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A Conquista/XXI

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Por esse tempo o Grêmio de Letras e Artes, que já havia conseguido reunir no seu seio oito sócios dispostos a tudo, anunciou a segunda sessão. À noite, onze letrados assinaram o livro de presença e o presidente declarou que ia dar começo aos trabalhos. Fez-se um grande silêncio e foi lida a ata da sessão anterior. Logo em seguida um poeta de Niterói, já avô, pediu a palavra e, desatando um grande embrulho, anunciou a leitura de um poema.

Um calafrio percorreu a sala. Vagarosamente, o relógio da Torre de S. Francisco bateu oito badaladas quando o venerável poeta disse, com uma voz circunspecta e o gesto sóbrio de quem vai tomar uma pitada: Canto primeiro...! Às dez e meia da noite, num silêncio fúnebre, o gênio, depois de haver engolido dois copos de água gelada, anunciou: Canto segundo. O Lins dormia profundamente; Duarte, recostado, fazia castelos; Moraes arrancava fios do bigode; o presidente estava sucumbido, um dos secretários havia abandonado a mesa e, ao fundo, o Teixeira, empoado de caspa como se tivesse sobre os ombros um arminho, passeava resmungando. À meia-noite a voz do poeta anunciou: Canto terceiro. Era demais!

O Neiva deu um salto feroz:

— Hem! Canto terceiro!? Não! Você está enganado.

O Moraes rugia e Fortúnio, muito calmo, estirou os braços bocejando.

— Vou-me embora! — disse o Moraes.

— Faltam apenas quatro cantos, explicou timidamente o poeta.

— Quatro cantos! — exclamou o Neiva. E o cavalheiro pensa que eu não tenho trabalho para ficar aqui até depois de amanhã às suas ordens? Ora, meu amigo.

— Mas eu estou com a palavra.

— O senhor está com a palavra e eu estou caindo de sono.

— Senhor presidente, decida: Os meus dignos consócios entendem que a hora vai muito avançada.

— A hora está correndo... para fugir do poema, disse Fortúnio.

E o poeta continuou:

— Peço a V. Exa. que me garanta a palavra para a sessão seguinte.

— Não apoiado! — exclamou o Neiva e outros bradaram:

— Não apoiado!

— Como não apoiado? É do regimento...

— Qual regimento. Para um caso como este só um regimento de polícia. Peço a palavra, Sr. Presidente.

Mas o presidente dormia e foi necessário que um dos secretários o sacudisse para que ele desse atenção ao Neiva que gesticulava, trepado em uma cadeira.

— Tem a palavra o Sr. Francisco Neiva.

— Sr. Presidente, peço a V. Exa. que suspenda a sessão. É mais de meia-noite, as nossas famílias já devem estar alarmadas, e eu estou com fome. Não jantei ainda, saí da Ilha das Flores e vim logo para aqui. Mas se soubesse que havia uma cilada, palavra de honra: não me apanhavam.

— Cilada?!

— Pois não, Sr. Presidente: três cantos de um poema maior do que a paciência de um santo. É necessário que V. Exa. ponha cobro a tais escândalos. Se começam a fazer pilhéria como a de hoje, não dou nada pelo grêmio. Eu serei o primeiro a pedir demissão... Ah! Não há dúvida!

— Eu não sabia que os senhores não gostavam de versos.

— Perdão, gostamos de versos, mas detestamos essas coisas que o senhor fez com o propósito criminoso de destruir a obra do nosso esforço.

— Como?!

— Como!? Dando cabo da paciência dos sócios. Olhe, ali naquele quarto há dois dormindo a sono solto, aqui dormiram todos, menos eu porque queria ver até onde ia a sua coragem: foi até ao canto segundo e iria ao décimo se não protestássemos. Ora, meu amigo, ao menos por condescendência...

— Vá ser poeta assim para o diabo! — rosnou o Moraes.

— Meia resma de papel!

— Mas eu pedi licença.

— Pediu licença para ler um poema, mas não disse que era um absurdo, uma cacaria métrica.

— São alexandrinos.

— Alexandrões! Há versos ai que têm mais pés do que uma escolopendra. Senhor Presidente, meus senhores, boa noite!

Diante da disposição do Neiva o presidente suspendeu a sessão.

