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A Esperança Vol. I/Clotilde/Prólogo

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Clotilde
 

 
Romance original
 
por
 
Ephigenia do Carvalhal Sousa Telles
 
Prologo
 

Eu sou enthusiasta pelo progresso, odeio as marchas de caranguejo, e com tudo vou pedir-vos, amigos leitores, que retrogradeis, não com as acções, mas tão sómente com o pensamento, a essa época em que os Mouros habitavam o nosso bello Portugal. Depois de vos fazer dar este passo, quero conduzir-vos a uma d'essas fortalezas, que elles com tanto fausto sustentavam. Mas para lá chegarmos temos ainda de caminhar: vamos subir esse monte d'alcantiladas fragas, no meio das quaes se eleva esse altivo castello. Antes de transpôrmos as chapeadas portas que a fecham, demorar-nos-hemos por um pouco para tomar folego, e gosar o bello golpe de vista que d'aqui se disfruta.

Vêde como estes rochedos se elevam airosos e soberbos sobre essa planicie que se estende a seus pés para o lado do poente, e sobre esse límpido rio que humilde lhe banha a immensa base pelo lado do meio dia, e cujos rugidos se vão repercutindo na concavidade das rochas éccoando d'umas para as outras até se perderem nas grossas muralhas que acabamos de transpôr!

Agora entremos: vamos vêr um contraste completo. — Até agora vimos a risonha naturesa enfeitada com seus esmaltes e encantos; e agora vamos escutar gemidos, vêr lagrimas, e presenciar una scena desoladôra!! Nós estamos no dia em que os pobres Mosulmanos tiveram a certesa de que a inquisição havia triumphado, e que o decreto que os expulsava para fóra d'estes doces climas estava assignado. Em seus semblantes desenha-se, em caracteres bem significativos, a dôr e a surpreza!! Mal podem ainda crêr na sua infelicidade! lêem e relêem o fatal decreto que lhe ordena deixarem este doce paiz que elles tinha fertilizado e em que á tanto tempo viviam.

Julgavam acordar de um sonho horrivel; mas aquelle decreto era uma realidade que lhe não podia deixar duvida. A verdade affugentava a illusão, e fazia brotar pranto de desespero de todos os olhos.

E aquelles desventurados não resolviam a aproveitar as poucas horas que lhe concediam para se prepararem para essa longa jornada que tinham de fazer! Como haviam de levar tantas riquezas como possuiam, fructo do seu trabalho, e da sua industria?

Deixal-as nos seus castellos para d'ellas se aproveitarem esses que eram os autores da sua desgraça? Não cabia isso no genio altivo e vingativo dos Mouros.

Leval-os! Como, se elles não estavam preparados, e tinham ordem expressa de não levarem coisa alguma. E as horas passavam umas após outras; o momento da partida não tardaria a sôar, e elles nada tinham resolvido!! Engolfados na immensidade da sua desdita não calcularam o tempo, esse relogio que anda sem cessar, e que vai marcando, imparcial, as horas da nossa vida. Um pensamento repentino veio socegal-os: enterrar os seus thesouros foi a opinião unanime de todos! Queriam entregal-os á terra aonde tinham sido gerados, e d'onde elles á força de trabalho as haviam arrancado. Não era só o rancôr que tinham a seus perseguidores, e o quererem inutilisar estas riquezas para que elles as não possuissem, que os obrigava a esta acção desesperada! é que um raio de esperança bruxoliada ainda nas trevas d'aquellas mentes desvairadas: confiavam muito em Allah, e esperavam que a sua sentença fosse revogada, e então elles podia vir desenterrar esses thesouros, escondidos agora por elles em sitios conhecidos.

Com estas ideias sahiram das suas habitações reis e vassalos a quem a desgraça tornava iguaes; todos munidos de instrumentos proprios para escavar, cada qual com mais ardor revolve as entranhas da terra para lhe confiar os seus haveres!!

Era uma scena de horror! A lua encoberta por grossas nuvens povoava a terra de sombras pavorosas! O silencio da noite não era interrompido por voz alguma humana, por que estes desgraçados havia-os a surpreza emudecido; só alguns mochos vinham com os seus lugubres gemidos despedir-se d'aquelles que por tantos annos alli habitaram! A este triste canto se misturava o sussurro que o rio fazia na sua rapida corrente, e o roçar das enchadas nas pedras que encontravam, muitas vezes d'este embate resultavam faiscas de lume! Era o desespero quem movia aquelles braços com tanto affan.

Junto a uma das muralhas havia um fundissimo poço; foi ahi que sepultaram a maior parte dos seus thesouros, e depois foi entulhado para melhor as occultar. Ao amanhecer estava tudo, o que tinham de precioso, fóra das vistas dos seus perseguidores.

Todos sabem como foi a sahida dos Mouros, e que eles não poderam voltar; por tanto muitos d'esses sitios que habitaram encerram ainda hoje riquezas fabulosas.

 
Fim do prologo