A Esperança Vol. I/Clotilde/I
Muitos seculos decorreram já desde que ou mouros foram expulsos d'este paiz; e d'essa immensa fortazela, a que vos conduzi, já nada existe, apenas alguns restos de muralhas que por sia solida construcção têem resistido á destruição do tempo. No lugar do soberbo Castello Mourisco, está hoje construida uma pequena capella consagrada á Virgem dos Remedios, e uma pequena casa aonde vive um veneravel ancião. Completo contraste formava aqui o presente com o passado!!...
Lá em baixo, para o poente, não vêdes, quasi escondida entre arvores, uma lindissima aldeia? E' para lá que vamos. E' a aldeia da Salgueirosa.
Era em abril de 1843: a primavera tinha desenrolado o seu variegado manto de flôres e folhas sobre esta formosa aldeia. As immensas planicies que se deslisam á margem do rio * * * estavam cobertas de viçosos trigos, entremeados a espaços de taboleiros do flôrido trevo que parecem lindos tapetes de velludo carmezim engastados nas verduras d'aquelle sereal. O rio orlado de altissimos chôpos, e frondosos salgueiros, fazendo semetria com os formosos olivaes que circumdam do lado opposto a formosa veiga. As encostas, e as colinas cobertas de viçosas vinhas, bellos pinhaes, e d'um variegado e esquisito matiz, formado pelas giestas que se debruçavam ao pêso da sua flôr amarella, pelas orcans de flôres roxo-encarnado, e pelas alvas flôres da estiva manchada de purpura. Um sem numero de rebanhos de pacientes ovelhas, e nedios cordeirinhos formiga, saltando por esta campina de flôres. Plumosos cantores trinam melodias pela amplidão d'esta encantadora paisagem!! Todos estes encantos fazem d'este sitio um Eden de delicias.
A aldeia de Salgueirosa está situada no meio d'este seductor espaço: todos os seus habitantes se occupam durante o dia, da cultura dos campos, e vêem depois á noite repousar no seio das suas familias, do arduo trabalho a que se teêm dado todo o dia.
Um pouco desviado da aldeia, e mesmo á beira do rio, vê-se uma elegante casinha; um jardim formoso dá entrada para esta habitação aonde quero chamar a attencão dos meus leitores. A casa tem dois andares, e é rematada por um pequeno mirante sobre o rio d'onde se gosa a magestosa vista do rio, da campina, dos bosques, das collinas, e dos rebanhos.
Esta habitação de fadas, uma quinta de muito valôr que a seus flancos se estende, pertencem a uma joven senhora descendente d'uma das mais antigas familias do reino, é orphã de pai, e mãe, e habita alli, debaixo da tutella d'um seu tio.
Na occasião em que nos introduzimos na casa d'esta senhora, estava ella em um gabinete contiguo ao mirante de que fallamos, teria 20 a 22 annos d'edade; era de estatura regular, tez trigueira, olhos pretos e vivos; cabello d'ébano, cahindo-lhe anilado sobre um elegante cólo, os labios rosados, e dentes d'um alvissimo esmalte compunha um todo seductor n'esta engraçada joven. Assentada em frente do mirante, lia com attenção e curiosiodade as — Meditações de mr. de Lamartin.
Passados alguns momentos interrompeu a leitura, fechou o livro e o foi pousar em uma estante aonde se viam as melhores obras antigas e modernas.
Um suspiro sahiu-lhe do intimo do peito; desviou os olhos do rio, e com um movimento rapido aproximou-se d'uma janella que deitava sobre o jradim. A vista da menina fitou-se sobre um canteiro d'amôres-perfeitos. As côres vivas que lhe subiram ao rosto, e o arfar apressado do seio mostravam que aquellas flôres lhe traziam á mente recordações saudosas. Uma lagrima tombou-lhe pela face assetinada, e seus labios murmuraram a medo estas palavras: Como eu te amo, Paulino, como eu te amo! e este amôr reflecte-se em tudo aquillo que te é caro! amo até aquellas pequenas flôres (e apontava para os amôres perfeitos) por que teus labios tocaram duas d'ellas, que te dei na nossa despedida.
