A Condessa Vésper/IX
Gaspar correu à porta da sala e atravessou-se defronte de Paulo.
— Desculpe, disse ele, mas não entre! Peço-lhe que não entre!
— Como está sobressaltado! observou o outro parando no corredor. Vinha fazer-lhe uma visita...
Gaspar deitou o chapéu, e segurou Paulo pela mão:
— Saiamos! Saiamos! Não repare não o fazer entrar, mas...
— Sei o que são estas cousas... também já fui solteiro! Descanse que não serei indiscreto.
— Não é por isso; mas é que... Desçamos, sim? Pelo caminho dir-lhe-ei o que é...
— Bem me pareceu que havia lá dentro algum contrabando!
— Efetivamente lá está alguém que não pode ser visto...
— Maganão! Não o levarei a mal. Em todo caso, precisava falar-lhe hoje.
E os dois saíram conversando, enquanto Violante atirada sobre a cama, soluçava.
Arrancaram-na desse estado duas pancadinhas sistemáticas na porta. Ela ergueu-se e correu a abrir era o toque de um dos espiões.
— Então o que há de novo!... perguntou a oriental, procurando dissimular a comoção.
— O homem passará sozinho, amanhã às quatro horas da madrugada, pela ponte de Santo Antônio. O lugar é magnífico, e a ocasião não pode ser melhor! Atira-se com o corpo ao mar, depois de sangrado...
— Donde virá ele a essas horas?
— Não vem; vai tomar o trem para uma viagem.
— Bem! Retire-se, mas não se afaste; fique aí fora até que o chame. Você tem de acompanhar-me; irei infalivelmente!
— Ordena mais alguma coisa?...
— Não.
O homem retirou-se, e Violante recolheu-se à alcova, para rezar. Acometeu-a um grande fervor religioso.
Quando Gaspar voltou, às dez horas, ainda a encontrou nas suas orações. Acendeu o candeeiro, e pôs-se a ler. Depois foi à janela respirar um pouco de ar, e viu na rua, encostado ao lampião, o homem que falara com Violante. Desceu sem ruído ao encontro dele.
— Então?... disse-lhe.
— A senhora mando-me esperar...
— Bem! resmungou Gaspar, disfarçando; o encontro é no mesmo lugar?
— Sim, senhor, na ponte de Santo Antônio. O homem passa às quatro da madrugada...
Gaspar afastou-se, afetando calma, mas levava uma grande agonia no coração. Correu à casa da irmã. Esta preparava as malas do marido.
— Você a estas horas, mano?
— Sim. Onde está Paulo? Ainda não voltou? Estive com ele até às nove horas...
— É! ele me falou de que te ia procurar.
— Diz-me uma cousa, Virgínia: teu marido sai infalivelmente esta madrugada?
— Infalivelmente. Vai a uma viagem de negócio. Por quê?
— É preciso que ele não vá!
— Por quê? Tu assustas-me!
— Porque o querem matar. Presta atenção ao que te digo; isto é um segredo perigoso, que não deve transparecer: há alguém que tenciona matá-lo esta madrugada, na ponte de Santo Antônio. Só eu sei disso, além dos encarregados do crime; por conseguinte, se descobrires alguma cousa do segredo, só eu o pagarei pela tua indiscrição. O resto fica por tua conta! Se não quiseres arriscar a vida de teu marido, evita que ele saia esta madrugada!...
Virgínia ficou aflita.
— Adeus, disse Gaspar! Faze o que te digo!
— Mas, atende, Gaspar. E se eu nada puder conseguir? Esta viagem é muito urgente. Trata-se de salvar tudo o que possuímos. Paulo não me atenderá com certeza! valha-me Deus!
— Mas se te digo que se trata de salvar-lhe a vida!
— Porém, proibida como estou de dizer-lhe que o querem matar, ele será muito capaz de me não atender!...
— Bem! nesse caso porás um sinal à janela. Às duas e meia passarei por aí fora; se naquela sacada estiver um lenço embrulhado à maçaneta, é que não obtiveste cousa alguma, e nesse caso tratarei eu de providenciar por outro lado.
— Pois bem! disse Virgínia; mas por que o querem matar?!
— É segredo... Mais tarde o saberás!
Gaspar saiu.
Paulo chegou à casa pouco antes da meia-noite.
— Então, minha querida, está tudo pronto? Mete estes pacotes em uma das malas.