Para Fortúnio e Anselmo o Grêmio foi uma instituição providencial: não lhes deu glórias literárias, mas que sonos magníficos ali dormiram os dois! Certa noite, depois de uma tumultuosa sessão, como chovesse a cântaros, foram os dois entender-se com o Teixeira, chamado o "mar Cáspio", título alusivo à carambina que lhe caía da cabeça branqueando-lhe o casaco, para que lhes permitisse ficar em um dos quartos, que era chamado o arquivo e onde apenas havia jornais, um almanaque de Laemmert e uma Igta pequena a um canto. O Teixeira, que era o zelador do Grêmio, não o queria ver transformado em albergue noturno e resmungou. Mas os dois boêmios, com argumentos fortes e pondo-se logo à vontade, convenceram-no. O arquiteto saiu recomendando o maior cuidado e que não acendessem cigarros com os preciosos autógrafos que havia na pasta.

— Não há dúvida, Teixeira: dormiremos tranqüilamente e, se não houver um terremoto, hás de encontrar amanhã a casa como nola confias e Deus no céu levará ao teu ativo dois sonos repousados que vão dormir um poeta e um prosador.

— E de manhã, quando saírem, puxem a porta.

— Puxaremos a porta, Teixeira. Vai com Deus!

— Até amanhã.

— Até amanhã.

Sós, com todo o gás da casa aceso, sentaram-se nas cadeiras dos "imortais" e Fortúnio, acendendo um cigarro, estirando as pernas, rompeu o silêncio.

— Ora muito bem. Já é alguma coisa a literatura: fornece hospedagem. Graças ao nosso talento temos uma casa para dormir. Verdade é que não há cama, mas também Roma não se fez em um dia. Contentemo-nos com o quarto, amanhã virá o resto.

— Mas, a propósito, onde vamos dormir...?

— No chão.

— Com este frio!?

— Temos ali jornais, podemos forrar o soalho com jornais.

— E para nos cobrirmos?

— O Jornal do Commercio é um magnífico lençol.

— Então vamos arranjar isso, porque eu estou a cair de sono.

— E eu também, disse Fortúnio: passei ontem uma noite de cão.

— Onde?

— Na praia de Botafogo.

— Em casa de quem?

— Numa estação de policia.

— Foste dormir em uma estação!?

— Fui, não: levaram-me.

— Por quê? Que fizeste?

— Eu? Nada, mas o Duarte é louco. Era uma hora da madrugada, íamos os dois pela rua de S. Clemente, quando o Duarte viu uma barrica abandonada. Quis fazer de Diógenes e pôs-se a rolar a barrica e teria ido com ela ao Jardim Botânico se um soldado não lhe embargasse o passo. Nós, para dizer a verdade, não estávamos muito direitos e começamos a discutir com a polícia e o resultado da discussão foi o homem zangar-se ameaçando-nos com o rifle. Diante da atitude bravia do permanente, Duarte, que não é mole, espalhou-se e atirou tal cabeçada que o soldado virou de pernas para o ar e nos... é por aqui! Mas o homem levantou-se e, apitando, lançou-se desesperadamente atrás de nós e, quando íamos tomando um bonde que passava, fomos agarrados. Ah! Meu amigo, que noite! Na estação protestei, quis resistir, mas havia tantas espingardas... Quando me pediram o nome tive uma esperança e disse com arrogância:

— Fortúnio, jornalista. Mas o cabo rosnou: "Hum! É a mania de todos... Já apareceu aqui um que disse que era Fagundes Varella, outro que era o barão de Cotegipe e estava numa mona que não se lambia. Pois sim... Meta os homens no xadrez!" E lá fomos de cambulhada. Vociferei, jurei vingar-me, agarrei-me às grades, mas tive que resignar-me e fiquei com o Duarte entre uma negra bêbeda e um italiano feroz, que rangia os dentes e jurava por todas as madonas do Paraíso. Noite medonha! Às três horas entrou um sujeito que fora encontrado tentando arrombar um quiosque. Que lamúria! Esse não esteve calado um segundo. "Aí está, um homem vai com o seu dinheiro procurar alguma coisa para comer e vem um camarada dizendo que a gente está arrombando o quiosque... Eu, ladrão! Seja tudo pelo amor de Deus! Ai! Ai! E ainda por cima trazem a gente para um chiqueiro destes, cheio de pulgas... Isto até faz mal. É por estas e outras que há tanta febre amarela no Rio de Janeiro, pois não limpam o xadrez como é que a gente há de ter saúde? Um homem sai daqui direitinho para o Caju. Ai! Não é pela prisão... Quantos homens importantes têm sido presos? O Tasso... E o Tasso era um poeta supimpa! Eu só me zango porque me tomaram por gatuno. Há muita injustiça neste mundo de Deus! Um homem velho, doente, arrombando quiosques..." Depois implicou com o italiano que, cochilando, caía sobre ele: "Chega pra lá, mussiú..." E, de uma vez, atirou tamanho murro repelindo o dorminhoco que, se um soldado não acudisse, teria havido uma cena terrível, talvez sangue. Por fim, cansado, adormeci. Mas de manhã, quando tivemos de subir à presença do delegado, entre praças, no rol dos vagabundos, pela praia de Botafogo... Ah! Anselmo, quase morri de vergonha. Bondes passando, gente conhecida... Um horror! felizmente o subdelegado conhecia o Duarte, depois de muitos conselhos, mandou-nos em liberdade, mas eu fiquei sem quinze mil réis que levava.

