A Esperança Vol. I/Maria Isabel/XX
Os Libertadores
Estava a filha da infeliz D. Maria Carlota triste e pensativa no lindo quarto que lhe deram, e que Ermelinda não consentiu trocasse por outro mais modesto e sjmples. As continuas visitas d'Amaral, suas vistas e fallas amorosas, e mais que tudo as reflexões vagas mas venenosas de Ermelinda lhe suscitaram suspeitas. Debalde a sua inexperiente bondade e singeleza rebatia a desconfiança; o instincto a avisava que se machinava alguma coisa contra a sua honra.
― Estou louca! ― pensava ella agitada e procurando socegar ― Como ouso suspeitar infamias da generosa parenta que me tem em sua casa, como filha mimosa?! Tem idéas um tanto grosseiras, mas o coração é bom e a alma magnanima.
Ouviu de repente barulho na escada e a voz d'um homem que gritava:
― É o que lhe digo, hei-de fallar com a menina que aqui está. Espera-a á porta uma senhora, que a ha-de levar d'aqui.
― Parece-me a voz de Francisco! - disse ella comsigo, e pressurosa ia certificar-se, mas Ermelinda entrou arrebatada, impediu-a de sahir e fechou a porta por dentro dizendo:
― Está ali um doido!.. um doido furioso! Se elle nos agarra, espatifa-nos! Esteja muito caladinha...
E a levou para o fim do quarto quasi à força.
― Pareceu-me a voz do filho da snr.ª Carolina...
― É um doido, minha filha, um doido que faz medo. Não falle. Eu vou fazer bulha para o assustar.
E começou arrastando as cadeiras e fazendo grande ruido. Não ohstante isto Maria Isabel ouvia que altercavam na escada e percebeu distinctamente estas palavras que o marujo dizia com toda a força dos seus pulmões:
― Sr.ª D. Mariquinhas, fuja d'estes cachopos do demo. Está lá em baixo a sr.ª mãe e outra senhora que a vem buscar.
A donzella precipitou-se para a porta. Ermelinda largou a cadeira que arrastava e agarrou-a pela cinta fazendo-a recuar. Não lhe restava já senão a força para detel-a. Maria Isabel gritou com todas as suas forças:
― Acuda-me, sr. Francisco, acuda-me. Estou fecha...
Não pôde acabar. A mão d'Ermelinda lhe tapou a bocca, ao mesmo tempo que ella a arrastava comsigo, cercando-a com o outro braço.
Francisco ouvira bastante. Até alli o detivera Miquelina dizendo-lhe colerica que não vivia alli senão uma senhora com sua filha, e que elle pagaria cáro o insulto que fazia a suas amas; porém quando elle ouviu os gritos de soccorro da filha de Ricardo d'Oliveira, deu um encontrão furioso á rapariga e quiz subir. Miquelina agarrou-lhe enraivecida n'uma perna, o que teria feito cahir o filho de Carolina, se, pelo costume dos marinheiros, não estivesse seguro ao corrimão. Susteve-se pois, e, sem voltar o rosto, firmou-se com as duas mãos no corrimão, e assentou rapido um pontapé, com o pé que tinha livre, na face da creada. Ella soltou um grito e foi com as mãos á cára que tinha banhada de sangue. O marinheiro com tres pernadas chegou a cima, e foi á porta do quarto em que a menina soltava gritos abafados, e entre elles escutou o moço o seu nome.
― Eu lá vou sr.ª D. Mariquinhas, eu lá vou.
E começou a abalar a porta furioso. Ermelinda viu que tinha feito quanto era possivel fazer para reter o seu ganha pão, ou antes ganha luxo. Não havia remedio senão ceder. Deixou a orphã e foi á porta, que abriu, gritando:
― Forte patifaria! A casa do cidadão é inviolavel.
― Alcoviteira de má morte, redarguiu o marinheiro, a tua casa é na Relação.
Maria Isabel se aproximou tremula e em desordem.
― Socegue, sr.ª D. Mariquinhas, proseguiu elle, e segure o cabello. Esta feiticeira a despenteou.
A donzella segurou com mão convulsa as tranças que lhe caiam pelas costas.
― Tem tempo. Não se apresse. Está em porto seguro. Eu sirvo-lhe d'ancora, e logo servir-lhe-hão de remos as patas de dois cavallos.
Está distante um nadita uma senhora metida n'uma carroagem à sua espera, e a sr.ª mãe está á porta. Não quiz subir cá a riba, porque não gosta da feiticeira que a logrou.
― Marióla! ― bradou Ermelinda.
A orphã, para evitar contendas, apressou-se a perguntar quem era a senhora que a esperava.
― É uma senhora ― respondeu elle sorrindo manhoso ― que encontramos á porta de um fabricante a fazer as mesmas perguntas que eu e a sr.ª mãe fizemos. Mas está prompta? Desça adiante para eu a guardar; não vá encalhar em estes recifes da breca.
― A minha parenta, disse Ermelinda pondo-se diante da jovem, não sai d'aqui.
― Vai chamar parenta ás da tua egualha, velha alcoviteira! Deixa passar a sr.ª D. Mariquinhas ou te pespego dois murros!...
― Não saí d'aqui ao menos sem pagar o vestido que traz, e o gasto que cá fez.
― Eu pago-te tudo n'um iste, como ha pouco paguei á tua creadinha das duzias!..
O marinheiro levantou o murro fechado sobre Ermelinda. Esta teve medo e recuou gritando:
― Ha-de-me pagar o vestido que traz, senão grito-aqui d'el-rei. O filho de Carolina não a proseguiu. Maria Isabel o detinha dizendo:
― Pelo amor do ceu, sr. Francisco, não lhe faça mal.
― Venha então, e deixemos a velha coruja.
Ermelinda continuava a bradar que lhe pagassem o vestido e a despesa que a sua parenta lhe fizera. A este tempo a esposa de Custodio da Cunha chamada por Carolina (que ouvira o barulho que ia em cima e chamára auxilio) subia a escada e respondeu a Ermelinda:
― Mandar-lhe-hemos toda a roupa que a sr.ª D. Maria Isabel leva sua. Ella não quer nada de fonte suspeita, nem dons chorados. Menina, venha comigo. Tinha uma filha; terei agora duas.
Maria Isabel balbuciando agradecimentos seguiu a sr.ª desconhecida, que lhe pegara do braço e a beijára com affecto.
Ermelinda não se atreveu a gritar mais, e vendo Francisco ficar, receiou não sem motivo, que elle a quizesse mimosear com algum murro.
Fechou-se á pressa no quarto. O marinheiro abanou a cabeça em ar de zanga e ameaça e agarraudo-se ao corrimão, deixou-se ir pelas escadas abaixo, escorregando quasi como se fosse por uma ladeira. E reuniu-se ás duas senhoras e a sua mãe.