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A Conquista/XVI

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O atelier era na rua General Câmara, um pardieiro sombrio e lôbrego. Subia-se por uma velhíssima e desconjuntada escada que rangia e estalava, ameaçando ruir. Ao alto tomava-se um corredor onde nunca havia entrado raio de sol, direito aos aposentos do artista negro.

Na sala, iluminada por duas janelas, tinha ele o cavalete e o banco. As paredes estavam literalmente cobertas de trabalhos: eram telas de gênero, algumas em moldura, esboços a carvão, manchas, desenhos, caricaturas, vários estudos do natural, entre os quais uma expressiva cabeça de lazarone. Mas o que atraía os olhares era a grande quantidade de frutas: abacaxis, mangas, algumas descascadas mostrando a polpa dourada, racimos de uvas, pencas de bananas, cachos de ameixas, corbelhas de morangos, cajus, melões, melancias, todos os dons de Pomona ali estavam esplendidamente copiados. O Lins costumava dizer, quando ia ao atelier do artista: "Vou hoje à quitanda."

Quando Anselmo entrou, o pintor, de pé no meio da sala, cujo soalho desaparecia entulhado de papéis, contemplava o quadro que terminara.

— Cá estou.

O pintor voltou-se surpreendido e, dando com o rapaz, avançou sorrindo, de mãos estendidas. Estava em mangas de camisa, descalço.

— Oh!

— Já não contava comigo?

— Não, contava.

A sala tresandava a terebintina. Um gato gordo, deitado sobre larga pasta atochada, lambia as patas preguiçosamente.

— Está aqui a obra, disse o pintor timidamente. Era uma grande tela de um metro: frutas — enorme cesto transbordante: mangas, abacaxis, laranjas, uvas, pitangas. As cores eram admiráveis e sentia-se a pubescência dos pêssegos, as pitangas eram como grossas gotas de sangue — uma maravilha! Anselmo teceu os mais vivos elogios ao artista.

— Magnífico! O Lins já me havia falado.

— Ah! O Lins é muito meu amigo. Anselmo sentou-se no tamborete diante da tela e o artista continuou, sorrindo: O Lins, grande pândego! Já me pregou uma peça...

— Que foi?

— Ora! Troça. Encomendaram-me um quadro — o Lias estava passando uns dias comigo, depois da cena em casa do Madeira. Tratei de escolher as frutas. Como o amador era inteligente e rico escolhi o que havia de melhor: pêras, uvas, mangas, marmelos, metade de um melão que arranjei, por muito favor, num hotel conhecido, figos e por aí... Fiz um embrulho cuidadoso e trouxe tudo para a casa. Como era tarde não quis começar o trabalho e saí para jantar. Levaram-me ao teatro, andei em pagode até às tantas! Quando cheguei à casa já o Lins dormia profundamente. Acordando, tratei de ver se as frutas haviam sido tocadas pelos ratos e achei apenas os marmelos e duas talhadas de melão. Eu não tinha mais vintém... Imagine! Fiquei desesperado. Despertei o Lins.

— Foste tu que comeste as minhas frutas?

— Hein?

— As frutas.

— Comi ontem.

— Ora, Lins... Eram os modelos.

— Que modelos, homem?

— Para o meu quadro.

— Eu logo vi que eram frutas de quadro porque as mangas sabiam horrivelmente à tinta a óleo.

— E agora? Como há de ser?

— Não pintes frutas: apodrecem depressa. E voltou-se para a parede.

— E como te arranjaste?

— Fui ao amador e pedi que me adiantasse alguma coisa para comprar outras frutas. Comprei e o Lins, logo que as viu, muito guloso, pediu-me que, ao terminar o trabalho, não me esquecesse de lhe dar os modelos. Terrível!

— E o caso do Madeira?

— Não conhece?

— Não.

— Esse é mais sério. Custou-lhe uma sova.

— A quem? Ao Madeira?

— Não, ao Lins.

— Como?!

— O Madeira é um velhote alegre que costuma festejar o S. João com fogueira e comeizana, no seu chalé da rua dos Coqueiros. Tem em sua companhia uma irmã solteira, dama quarentona, de muita virtude. Pelo que ela diz: está solteira, não por falta de noivo, mas porque fez voto de castidade: apareceram-lhe vários partidos, alguns vantajosos e ela sempre firme no seu voto. Vive com o irmão e com a cunhada. O Lins foi levado a uma das tais festas de S. João à casa do Madeira e portou-se galhardamente. Ali pelas tantas da noite, se o não agarrassem, teria saltado a fogueira, apesar da perna dura e da vinhaça: estava como louco.

