava. Era um formigamento circular que lhe trepava pelas pernas, que lhe afagava o ventre, que lhe titillava os seios, que lhe comichava os lábios.
E ella queria Barbosa, desejava Barbosa, gania por Barbosa.
Esperar até amanhecer: uma! duas! três! quatro! cinco! seis horas! Ouvir o tic-tac do relogio, lento, medido, regular, igual, metallico; monotono, impiedoso; ouvi-lo sessenta vezes por minuto, tres mil e seiscentas vezes por hora, duzentas e dezeseis mil vezes nas seis horas que faltavam para amanhecer? Impossivel!
Ergueu-se e, descalça, em camiza, inconsciente, louca, abriu a porta, atravessou a sala, abriu a outra porta, sahiu na ante-sala, enfiou pelo corredor, parou junto à porta do quarto de Barbosa, a escutar.
E nada ouvia.
Dentro, fóra, dominava um silencio profundo, quebrado apenas pelas pulsações violentas do seu proprio coração.
Encostou o ouvido á fechadura, nada.
O seu hombro fez uma ligeira pressão sobre a folha da porta, e esta cedeu, entreabriu-se, chiando ligeiramente.
Uma lufada de ar quente, saturada de aroma de charuto havano, veio afagar-lhe o rosto, os seios, o busto quase desnudado no decote grande da camiza.
Lenita perdeu completamente a cabeça, entrou: em bicos de pés, sem fazer rumor, escorregando, deslisando, como um phantasma, abeirou-se da cama de Barbosa.
Curvou-se, apoiou a mão no respaldo da cabeceira, approximou a sua cabeça do peito do homem adormecido, escutou-lhe a respiração igual, hauriu-lhe o cheiro masculo do corpo, sentiu-lhe a tepidez da pelle.
Quedou-se por muito tempo nesse ambiente entorpecedor.
De subito o braço com que se encostava falseou: ella cahiu pesadamente sobre o leito.
Barbosa deu um extremeção, acordou sobresaltado, sentou-se, extendeu as mãos, encontrou-a, asiu-a, perguntou assustado:
— Quem é? Quem é?
A cutis morna, setinosa da moça, a macieza da cambraia que a envolvia em parte, o perfume de peau d'Espagne que de seu corpo se halava, não lhe permitiam dúvidas; mas elle recusava a evidencia dos sentidos, não podia crer. Achava absurda, monstruosa, impossivel a presença de Lenita em seu quarto, àquella hora, naquella quasi nudez.
E, contudo, era real, ella alli estava: ele sentia-lhe a carne quente, dura, palpava-lhe a pelle hispidada pelo desejo, escutava-lhe o estuar do sangue, e o pulsar do coração.
Um tropel de idéias desordenadas agitou-se-lhe, confundia-se-lhe no cerebro excitado; o raciocinio ausentou-se, venceu o desejo, triumphou a sugestão da Carne.
Sentou-se rapido à beira da cama sem largar a moça, puxou-a para si, cingiu-a ao peito, segurou-lhe a cabeça com a mão esquerda, e, nervoso, brutal, collou-lhe a bocca na bocca, achatou os seus bigodes asperos de encontro aos lábios macios della, bebeu-lhe a respiração. Lenita tomou-se de um sentimento inexplicavel de terror, quiz fugir, fez um exforço violento para desenlaçar-se, para soltar-se.
Era o medo do macho, esse terrivel medo fisiológico que, nos pródromos do primeiro coito, assalta a toda mulher, a toda femea.
Baldado intento!
Retinham-na os braços robustos de Barbosa: em suas faces, em seus olhos, em sua nuca os beijos delle multiplicavam-se: esses beijos ardentes, faminto queimavam-lhe a epiderme, punham-lhe lava candente no sangue, flagellavam-lhe os nervos, torturavam-lhe a carne.
Cada vez mais fóra de si, mais atrevido, elle desceu à garganta, chegou aos seios tumidos, duros, arfantes. Osculou-os, beijou-os, a principio respeitoso, amedrontado, como quem commette um sacrilegio; depois insolente, lascivo, bestial como um satyro. Crescendo em exaltação, chupou-os, mordiscou-lhes os bicos arreitados.
— Deixe-me! Deixe-me! Assim não quero! implorava, resistia Lenita, com voz quebrada, offegante, esforçando-se por escapar, e presa, todavia, de uma necessidade invencivel de se dar, de se abandonar.
De repente fraquejaram-lhe as pernas, os braços descahiram-lhe ao longo do corpo, a cabeça pendeu-lhe, e ela deixou de resistir, entregou-se frouxa, molle, passiva. Barbosa ergueu-a nos braços possantes, pol-a na cama, deitou-se juntco della, apertou-a, cobriu-lhe os seios macios com o peito vasto, collou-lhe os labios nos labios.
Ella deixava-o fazer, inconsciente, quase em deliquio, mal respondendo aos beijos frementes que a devoravam.
E corria o tempo.
Barbosa não podia prestar fé ao que se estava dando.
