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A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Purgatório/XXXI

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Beatriz continua repreendendo a Dante, o qual confessa os seus pecados. Matilde o mergulha, então, no rio Letes. Depois as sete damas que participavam da procissão (as quatro virtudes cardiais e as três virtudes teologais) o levam até Beatriz, pedindo a ela que se desvele diante do seu fiel. Beatriz tira o véu.

“Ó tu que estás além da água sagrada”
— Prosseguiu Beatriz incontinênti,
A ponta a mim voltando dessa espada,

Que de revés já fora assaz pungente —
“Diz se é verdade, diz! À culpa unida
Esteja a confissão do penitente.” —

Tanta a força mental foi confrangida,
Que a voz desfaleceu, se erguer tentando,
Expirou-me nas fauces inanida.

Esperou; disse após: — “Que estás pensando?
Responde: inda não tens nágua apagado
Lembranças do passado miserando?” —

No meu enleio, de temor travado,
Um tão confuso sim, trêmulo, expresso,
Que houve mister dos olhos ajudado.

Como em besta entesada em grande excesso,
Quebrando-se arco e corda, parte a seta
E no alvo dá sem força do arremesso,

Stando minha alma em tanto extremo inquieta
E em suspiros e lágrimas rompendo,
Perdeu a voz o som, que a língua enceta.

— “Se ao meu querer” — prossegue — “obedecendo
Tinhas fanal, que ao bem te conduzisse,
De anelos teus a mira ser devendo,

“Onde o poder de estorvos, que impedisse
Teus passos? Quais grilhões que os retivessem
Na vereda, que avante ir permitisse?

“Houve encantos, que a outros te prendessem,
E delícias, que tanto te atraíram,
Que a tua alma enlear assim pudessem?” —

Do peito agros suspiros me saíram;
Para falar-lhe apenas tive alento,
E a voz a custo os lábios exprimiram.

Tornei chorando: — “O engano, o fingimento
Ao terreno prazer me hão transviado,
Em vos nublando a face o passamento.” —

— “Se ocultaras” — falou-me — “o teu pecado,
A graveza da culpa ao claro vira
Aquele, por quem deves ser julgado.

“Mas se o réu, confessando, tem na mira
O pesar do mau feito, em nossa corte
Contra o fio da espada a mó se vira.

“Entanto, por que seja em ti mais forte
De errar o pejo e, no porvir ouvindo
Sereias, não procedas de igual sorte,

“Escuta-me, os teus prantos consumindo:
Verás que, inda sepulta, eu te guiara,
Pela contrária rota conduzindo.

“Jamais arte ou natura te mostrara
Enlevo, quanto a rara formosura
Do corpo, em pó tornado, em que eu morara.

“Se comigo baixara à sepultura
Teu supremo prazer, como arrastar-te
Pôde, após si, mortal delícia impura?

“Enganos tais sentindo saltear-te,
Aos céus alçando a mente deverias
Té minha eternidade sublimar-te,

“E não baixar do vôo, em que subias
Te expondo a novos tiros, atraída
Por jovem, por vaidades fugidias.

“Será duas, três vezes iludida
Ave inexperta; mas a seta, o laço
Pássaro velho esquiva, apercebido.” —

Qual menino, que a mãe por largo espaço
Increpa; e, baixa a fronte, envergonhado
Reconhece em silêncio o errado passo,

Tal me achava. — “De ouvir se estás magoado.
Levanta a barba!” — ainda prosseguia —
“Olhando-me, hás de ser mais castigado!” —

Com menos resistência abateria
De Europa o vendaval carvalho altivo
Ou da terra, que a Jarba obedecia,

Do que eu alcei o rosto pensativo;
Quando ela disse barba e não semblante
A malícia notei e o seu motivo.

Olhos erguendo alfim, do mesmo instante
Aos ares vi que flores não lançava
A falange dos anjos radiante.

Tímida a vista a Beatriz achava
Voltada ao Grifo, que uma só pessoa
Em naturezas duas encerrava.

Além do rio sob o véu e a c?roa
Tanto excede a beleza sua antiga
Quanto em vida as que mais fama apregoa.

E do pesar pungiu-me tanto a urtiga,
Que das cousas, que mais na terra amara
A mais cara odiei como inimiga.

Remorso tal a mente me assaltara,
Que vencido tombei: qual fiquei sendo
Sabe quem dor tão viva motivara.

Ao coração a força me volvendo
Notei a dama, que primeiro eu vira
Ao lado meu, — “Abraçai-me!” — dizendo.

Té ao colo no rio me imergira;
E correndo, qual leve lançadeira,
Das águas sobre a tona a si me tira.

Já próximo à beatífica ribeira,
Ouvi Asperges me tão docemente,
Que o não descrevo ou lembro, inda que o queira.

Matilde, abrindo os braços de repente,
Cingiu-me a fronte e súbito afundou-me;
Era dessa água haurir conveniente.

Assim purificado, ela guiou-me
Das damas quatro para a dança bela,
E cada uma nos braços estreitou-me.

— “Cada qual, ninfa aqui, nos céus estrela,
Antes que Beatriz descesse ao mundo,
Servas de ordem suprema somos dela.

“Os seus olhos verás; mas no jucundo
Lume interno hás de ter vista aguçada
Pelas três cujo olhar é mais profundo.” —

Modulando na angélica toada,
Ante o Grifo consigo me levaram:
Lá Beatriz para nós era voltada.

— “Em contemplar sacia-te!” — falaram —
“As esmeraldas que ora tens presentes,
Donde os farpões de amor te vulneraram.” —

Mais que a flama desejos mil ardentes
Prenderam olhos meus aos seus formosos,
Na adoração do Grifo persistentes.

Qual sol no espelho, nesses luminosos
Astros o Grifo se alternando, eu via
Seres dois refletir misteriosos:

Meu espanto, ó leitor, qual não seria
Vendo o objeto na imagem transmutado,
Quando constante em si permanecia?

Enquanto eu de prazer e pasmo entrado,
Esse doce manjar stava gozando,
Que sacia mas sempre é desejado,

De ordem mais alta ser manifestando
Pelo meneio, as três se adiantaram,
Por angélico estilo modulando.

“Os olhos santos, Beatriz” — cantaram —
“Oh! volve ao servo teu leal constante
A quem por ver-te os passos não custaram.

“Nos dá por grã mercê que o fido amante
Sem véu segunda formosura
Contemple nesse divinal semblante!” —

Ó resplendor da luz eterna e pura!
Quem do Parnaso à sombra descorando
E da água sua haurindo alma doçura,

Aturdido não fora, se arrojando
A tentar descrever qual te mostraste,
Quando o céu de harmonias te cercando,

Ao ar patente a face revelaste?