Virgínia aproximou-se e deu-lhe um beijo.
— Paulo, disse ela, tenho uma cousa a pedir-te...
— A pedir-me?
— Sim. É uma cousa, que desejo muito, muito! Uma cousa para o interesse de nós ambos!...
— É a respeito do pequenito?...
— Não; é a teu respeito: Não saias hoje de casa, sim?
— Sim, não sairei hoje; sairei amanhã às quatro da madrugada...
— Ou isso...
— Mas afinal, o que tinhas tu a pedir?
— Era isso mesmo. Desejava que transferisses esta viagem...
— O que há? temos alguma novidade? sentes alguma cousa?!...
— Não sinto, mas pressinto... Faze-me a vontade, sim?
— Ora, o que, filha? Pois isso é lá cousa que se faça!... Não sabes que esta viagem é negócio muito sério?!...
— Sei, sei! mas é que...
— Deixa-te de tolices! Ora, para que te havia de dar!...
— Se soubesses...
— Se soubesse o quê?...
— Sinto-me oprimida... Receio que te vá suceder qualquer desgraça! Não partas, eu te peço, meu amigo!
— Isso é nervoso! Olha: vai para o piano. Toca um pouco de música, que a crise passa.
— Em todo o caso, se me quiseres fazer um grande serviço, não partas...
— Estás a brincar, Virgínia; pois se te disse já qual é o interesse que me leva.
— Ora, não pode haver maior interesse do que o meu em que não vás!
— Com certeza, não falas a sério...
— Falo, meu querido, falo! é que rigorosamente preciso que não partas!
— Ora, adeus! Caprichos!
— Não são! juro-te!
— Então, o que vem a ser?
— Não te posso dizer!...
— Pois sim; mas vê que me não falte cousa alguma nas malas...
— Então, sempre estás resolvido a ir!...
— Pois eu desmanchava lá uma viagem, porque... porque entrou agora a noite no quarto alguma borboleta preta, ou...
— Afianço-te que tenho razões sérias para...
— Estás agora a inventar motivos! Perdes teu tempo. Eu vou.
Às duas horas, Paulo não tinha ainda mudado de resolução. Virgínia fora gradualmente se tornando mais e mais aflita; era já entre lágrimas que rogava ao marido para ficar.
Paulo impacientava-se.
A mulher pedia-lhe por tudo que desistisse da viagem: pelo seu amor, pelo amor da mãe dele e pelo de filhinho que ela tinha nas entranhas.
— Ora, adeus! disse Paulo asperamente e perdendo afinal a paciência. Já me vai cheirando mal a brincadeira! Já te disse o que tinha a dizer! Cala-te!
E, passeando pelo quarto, gesticulava irritado. — O que ele bem dispensava era maçar-se antes de sair!
— E pensas que estou muito satisfeita?! perguntou Virgínia.
— Tolices! Estariam os homens bem avisados, se se deixassem levar pela fantasia de vocês mulheres!...
E, voltando-se para ela, disse-lhe em tom de ordem:
— Não quero ouvir mais falar aqui em semelhante cousa!
Ela passou-lhe os braços em volta do pescoço.
— Mas é que te querem matar, toleirão! Percebes? armam-te uma cilada! Eu não podia dizer tanto, porém, tu me obrigas a isso!
Paulo soltou uma risada.
— Querem matar-me!... Tem graça! Por quê?
— Sei cá. por que!... O que sei é que vais ser agredido!
— Ora, minha mulher, a senhora afinal está ridícula!
O relógio marcou duas e meia.
— Enfim, sempre vais?! perguntou Virgínia.
— Não me aborreças! disse Paulo, dando-lhe as costas.
Virgínia correu à janela.
— Que fazes? perguntou-lhe o marido.
— Previno alguém de que partes, para evitar a emboscada.
— Que alguém é esse? Que diabo quer isto dizer?!
— Já te disse tudo o que podia; insistes em ir...
— Mas, vem cá! conta-me o que há!
— Ora, Paulo! se eu pudesse dizer, mais, já teria dito!
— Onde está meu estojo de armas?
— Naquela estante.
— Fica descansada. Se houver qualquer cousa, eu saberei defender-me!
E às quatro horas, encaminhava-se Paulo Mostella para a ponte de Santo Antônio, apertando na mão um revólver de seis tiros.
As ruas estavam completamente desertas e silenciosas.