Descrente de mulheres, divorciado da sua, gasto, misanthropo, elle abandonára o mundo, retirára-se com seus livros, com seus instrumentos scientificos, para um recanto selvagem, para uma fazenda do sertão. Abandonára a sociedade, mudára de habitos, só conservára, como reliquias do passado, o aceio, o culto do corpo, o apuro despretencioso do vestir. Levava a vida a estudar, a meditar; ia chegando ao quietismo, à paz de espirito de que falla Plauto, e que só se encontra no convívio sincero, sempre o mesmo, dos livros, no convivio dos ausentes e dos mortos. E eis que a fatalidade das cousas lhe atira no meio do caminho uma mulher virgem, moça, bella, intelligente, illustrada, nobre, rica. E essa mulher apaixona-se por elle, força-o tambem a amal-a, captiva-o, aniquila-o. Faz mai : contra toda a espectativa, tornando realidade o improvavel, o absurdo, vem ao seu quarto, interrompe-lhe o somno, entrega-se-lhe... Elle a tem entre os seus braços, languida, molle, roida de desejos; aperta-a, beija-a...
E... nada mais pode fazer!
Não que o detenham preconceitos, receio de consequencias, não tem preconceitos, já não receia consequencias.
O que o detem é um exgotamento nervoso de momento, uma impossibilidade physica inesperada.
Debalde procura na concentração da vontade o tom da fibra nervosa, o robustecimento do organismo...
Sente o ridiculo da posição, desespera, tem as mãos frias, banha-se em suor, chega a chorar. Afastou-se de Lenita, dementado, louco, escalavrando o peito com as unhas.
— Não posso! Não posso! exclamou, ululou desatinado.
Deu-se uma inversão de papeis: em vista dessa frieza subita, desse esmorecimento de carícias, cuja causa não podia comprehender, nem siquer suspeitar; no furor do erotismo que a desnaturava, que a convertia em bakkhante impudica, em femea corrida, Lenita agarrou-se a Barbosa, cingiu-o, enlaçou-o com os braços, com as pernas, como um polvo que aferra a preia; com a bocca aberta, arquejante, humida, procurou-lhe a bocca; refinada instinctivamente em sensualidade, mordeu-lhe os labios, beijou-lhe a superficie polida dos dentes, sugou-lhe a lingua...
E o prazer que ella sentia revelava-o na respiração açodada; no halito curto, quente; era um prazer intenso, phrenetico, mas... sempre incompleto, falho.
Barbosa arquejante tinha impetos de levantar-se, de tomar uma pistola, de arrebentar o craneo.
Pouco a pouco operou-se uma reacção.
Sentiu Barbosa que menos agitado lhe circulava o sangue, que um calor doce se lhe expandia pelos membros, que o desejo physico se despertava, dominante, imperativo.
Recobrou-se de vez da passageira fraqueza, achou-se forte, potente, varão.
Com o impeto irresistível do macho em cio, mais ainda, do homem que se quer desforrar de uma debilidade humilhosa, retomou o papel de atacante, estreitou a moça nos braços, afundou a cabeça na onda sedosa e perfumada de seus cabelos que se tinham soltado...
— Lenita!
— Barbosa!
E um beijo vitorioso recalcou para a garganta o grito dorido da virgem que deixára de o ser...
Depois foi um tempestuar infrene, temulento, de caricias ferozes, em que os corpos se conchegavam, se fundiam, se unificavam; em que a carne entrava pela carne; em que fremito respondia a fremito, beijo a beijo, dentada a dentada.
Desse marulhar organico escapavam-se pequenos gritos suffocados, ganidos de goso, por entre os estos curtos das respirações cançadas, offegantes.
Depois um longo suspiro seguido de um longo silencio.
Depois a renovação, a recrudescencia da lucta, ardente, fogosa, bestial, insaciavel.
Pela frincha da janela esboçou-se um rastilho de luz tenue.
Era o dia que vinha chegando.
— Deixe-me! Deixe-me, Barbosa! É preciso ir, está amanhecendo, está clareando.
— Não, não! Ainda não! Aquillo não é o dia, é o luar.
— Vou! Deixe-me, deixe-me!
E, fazendo um exforço violento, Lenita escapou-se do leito e dos braços de Barbosa.
No desvão da porta entreaberta enquadrou-se, por um momento, a sua sombra indecisa. Desappareceu.
Barbosa ergueu-se, vestiu-se rapidamente, sahiu, fechou a porta, tirou, guardou no bolso a chave.
Lenita do seu quarto ouviu-lhe, contou-lhe as passadas que ressoavam fortes.
A moça estava com febre; tinha a cabeça em fogo; sentia-se zonza, atordoada; via a todo momento discos luminosos, com um nucleo que se alargava , cambiando de cores, passando do verde escuro ao vermelho cobre; ardia-lhe a garganta, a bocca estava peganhenta.
No quarto deserto de Barbosa o rastilho de luz, coado pela frincha da janella, ia bater sobre a cama desarranjada: na alvura dos lençoes amarrotados punham notas muito vivas algumas manchas de sangue frescas, humidas, rubras.