Saíram todos os convidados, ele foi o último a despedir-se. Na ocasião de retirar-se, não conhecendo bem o chalé, em vez de tomar pela porta da rua, meteu-se por outra. Fechada a casa, quando a irmã do Madeira, em camisa, recolheu-se ao leito, deitou-se em cima de um homem. Um grito de pavor e de pudor ofendido alarmou a casa — acudiram todos: o Madeira com uma bengala nodosa, a mulher com uma vela e a pequenada berrando. A pobre senhora, trêmula e pálida, olhava assombrada, encolhida, tiritando a um canto. Quando o Madeira entrou, o Lins estava sentado na cama, também assustado.

— Que é isto, senhor? — urrou o Madeira indignado. Pois eu recebo-o na minha intimidade, com toda a delicadeza, para o senhor ultrajar uma senhora respeitável, que podia ser sua mãe?

— Ultrajar?! Como? Eu ultrajei! Eu não ultrajei... não me lembro!

— Não se lembra?! Com que intuitos procurou o senhor este leito cândido?

— Eu não procurei nada, eu achei.

— E com que intenção se deitou?

— Eu? Sei lá!

— Ah! Não sabe? Pois sei eu. E o Madeira vibrou a bengala. O Lins, sentindo a bordoada, levantou-se de um salto:

— Espere! Não bata! Não bata! Espere, eu explico-me. Não bata assim, eu sou seu hóspede...

— Então explique-se.

— O senhor disse que eu ultrajei a senhora...?

— Sim, senhor!

— Pois não briguemos por isso: se eu ultrajei, caso. Disse-me o velho Madeira que custou a conter o riso, mas para manter a força moral, agarrou o Lins por um braço e levou-o até à porta da rua. A pobre senhora ficou de cama e mandou rezar uma missa em ação de graças por ter escapado com o seu voto incólume.

— É fantástico!

— Isso não é nada. O Lins tem casos interessantíssimos: é a vida mais cheia de peripécias cômicas que conheço. Sabe que ele anda agora apaixonado...?

— Por uma menina, uma vizinha.

— Sim, que tem a perna direita como ele tem a esquerda. Diz ele que vai casar para estabelecer o equilíbrio.

Riram, mas Anselmo levantando-se, lançou um olhar de inspeção às paredes do atelier e, plantando-se no meio da sala, perguntou:

— Então já se pode viver da pintura no Brasil?

O pintor encarou-o com espanto e baixando a cabeça, sorriu tristemente.

— Não entremos nesse particular, meu amigo. Se alguém vive de quadros no Brasil não é propriamente o artista, é o dourador. Vou contar um fato significativo e perfeitamente característico. Um dos homens que, entre nós, passam por entendidos em Arte, encomendou-me um quadro para a sua galeria, mandando-me, num envelope, um barbante que era a medida da tela e explicava: "Faça-me o quadro pela medida que aí vai, nem mais, nem. menos, porque é o espaço que tenho na parede." Comecei o trabalho e confesso que não fui de todo infeliz... se as frutas não eram como as do Paraíso nem por isso mereciam ser atiradas ao lixo. Envernizada a tela, mandei um aviso ao homem que, três dias depois, apareceu aqui. Mostrei-lhe o trabalho. Ele, com um ar entediado, pôs o pince-nez e, sem dar atenção à tela, fitou-me o olhar sobrecenho:

— Mas não está pronto.

— Sim, senhor.

— Como! E a moldura?

— Ah! O senhor queria que eu pintasse a moldura?

— Não que a pintasse, queria uma moldura dourada de um palmo. Não veio a medida?

— Não, senhor, talvez tenha ido para a casa do Vieitas.

— Ah! Bem... E, sem mais preocupar-se com o trabalho, contando as notas, insistiu: E o senhor cingiu-se à medida?

