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A Esperança Vol. I/Maria Isabel/XXI

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XXI

Generoso gasalhado

Entregara-se a orphã sem desconfiança a uma senhora desconhecida. Adelaide era d'aquelas pessoas que se tornam recommendaveis logo á primeira vista.

Pediu a mãe do marujo mil perdões á donzella pela ter feito ir com Ermelinda para Villar. Maria Isabel abraçou-a, dizendo que conhecia que só lhe desejava o bem, e que lhe era devedôra de muitos favores.

A esposa de Custodio da Cunha fez entrar Maria Isabel no coupé, e obrigou Carolina a entrar também, e a seguiu. Carolina estava um tanto confusa por se vêr de coupé, apesar de ter genio pouco acanhado. Nunca quizera até aquelle dia servir-se senão das suas pernas, que tinha fortes e ligeiraas, para transpôr maiores distancias que aquella.

Seu filho estava nas nuvens pela honra que lhe faziam a ella; foi seguindo o coupé e cantando a meia voz uma cançao dos marujos, entrecalando as copias de baforadas de fumo de tabaco.

Ao chegar o coupé á Torre da Marca pediu Carolina que a deixassem alli, onde dizia ter afazeres; mas o principal motivo d'este pedido era para que a sua comadre Josepha, que passava, a visse saltar d'um coupé, e despedir-se das fidalgas com quem vinha.

Quando ficou Adelaide só com a filha de Ricardo d'Oliveira correu as cortinas para ficar mais á vontade. Não o fizera antes, para que a pobre mulher não pensasse que se envergonhavam da sua companhia.

― Então, disse o consorte de Custodio da Cunha, não me pergunta quem eu sou?

― Para que? ― replicou a orphã com efusão. ― Sei que é o meu anjo da guarda, a minha salvadôra. Eu pensava que me recolhia na casa de uma parenta honrada, e pelo que vejo estava n'uma morada infame.

― Não estava em boa casa, não. Mas eu não fui que a salvei, minha rica menina. O seu salvador é o marinheiro que ha pouco viu. Foi elle que descobriu a morada de Ermelinda, ou antes a casa das loucuras de um homem, que devia ter ao menos mais vergonha do que tem. Não nomeêmos porém ninguem. Façamos de conta, que esses oito dias que passou em Villar, não existiram. Se alguem disser que a viu lá...

― Eu não sabia, e só via uma visita.... que já se me tinha tornado suspeita; mas custava-me tanto a capacitar-me da aleivosia da mulher que me tractava como filha mimosa....

― Mas esse homem... (adivinho que a visita era masculina) esse homem será capaz de lhe dizer que a viu lá. E' capaz de tudo. Se tiver esse atrevimento, responda-lhe como a sua razão lhe ditar. O melhor é não se mostrar conhecedora da cilada que lhe armaram. Foi com uma parenta que julgava virtuosa, deixou-a porque eu a fui buscar. Não se envergonhe... os infames é que devem envergonhar-se. Pois louvores a Deus de ter chegado a tempo de tiral-a de um grande perigo. Anime-se. Na minha casa não será tractada com luxo; mas sim com cordeal franqueza e sinceridade. Todos alli a respeitarão. Meu marido não é rico, mas também não é pobre. Não falta á sua familia o necessario.

― Ah! minha senhora! antes eu queria a pobreza e a mizeria, do que a opulencia deshonrosa. Mas não irei servir de peso á sua familia?

― Não, minha menina. Eu tinha até agora uma filha, terei d'aqui em diante duas. Meu marido é muito bom, ainda que foi duro com v. exc.a. Arrepende-se hoje das lagrimas que lhe fez derramar.

― Seu marido!!

― E' Custodio da Cunha

― Ah! leve-me para casa de Carolina, minha querida senhora.

― Não tema meu marido.

― Não o temo... mas... devo dizer-lhe a verdade. Tenho visto seu filho por duas vezes e....

― Disse-lhe alguma coisa que a desgostasse ou offender-se?

― Não, minha senhora, balbuciou a orphã com a cabeça baixa. E' muito delicado e muito bondoso.

― Pois então anime-se. Elle a respeitará mais ainda vendo-a no seio da nossa familia. Ha-de olhal-a como irmã a quem deve protecção e respeito. Se alguma vez a menina precisar de conselhos, consulte-me, como o faria a uma amiga intima.

O coupé parou. Abriu-se a portinhola e appareceu Maximino com ar mais sério e respeitoso, dissimulando o alvoroço que lhe ia no intimo d'alma. Ajudou sua mãe a descer os degraus do carro, e lhe apertou a mão com ternura, segredando-lhe:

― Obrigado.

Voultou-se para offerecer a mão á donzella, mas ella, para evitar isto, descia só. Maximino a cortejou em silencio. Adelaide esperava-os no portal e disse ao mancebo:

― Meu filho, apresento-te uma nova irmã. Sê para ella o que és para Rufina.

― Sim, minha mãe, respondeu elle com firmeza. Esta senhora terá em mim um irmão respeitoso. Se me dão licença, vou despedir o boleeiro.

As senhoras subiram sós. Adelaide sustentava a sua nova filha que estava um pouco convulsa. No primeiro patamar das escadas estava Custodio da Cunha.

Estendeu a mão á orphã com ar commovido. Ella pegou tremula na mão que lhe era offerecida, e a levou aos labios. O ancião tinha os olhos humidos. Não teve d'esta vez a precaução de ocultar este signal de enternecimento.

― Beijou a minha mão, disse elle. Fez bem. Serei agora seu pae. Deus a abençoe como eu o faço.

E poz-lhe a mão na cabeça, que Maria Izabel curvára ao receber a bencão. Ella estava coberta de lagrimas, e o pae de Maximino custava-lhe a reter as suas. Adelaide, não menos commovida, diss, para interromper esta scena:

― Vamos para cima. Não havemos de ficar nas escadas.

E pegando no braço da menina a levou comsigo. Seu parido as seguiu. Ouviu passos a traz de si. Olhou e viu Maximino que ia entrar no seu quarto.

― Não sobes? disse o pae, que estava em maré de graças.

― Vou estudar as minhas lições, meu pae.

Custodio da Cunha subiu pensativo. Seu filho tanto nos momentos de alegria, como nos de tristeza, se unia sempre á familia, agora ia afastar-se d'ella. Aprovara este procedimento, mas entristecia-se. Não era expansivo, mas folgava de ver a expansão dos seus.

Encontrou em cima Maria Isabel nos braços de Rufina. E isto o consolou alguma coisa.