— Furtaram-te?

— O escrivão pediu-mos sob promessa de liberdade. Estou morto.

— Vamos dormir.

Estenderam os jornais, um ficou com o almanaque de Laemmert e, cobrindo-se com as largas folhas do Jornal do Commercio, adormeceram profundamente sobre a imprensa da capital.

Acordaram com o rumor das carroças que desciam a rua, aos trancos. Fortúnio estirou os braços preguiçosamente e saiu em exploração pela casa, com esperança de encontrar um banheiro; mas apenas existia uma bica avara e os dois resignaram-se a uma fusão ligeira, dizendo Anselmo, com mau humor, sacudindo a água do rosto, como quem sacode o suor:

— Bem se vê que esta casa foi construída pelo Teixeira. O monstro é tão entranhadamente patriota que, apesar de viver no Brasil há trinta e cinco anos, ainda tem no corpo terra de Portugal. Vejam isto — um prédio, com pretensões a palácio, sem banheiro.

Voltando ao quarto rasgaram as camas e os lençóis e Anselmo teve curiosidade de ver o que havia na lata.

— Há ali alguma coisa, Fortúnio; vamos ver?

— Cuidado! Talvez sejam ossos de algum parente do Teixeira.

— Se forem ossos põe-se ali um epitáfio. Vou ver... E, sem mais hesitar, abriu a lata, lançando aos ares uma exclamação ruidosa.

— Que é? Ouro?

— Roupa branca, meu amigo! Roupa branca: uma camisa, um par de meias, ceroulas e dois lenços... Ó maravilhoso achado! Eu devia hoje mudar o meu linho e foi Deus que me inspirou.

— Pois queres vestir a roupa do Teixeira, homem?!

— Certamente.

— Mas desapareces e vai ser um trabalho para eu encontrar-te. É uma loucura.

— Qual loucura! Antes de mais nada a limpeza. Bem vês que a minha camisa está ganhando uma cor neutra, porque não é branca nem cinzenta e esta é alva como a inocência. O diabo é a gola. Ora! Ao menos andarei folgado. E, atirando para um canto a camisa neutra, vestiu a do Teixeira que rescendia suavemente a erva de S. João. Mas a gola...! Se Anselmo baixava a cabeça ia-se-lhe o queixo pelo abismo, se a levantava aparecia-lhe metade do peito. "Mas o ar penetrava livremente... era como se estivesse nu..." — disse o boêmio arregaçando as mangas compridas. Valente pescoço, sim, senhor! Valente pescoço!

— Anselmo, tira essa camisa, está indecente.

— Qual indecente! Uma camisa que cheira como o mês de Maio. Ó inveja, bem te conheço.

E vestiu as ceroulas. Fortúnio não se conteve — desatou a rir vendo o companheiro naquelas amplas bombachas. As meias cobriam-lhe o pés e ainda sobraram, como etc., etc., duas pontas indefinidas.

— O pé do Teixeira vale bem os versos do Silva. As meias parecem folhetins... com o "continua". Tanto melhor: quando estiver suja uma metade calço o resto.

— Não são meias, são inteiras.

— Em compensação, os lenços são magníficos.

— Mas tu pretendes sair assim, Anselmo?

— Por que não?

— Estás hediondo.

— Mas limpo.

— Procura um espelho.

— Qual espelho! O meu espelho é a consciência. Vamos tomar café. Se eu desaparecer na camisa, puxa-me.

— Não olhes para baixo.

— Por quê?

— Por causa da gola: podes ter a vertigem do abismo.

— Descansa — olharei para diante.

