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A Esperança Vol. I/Maria Isabel/XIX

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XIX

O pai e o filho

Continuava Custodio da Cunha a passear no quarto. Rufina entrou assodada, dizendo:

― A mãe saiu de carro sósinha?!

― Saiu, respondeu o ancião. Vai buscar para viver comnosco uma menina muito bôa e muito infeliz. Has de consolal-a de suas tristezas e amal-a como irmã.

― Ah!.. quanto serei feliz!.. Com que gosto abraçarei a minha irmã adoptiva!...

Maximino entrava ainda agitado. Não podia disfarçar inteiramente o seu alvoroço. O pae carregou o sobrôlho e replicou a Rufina:

― Não se trata de gosto; mas de consolações e de juizo. Não podemos ser felizes por termos de viver com desgraçados. Retira-te Rufina, tenho que dizer em particular a teu irmão.

Maximino sentiu um calafrio em todo o corpo. Forcejou por senhoriar suas commoções.

― Ella está salva ― pensava elle ― é o principal.

Rufina tinha saido. O ancião assentou-se, crusou os braços e olhou fixo para o seu filho. O mancebo tinha socegado pouco a pouco, e sofreu este exame sem pestanejar. Respondeu ao olhar interrogador com uma vista serena e suave. O coração nadava-lhe em venturas.

― Maximino ― disse Custodio da Cunha com modo sério, mas não carregado como ha pouco ― d'hoje em diante vai viver debaixo do nosso tecto uma orphã desvalida e infeliz.

O mancebo córou, mas não desviou os olhos dos de seu pae. Este continuou com voz firme:

― A honra e o dever não são brincos de creança. Offerecemos um asylo honesto a uma donzella desditosa, é preciso que este asylo seja o que se lhe offerece.

Maximino continuava a estar sereno. Seu pae proseguiu em tom mais forte, mas não colérico:

― E sabes, Maximino, como o homem honrado e brioso se porta com a menina que se abriga na casa de sua familia?

― Sei, meu pae.

― Bem, acredito na tua probidade. Sabes tudo a que te obriga a confiança que em ti deposito?

― Sim, meu pae. Nunca lhe darei occasião de arrepender-se d'essa confiança.

― Muito bem.

― Meu pae, tinha uma coisa a dizer-lhe.

― Dize, meu filho.

― Não é por volubilidade que lhe vou fazer um pedido. Tenha a bondade de me arranjar n'alguma casa de commercio no Porto, ou permitta que eu vá para o Brazil.

― Que mania é essa agora?

― Tenho considerado que fiz mal em me servir do valimento de minha mãe para seguir um modo de vida differente d'aquelle a que me destinava meu pae. Hoje já não tenho antipathia ao commercio. Estou prompto a sujeitar-me a tudo.

― Parece-te talvez que um caixeiro com alguns vintens no bolso é mais feliz do que um estudante com elle vasio?

― Não, não tenho ambições.

― Então já aborreces os estudos? ― Não, meu pae, não. Mas tenho considerado que fiz muito mal em não seguir a occupação de meu pae e a oppôr-me á sua vontade; e tambem que os meus longos estudos fazem um grande pezo á casa, e desfalcam aquillo que no futuro podia ser um dote para minha irmã.

O ancião corrêra a mão pela testa e a demorou sobre os olhos, curvando a cabeça sobre o peito.

Maximino esperou em silencio, mas vendo seu pae immovel, assustou-se e correu a elle, bradando:

― Não está bom?!

E tomando-lhe a mão pertendeu descobrir-lhe o rosto.

Zangou-se Custodio da Cunha por ser pilhado em flagrantes signaes de ternura, porque tinha os olhos cheios de lagrimas, e bradou com impeto:

― Deixa-me!..

O mancebo afastou-se atemorisado. Depois examinou seu pae com terna affeição, pensando:

― Faço mal em temel-o. Minha mãe tem razão em dizer que só ola o conhece e availa. Tem uma alma como poucas. Agora estava elle commovido pelo que eu lhe estava dizendo. Fiz mal em devassar o véo de dignidade com que queria occultar-me as suas lagrimas.

A voz do ancião, doce como poucas vezes se ouvia, fez estremecer o moço de admiração e contentamento:

― Assenta-te perto de mim, meu filho: disse elle indicando-lhe uma cadeira a seu lado.

Maximino obedeceu.

― Quando eu queria, continuou, que te desses ao negocio, estava persuadido que não havia occupação melhor, nem mais honrosa. Os enxertos em arvores taludas pegam mal. Os teus mestres e lentes dão-me boas informações de ti. Emquanto ao peso que fazes á casa, eu ainda me não queixei. Se não estou nadando em prosperidade, tambem não estou reduzido a cerciar os estudos de meu filho.

― Mas.. perdôe, meu pae, a minha observação. Minha irmã foi privada dos seus mestres.

― Os estudos d'ella não eram precisos. Eram um luxo; os teus são uma necessidade: são o teu futuro e talvez mesmo o d'ella. Ninguem póde prever eventualidades. Desejava que Rufina fosse muito prendada: mas fizemos o que podemos; e no que já sabe achará recursos para se entreter a si e aos outros. Tu, porém, continúa com os teus estudos, e faze por te distinguires.

― Farei tudo o que ordenar, meu querido pae.

Esta ultima frase dita com ternura, tornou a commover o pae. Um momento guardaram silencio, depois disse Custodio da Cunha:

― Vai para os teus livros, meu filho; por ora é essa a tua occupação. Se as circumstancias ordenarem outra coisa, mudarei de tenções e tu de tarefa; mas espero que não. Um homem deve sujeitar-se a qualquer genero de vida, contanto que viva com honra.

Maximino retirou-se profundamente enternecido e o pae não o ficava menos.