— Estritamente: nem mais nem menos. Aí tem o senhor. Para o homem o que ali estava eram um metro e 75 de pano, nada mais. Quem vive de Arte? Dois ou três favorecidos e não os de mais talento. O Firmino Monteiro, que é um esforçado, não consegue colocar os seus quadros e é um artista de merecimento, talvez o mais consciencioso dos nossos pintores históricos. O seu Vercingetorix lá está enrolado, a um canto do atelier, porque não há um homem que tenha uma parede bem larga para a formosa tela. Estou certo de que se o meu amador a visse mandaria retirar uns quatro ou cinco legionários dos que acompanham, à presença de César, o Chefe dos cem vales, para encravar a tela entre outras, disparatadamente. As minhas frutas estão entre a cópia de uma batalha, de Detaille e uns touros, de um pintor inglês. Por cima uma marinha do De Martino e, por baixo, uma gouache: o Rialto. Não há gosto artístico — o quadro é uma ostentação. Não há quem diga: Tenho aqui um original de fulano. Dizem todos: Estão aqui tantos contos de réis. Infelizmente esta é a verdade. É possível que venhamos a ter um público que dê apreço à obra de Arte, por enquanto temos apenas vaidosos que entendem tanto de pintura como eu entendo o grego. Agora, já que ferimos este ponto, vamos à verdade: Também não temos Escola. Aquilo que há ali na travessa das Belas Artes é um Asilo de mentecaptos. O governo, querendo proteger uns tantos homens, nomeou-os para as diferentes cadeiras do ensino artístico e, sob a cúpula daquela casa silenciosa, durante os dias lentos do ano, uma turma de rapazes desenha academias. Raramente ali aparece um modelo. Não há quem se lembre de haver feito uma excursão ao campo, de sorte que os rapazes, habituados ao exercício passivo da cópia, naquela penumbra sonolenta das salas, quando chegam ao grande ar, em face da natureza forte, cercados da luz viva, ficam encandeados e são incapazes de transmitir à tela a menor impressão de água, de céus, de campos ou de arvoredo. Uma folha que se agite basta para os desnortear, os olheirões de água dão-lhes vertigens, os matizes de uma campina deixam-nos assombrados, e o governo continua a manter aquele mosteiro de Apolo de onde saem apenas copiadores. Se um rapaz tem decidida vocação para a Arte faz como o Castagnetto — rasga a matrícula, mete-se num bote e, águas em fora, com as suas telas e os seus pincéis, uma merenda frugal e a caixa das tintas, vai pintar ao sol, sobre as águas, trazendo-nos, ainda com o cheiro das brisas salitradas do mar largo, essas esplêndidas marinhas, ou faz como Parreiras que, de quando em quando, abala para a floresta de onde volta sobraçando uma porção de estudos do natural. Há verdadeiros talentos na Academia, mas murcham logo que se habituam àquele meio merencóreo e sombrio onde há apenas cabeças pagãs estampadas em papier maché e bustos de gesso, que são verdadeiras ignomínias. O público, que vai às exposições anuais daquela casa, porque entende que Arte é o que lá está, não pede senão coisas que se pareçam com aquilo. A Academia é a mais terrível inimiga do artista.

— E afinal, como vive?

— Eu? Assim. Aqui pinto, aqui durmo; saio apenas para comer, quando é possível. Agora, felizmente, tenho dois discípulos: um dá-me o jantar...

— E outro o almoço...?

— Não, o outro paga-me.

— Então não vive exclusivamente dos frutos do seu trabalho...

— Homem, dos frutos fica-me a casca, que é amarga.

— E esse novo quadro?

— Está vendido.

— Bem?

— Nem por isso: calculo em duzentos a duzentos e vinte mil réis.

— Como isso?

— Eu digo. Sabe que estive à morte, com uma congestão pulmonar..

— Quando?

— Há uns seis meses.

— Não sabia.

— Pois estive por um fio. Estava sem vintém; pedi a um amigo que me vendesse algumas telas pelo preço que encontrasse. Mas... que deu isso? Um quadro de um metro, falo agora como o amador, foi vendido por cento e cinqüenta mil réis e as receitas sucediam-se. Já não havia meio de aviá-las quando o meu companheiro lembrou-se de pedir um pequeno crédito ao farmacêutico, tomando a responsabilidade da dívida, caso eu falecesse. O homem é generoso, aceitou. Logo que me restabeleci fui entender-me com ele sobre as condições do pagamento: "Olhe, disse-me, faça-me uma coisinha para a minha sala de jantar e ficamos quites. Agora não vá fazer um quadrinho para crianças, mesmo porque eu sou curto de vista. Faça-me alguma coisa que se veja de longe." E... aí tem.

— Mas isso é uma infâmia! — bramiu Anselmo.

— Uma infâmia? Podia ter sido pior.

— Ah! Mas eu vou escrever um artigo! Arraso o boticário! — exclamou Anselmo tomando o chapéu e a bengala. Arraso o boticário...!

— Pelo amor de Deus! Não faça tal! Eu sou um homem doente!

— Mas é uma infâmia! É uma exploração!

— Que se há de fazer?!

— É verdade! E estamos numa cidade artística, capital de um império!

— É para ver.

— Bem, adeus, Estêvão!

— Adeus! E obrigado. E, indignado, Anselmo desceu as escadas lentamente, receoso de que aquela ruinaria desabasse.