Contendo o riso, Fortúnio saiu com o companheiro. Na rua várias pessoas olharam, com espanto, a imensa gola por onde o vento entrava uivando como por um túnel. Mas o boêmio, de cabeça alta, seguia para o Java, onde fez um almoço de assobio em companhia de Fortúnio.

Às duas horas estavam no Pascoal, discutindo a literatura do Norte, quando o Teixeira rompeu, fulo de ira:

— A minha roupa, senhor Fortúnio. Pois os senhores pedem-se o Grêmio, transformam-no em hospedaria e, ainda por cima, carregam a minha muda de roupa?

— Perdão, disse Fortúnio sisudo, eu não tenho a sua roupa.

— Eu não sei quem a tem, o caso é que ela desapareceu da lata. Então está com o outro.

Anselmo, que vira entrar o Teixeira, alteou a voz, falando dos russos, mas o arquiteto interrompeu-o:

— Minha roupa! Vendo a imensa camisa, reconheceu-a imediatamente e, de braços cruzados, meneando com a cabeça, exclamou: Ora, seu Anselmo... pois você!

— Que é?

— Que é! É a minha camisa que o senhor tem no corpo.

— É tua?

— De quem há de ser?

— Pois olha, não sabia.

— Ah! Não sabia? Pois saiba então. A camisa, as meias, as ceroulas, tudo que o senhor tem no corpo.

— Perdão: as calças são minhas, o colete, o casaco, a gravata, o chapéu, as botinas...

— Eu falo da roupa branca.

— Branca é um modo de dizer: amarela, porque está encardida. Tens uma lavadeira detestável.

— Não sei, vamos ao Grêmio porque eu preciso da roupa. Quem o alheio veste...

— No Grêmio o despe, concluiu o boêmio, e fleumaticamente: Mas eu não dispo.

— Como não despes? Então pretendes ficar com o que é meu? Achas que devo andar com um colarinho amarfanhado e você aí muito janota...

— Janota com esta gola? Ora seja tudo pelo amor de Deus! Teixeira, deixa-me com a roupa. Eu quero devolver-te lavada pela minha lavadeira, que é uma artista.

— Mas eu não quero! — rugiu o arquiteto.

Das outras mesas já olhavam curiosamente quando o Patrocínio e o Moraes decidiram intervir na questão, responsabilizando-se, o primeiro pela camisa e por um pé de meia; o segundo, pelas ceroulas e pelo outro pé de meia. E o Teixeira foi convidado para a mesa tomando furiosamente uma cajuada, enquanto o queixo de Anselmo aparecia e desaparecia no abismo do colarinho.

Quinze dias depois o Grêmio de Letras e Artes, esperança do Brasil literário, fechava as portas depois de renhida discussão, que ia degenerando em pugilato. Os ilustres fundadores do grande cenáculo saíram pesarosos e convencidos de que, entre homens de letras, não há espírito de associação.

— "Não coadunam, dizia o louro secretário, homens de talento não fazem liga, é escusado. Um poeta e um romancista podem engalfinhar-se, ligar-se é que não. Isso nunca!"

E durante um mês, aos jantares, não apareceu proposta alguma para fundação de clubes literários.

Fortúnio e Anselmo sentiram profundamente, porque perdiam uma casa magnífica, posto que o Teixeira, escarmentado, não quisesse mais permitir dormidas no santuário do espírito. Resignaram-se e atiraram-se ao mundo com coragem e fé.

Uma manhã, Anselmo rondava os cafés lançando olhares compridos, quando o Neiva apareceu esbaforido:

— Ó homem! Madrugaste?!

— Não dormi.

— Como, não dormiste?

— Não, passeei: fui a Botafogo a pé, fazer horas.

— Deves estar estafado.

— E louco por uma xícara de café.

— Vamos tomar. Entraram no lava e o Neiva, servindo-se de açúcar, disse de repente: Homem, queres uma impressão?

— Preferia um par de sapatos.

— Isso agora é difícil.

— Dize lá.

— Vem comigo a bordo. Vou receber a primeira leva de retirantes.

— Os cearenses?

— Sim.

— É hoje?

— É agora. O paquete está entrando.

— A que horas poderemos estar de volta?

— Às duas. Se queres, decide-te.

— Vou. O diabo é que perco a hora do almoço.

— Almoçaremos a bordo.

— Mas... haverá ainda alguma coisa? Um navio que vem do Ceará...

— Ó homem, avia-te!

— Vamos lá. Seguiram.