Nova chuva de perolas cahiu dos olhos da moça e foi orvalhar-lhe a pequena e nevada mão a que tinha encostada a fronte. Guardou alguns momentos de silencio; uma tremura nervosa agitou-lhe rapidamente todo o corpo; fitou os olhos no ceu, e murmurou:
O que lhe terá succedido, meu Deus? Sua irmã dizia-me hontem que elle ha mais d'um mez que lhe não escrevia!
— Quem sabe se alguma beldade o traz preocupado a ponto de se esquecer de seus estremosos pai, irmã, e de..
A menina, ou exitou, ou pronunciou o seu nome tão baixo que só foi ouvido de Deus.
Outra idéa, não mais consoladora que a primeira se lhe apresentou na mente, porque continuou com voz tremula.
― E' isso, é, nem póde ser outra coisa, está doente sim, o coração adivinha-me que está doente!
― E sem ninguem da sua familia ao pé de si!
Torrentes de lagrimas innundaram as faces de Clotilde (que assim se chamava a nossa joven).
― Minha mãe, exclamou ella cahindo de joelhos, ― vós que tão nova me deixaste n'este mundo, pedi a Deus por aquelle, a quem meu coração exclusivamente pertence.
Uma pancada na porta do quarto fez erguer a moça lagrimosa; reconhece a voz da velha Roza, sua fiel criada, permittiu-lhe que entrasse.
A velha abriu a porta, e disse á menina:
― Vosso tio manda-vos procurar se podeis descer ao seu gabinete? Recebeu agora cartas do correio, e parece-me que veio coisa de novo, por que no fim de lêr uma d'ellas ordenou, a Leopoldo que aparelhasse os cavallos.
As duas mulheres demoraram-se alguns minutos n'esta convervação, e o tio de Clotilde, em vez de esperar que a sua sobrinha descesse ao seu gabinete, subiu elle para os aposentos da menina. Quando a criada acabava de dar a sua noticia, appareceu á entrada do gabinete o snr. Anselmo da Cunha.
Tentaremos esboçar o retrato do tutor de Clotilde.
Era um homem de 60 annos d'idade, pouco mais ou menos; baixo, gordo, olhos pequenos e penetrantes (que elle trazia escondidos debaixo d'uns occulos verdes) e labios grossos, quasi sempre entre-abertos por um estudado sorriso d'amabilidade.
Seu caracter egoista, e avarento tornava-o pouco digno da estima das pessoas de probidade.
Sendo o parente mais proximo de Clotilde, foi nomeado seu tutor. Elle aceitou com gosto este encargo, porque a administração dos bens da sua pupila podia, em parte satisfazer a sua desmarcada ambição.
Clotilde tinha 14 annos, quando perdeu seus paes; tinha um genio altivo, e caprichoso, e o snr. Cunha entendeu que o melhor meio de conseguir tudo o que quizesse era mostrar-se condescendente com a vontade da sua pupila.
Ella desejou viver na casa em que viveram seus pais, e pediu a seu tio para virem habitar na Salgueirosa, ao que elle annuiu.
Clotilde passava os dias instruindo-se: levantava-se muito cedo, e em quanto a familia dormia, ella lia nas obras mais suas prediletas, e assim se entretinha até ao almoço; depois descia para o jardim, na cultura da qual ella achava distracçao; no fim d'algumas horas colhia um ramalhete, e voltava para o seu quarto aonde se assentava ou em frente do seu cavalete de pintura, ou junto da sua harpa de que desprendia suavissimas melodias, ou se debruçaba sobre o vestidor, aonde com mão ligeira bordava, ora uma paisagem, ora um ramo de flores, ora scenas pastoris, tudo fructo dos seus habeis pinceis.
