A Esperança Vol. I/Maria Isabel/XIII
Excesso de generosidade
A casa em que a filha de Ricardo d'Oliveira foi recolhida, era em Villar; mas ella, pouco conhecedora d'aquelle arrabalde, não soube em que parte da cidade estava. A casa era pequena, mas muito aceiada, e o quarto da orfă, estava rica e lindamente trastejado.
A pessoa que foi creada com luxo, e que uma desgraça fez perder todos os gosos e commodidades da vida, não póde ser indifferente á satisfação de tornar a possuir tudo isso, que por algum tempo perdéra. Ainda que Maria Isabel tivesse o coração n'outra parte e a alma despedaçada pela dôr, não pôde deixar de sentir os beneficios do bem material. Ao recolher-se no lindo quarto que lhe era destinado disse comsigo:
― Sou muito ingrata! Porque não amarei esta generosa e boa senhora?
Assentou-se n'uma cadeira de molas com estofo coberto de setim azul, pousou os pés n'uma almofada de velludo com rosas em relevo, d'essas que se mandam cortar a Inglaterra, e correu vistas melancolias e distrahidas sobre a alcatifa que cobria o soalho, e ergueu-as até as fitar n'um espelho, d'uma pureza, brilho e clareza deslumbrante. Ardiam sobre um bofete as vellas d'uma rica serpentina e a froixa luz de lamparina em vaso d'alabastro. A magnificenciɐ que rodeava a donzella devia tornar-se-lhe suspeita. Não sucedeu assim. Primeiro tocou-lhe o coração e fel'a sentir gratidão por aquella parenta tão boa, e ao mesmo tempo receio de se lhe tornar pesada e incommoda; depois foi saudades por sua mãe, melancolica recordação de seu pae, e quasi horror ao luxo que a rodeava. Ergueu-se para ir pedir á creada um logar no quarto d'ella; mas tornou-se a deixar cahir na cadeira.
― A'manhã, disse ella; hoje não poderia sofrer o contacto e discursos d'essa mulher. E' tão bom estar só!.. E' tão bom chorar em liberdade, quando se perdeu o que eu perdi!..
E ella vertia um diluvio de lagrimas encostada ao braço da poltrona. Estava tão bella assim por detraz d'ella havia uma porta coberta, como a da entrada, com um rico reposteiro. Maria Isabel, logo que entrára, tivera o cuidade de fechal-as ambas por dentro, despedindo em antes a creada. As portas tinham ambas uma bandeira por remate, com a figura e côres de duas rosas; os reposteiros não encobriam estas bandeiras, cahiam d'ella, para baixo. Nas bandeiras das portas appareceram, quasi ao mesmo tempo, duas caras. Na da retaguarda a cara d'um homem, e na do outro lado, a da creada da casa, que olhou mais para o outro rosto do que para o interior do quarto, e que, satisfeita a primeira curiosidade, se eclipsou. O rosto masculino ficou no seu posto, e, ora se chegava a um dos vidros verdes, ora aos vermelhos, e de vez em quando uma mão ligeira corria um lenço alvissimo pelo vidro embaciado, pela respiração. Os olhos d'esse rosto não podiam vêr Maria Isabel, mas viam o espelho em que ella estava retratada, pouco distinctamente, á primeira vista. Via-se o vulto gracioso da menina coberto com o vestido negro que a fazia destacar do fundo claro do rosto, e que realçava a alvura de suas mãos, rost, e collo meio descoberto, por ter tirado o mantelette, que a affrontava. Mas depois d'alguma attenção distinguia-se no pallidissimo espelho os cabellos claros, as sobrancelhas arqueadas, a bocca pequenina, e os olhos grandes, quando os elevava para cima, como em busca do espirito de sua mãe.
E' revoltante dizer uma coisa. A cara masculina não se tirou do ponto de observação senão quando o quarto ficou n'uma meia obscuridade com a unica luz da lamparina, e quando o cortinado do leito, com o movimento que lhe deu Maria Isabel ao deitar-se.
O cavalheiro, dono da cara curiosa e impudente, desceu da pequena escada em que se tinha aguentado por mais d'uma hora. Deitou sucintamente a mão á porta. Achou-a fechada e voltou-se para Ermelinda, que assentada n'uma cadeira, cabeceava com somno.
― Esta porta porque está fechada? disse elle rapido, e em voz baixa.
― Foi ella que fechou, respondeu Ermelinda, bocejando. A modo que não quer que lá entrem sem licença.
― Nem eu queria entrar. Não sejas maliciosa. Esta menina não é da tua laia. E' preciso tratal-a com todos os melindres, e deixal-a consolar-se das suas desgraças, antes de procurar ensinuar-me no seu coração.
― Eu tambem fui rapariga! disse e'la suspirando, bonita e virtuosa como a minha parenta.
Não tive a dita de conhecerte assim. E não manches este anjo com o nome de parenta, na minha presença.
― Sim?!..
Amaral pegou no chapeu e enterrou-o na cabeça, com um movimento de má catadura.
― Então como hei-de chamar-lhe?
― Trata-a o melhor possivel, consola-a, faze-lhe todas as vontades, menos a de ausentar-se. Receberás a paga dos teus serviços.
Amaral sahiu e Ermelinda seguio até á escada, dizendo-lhe:
― Disseste-me uma vez que te avisasse, se te visse em risco de te namorares de véras. Creio que, Deus me perdõe, chegou esse risco.
― Tem com a snr.a D. Maria Isabel todos os cuidados e respeitos. Até ámanhã.
E sahiu. O trote d'um cavallo, ouviu-se logo; e um creado, ainda muito rapaz, fechou a porta da rua, e foi saltando para o seu quarto, dizendo, a olhar uma moeda de prata que tinha nas mãos: Estas pitadas tiram mais o somno do que o simonte do hortelão.
Maria Isabel ouviu algum ruido, mas não fez caso d'isso. Chorou longo têmpo e adormeceu sem o minimo receio nem suspeita má da casa em que se viera metter. Dormiu o somno descuidado da innocencia.