A Esperança Vol. I/Maria Isabel/XIV
Miquelina
Acordou Maria Isabel quando o sol buscava passagem atravez das fendas da janella, que tinha as cortinas apanhadas. Saltou logo do leito; envergou um roupão de bretanha e foi vêr á porta quem forcejava por abrir. Entrou a creada, rapariga alegre e maliciosa, que lhe disse:
― V. exc.a para que se fecha por dentro? Não tenha medo de ladrões; a porta da rua é muito segura. Teve o incommodo de levantar-se para abrir! Vinha perguntar-lhe se queria almoçar na cama. E' melhor deitar-se, está a tomar-se de frio. Pouco passa das nove horas.
― Meu Deus!.. replicou a orfã, tão tarde!.. Faça favor de sahir para eu me vestir.
― Então ha-de vestir-se só? A senhora ralhará comigo. Devo ajudal-a a vestir: as fidalgas não costumam vestir-se sós.
― Faça favor de me deixar. Eu não sou fidalga.
― Olá se é!.. Assim o fosse eu.. A snr.a D. Ermelinda, mesmo deitada, atira as pernas para fóra do leito, eu enfio-lhe as meias e aperto as ligas; depois...
― Vá então tratar d'isso.
― Não se levanta sem ser meio dia. Diz que todas as fidalgas fazem o mesmo: e ella que o diz, é porque o sabe. Já esteve em Lisboa. Sabe tudo o que não serve para nada. Diz que n'isto é que se conhece a fidalguoa. Mas como v. exc.a não quer nada, vou dar ordem para o almoço...
― Miquelina, não me dê excellencia. Sou uma pobre orfã, que estou aqui por caridade. A'manhã hei-de levantar-me cedo, para lhe ajudar a fazer os arranjos da casa.
― Menos isso!.. A snr.a D. Ermelinda disse-me que v. exc.a era agora quem aqui dava ordens. E' senhora desta casa, não creada.
― A benignidade da snr.a D. Ermelinda confunde-me!..
― Ah!.. a benidade d'ella é de deixar a gente de queixo cahido!.. Se v. exc.a quizer alguma coisa, tenha a bondade de tocar a campainha. Deixei Jose ao lume, preciso d'ir ver o que elle tem feito.
A creada shiu com um sorriso que lhe era particular.
Maria Isabel vestiu-se e fez a sua cama. Não estava satisfeita: o ar sarcastico de Miquelina não era proprio para lhe dar confiança.
A creada voltou com o almoço, e fez grandes exclamações ao ver o quarto arrumado; e finalisou dizendo:
― Se a sr.a D. Ermelinda sabe isto, põe-me na rua; e me prohibirá de tornar a pôr os pés em sua casa, e mesmo em todo o Villar.
― Villar!!.. Pois nós estamos em Villar!
― V. exc.a não o sabia? E' aqui que a snr.a D. Ermelinda se estabeleceu depois de pousa aqui, pousa acolá. Acha este nome muito bonito para um titulo, e como já ha a baronesa de Villar, quer ser condessa. Que isto de condessa nem por isso me agrada a mim. V. exc.a gosta? Faz-me lembrar a condeça em que eu metto a roupa para engommar.
Miquelina, via que tinha dito disparate. A menina mostrava anciedade e perturbação. Não se atarantava, porém, a creada com pouca coisa, e queria vêr se distrahia Maria Isabel com a sua localidade. Esta enterrompeu-a, dizendo:
― Quero fallar com sua ama.
― Ella não tardará a vir aos pés de v. exc.a Como lhe disse que v. exc.a já estava de pé, sendo tão fidalga e tão bonita...
― Deixe-me, Miquelina. Eu não sou fidalga, nem bonita.
― V. exc.a não quer olhar para aquelle espelho?
― Quero que faça favor de me deixar.
― Mas não toma outra chavena de chá?
― Não tenho mais vontade... Não quero mais nada.
― V. exc.a não come mais do que um canario! Dê-me licença para lhe dizer uma coisa. Não quer uns sapatos mais anchos?
― Não.
― Perdôe... Cuidei que estaria com o pé apertado. Tem um pezinho tão pequeno e tão perfeito...
― Sou baixa, e portanto tenho o pé proprio do meu tamanho.
― Baixa?!.. V. exc.a é alta; e é tão elegante, e...
― Estou muito triste, para poder ouvir gracejos. Preciso de fallar com sua ama: vá ver se posso ir ao quarto d'ella.
O ar imperioso que tomou a filha de D. Maria Carlota, impoz silencio á bacharelice de Miquelina, que sahiu, dizendo entre dentes:
― Começa a ter modos de fidalga!.. Lembrei-lhe que era bonita!.. A pobre de minha ama nunca havia de ser com ella... fidalga.