Ao pôr do sol, largava o trabalho, e acompanhada da velha Rosa encaminhava os seus passos ou para o cemiterio da aldeia, ou para alguma cabana aonde eram precisas consolação e esmola, que ella prodigalisava com compassiva mão.
O snr. Anselmo, occupado com a administração da caza nunca acompanhava a sua sobrinha n'estas caritativas pisadas; e fóra as horas da comida poucas vezes se viam.
Como iamos dizendo, o snr. Anselmo appareceu no gabinete da menina quando a velha lhe estava dizendo que havia em caza novidade. Clotilde fitou em seu tio um olhar curioso, e alli disse-lhe:
Eu venho despedir-me de ti, minha filha, por que vou a caza do marquez de Santa Eulalia, recebi hoje uma carta do filho do barão do Franco em que me diz que o seu companheiro Paulino de Sousa está em perigo de vida, e rogava-me o partecipasse ao pai do pobre moço. Vou por tanto dar hoje esta triste nova ao bom marquez; e venho saber se tu queres alguma cousa para a sua interessante filha.
O velho fallava, mas Clotilde já não o ouvia! uma pallidez mortal tinha substituido o colorido de suas faces, e os olhos immoveis e secos deixavam conhecer uma d'essas crises moraes em que nem nos é dado o allivio das lagrimas. O snr. Cunha reparou então no transtorno das feições de sua sobrinha; a esta fraquearam-lhe as pernas, e cahiu sem sentidos em um sofá.
O velho afflicto chamou pela velha Rosa, que no mesmo momento appareceu.
― Veja como está a menina! acaso já lhe deu isto alguma vez?
― Já, ― respondeu a boa velha derramando lagrimas ― teve repetidos accidentes quando morreu a senhora, que Deus tenha em sua Santa Gloria.
Tanto Rosa, como o snr. Cunha fizeram aspirar diversos espiritos á desmaiada joven; que passado alguns minutos abriu os olhos.
A's perguntas do snr. Cunha respondeu ella, que estava melhor, que não tivesse cuidado, por que aquillo fôra um insignificante ataque de nervos, mas que agora inteiramente bôa lhe pedia fosse dar ao desventurado marquez a noticia de que era portador. Vá, meu tio, acrescentou a menina, vá, os momentos são precisos porque talvez aquelle pobre pai queira ir receber o ultimo suspiro de seu filho.
Estas ultimas palavras foram proferidas com um accento tão desesperado, que entre qualquer pessoa que não fosse o snr Cunha conheceria que sua sobrinha não estava tão socegada como queria mostrar; mas elle cedendo ás instancias que a menina lhe fazia, abraçou-a e sahiu.
― Minha querida senhora, como está afflicta! ― disse a velha tomando as mãos geladas da moça, entre as suas tremulas pelo susto ― que tem? necessita d'alguma coiza? Faz-me tremer.
― Não é nada Rosa, não é nada, socega, foi uma forte dôr de cabeça acompanhada d'um ataque de nervos causado pelo cheiro desses junquilhos: leva-os d'ahi, deixa-me descançar, e verás como logo estou bôa.
A velha socegada com um sorriso que viu nos labios da sua querida menina, como ella lhe chamava, sahiu levando as pobres flores, supposta cauza do desmaio de Clotilde. Esta apenas sentiu fechar a porta deu livre curso ás lagrimas que ha tanto tempo continha.
― Meu Deus ― dizia ella ― como o meu coração adivinhava. como as minhas suspeitas se tornaram realidades!!
― Em perigo de vida ― disse meu tio!! Oh! Paulino, anjo da minha almoa, eu te seguirei de ponto: Meu Deus, salvai-lhe a vida ― accrescentou a menina cahindo de joelhos aos pés da imagem de Christo que estava no seu quarto ― mas se elle já não existe... então compadecei-vos de mim e levai-me tambem; não prelongueis uma existencia que seria tida um martyrio.